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domingo, 4 de outubro de 2020

Justas e Torneios de Cavaleiros na Idade Média


Origens e Distinção entre as modalidades


A Idade Média foi marcada naturalmente pelo poderio de classes privilegiadas tais como a nobreza e o clero, no âmbito de uma realidade social estratificada e desigualitária. A guerra estava bem presente no quotidiano, e desde cedo, haveria também lugar para o confronto directo entre cavaleiros, fosse no palco de batalha ou nas competições que, por vezes, se desenrolavam.
Efectivamente, a literatura épica e cortesã, através das canções de gesta, fará eco das proezas alcançadas por cavaleiros em torneios e justas, iniciativas lúdicas e desportivas daquele tempo. 
Os primeiros torneios medievais terão ocorrido em inícios do século XII, tendo a tradição nascido em França, de acordo com Manuel de Sousa, autor da obra “Livro de Cavalaria”. Este investigador descarta a possibilidade das origens serem mais antigas até porque algumas das manifestações guerreiras anteriores não eram mais do que espectáculos equiparados às danças guerreiras neozelandesas. 
Em Inglaterra, as primeiras competições terão lugar no reinado conturbado de Estevão (1135-1154), embora a sua génese tivesse sido importada através das elites aristocráticas da França e da Normandia. Aliás, houve cavaleiros normandos que trariam consigo até Inglaterra algumas técnicas adoptadas nas provas então realizadas.
Em Portugal, tivemos o célebre Torneio de Arcos de Valdevez em 1140, quando D. Afonso Henriques e D. Afonso VII de Leão e Castela, então em fase de guerra, escolheriam os seus melhores cavaleiros para se defrontarem, de forma a evitar uma batalha campal, a qual seria muito mais sangrenta e violenta. Nesse torneio, os portugueses levariam a melhor e muitos acreditam que este torneio viria a ser um passo fundamental para o reconhecimento das suas aspirações à independência nacional, oficializada em 1143 com o Tratado de Zamora.
Posteriormente, D. Afonso V (1438-1481) chegou a realizar “justas reais” na rua Nova (Lisboa), aquando do casamento da infanta D. Leonor, sendo que o seu irmão D. Fernando se evidenciaria como campeão. Esta era uma forma de os cavaleiros se prepararem igualmente para futuras batalhas que, no caso português, estalavam naquela época no Norte de África, em torno da disputa das praças marroquinas. Refira-se que era ainda algo comum decorrerem justas e torneios no âmbito de casamentos régios e celebrações de bodas inerentes. 
No entanto, é necessário saber distinguir torneios de justas, embora ambas as competições pudessem decorrer nas mesmas concentrações/assembleias.
Os torneios colocavam frente-a-frente dois campos opostos (ou duas formações), onde cavaleiros, peões, escudeiros, arqueiros e jovens se enfrentariam. A igualdade numérica entre as forças envolvidas nem sempre era uma regra absoluta. O palco da “batalha” não assumia qualquer delimitação, podendo abranger campos, pastos, bosques, aldeias ou vilas. Os combates assumiriam uma dimensão colectiva, ganhando os esquadrões que apresentassem a melhor coesão táctica. Por outras palavras, e conforme sublinha o historiador Robert Clephan, estes torneios eram “batalhas em miniatura”, e em que o factor surpresa estava bem presente porque o desenrolar das escaramuças poderia ser bastante imprevisível. Nestes torneios, poderiam ser usados machados, espadas, lanças, adagas, maças de ferro, etc.  Nalguns casos, cada equipa poderia ser constituída por 200 cavaleiros, e poderia haver combates entre formações de nacionalidades distintas (por exemplo: corpo de franceses contra contingente de ingleses).
Por sua vez, as justas envolveriam um confronto mais individual, colocando frente-a-frente dois cavaleiros munidos de lança que chocariam entre si num ponto central de enfrentamento. Havia uma separação de madeira que protegeria os cavaleiros de uma potencial colisão total entre os seus cavalos. 
A entrada de cada cavaleiro sonante seria anunciada previamente por uma trombeta, sendo este seguido pelos seus escudeiros. Havia igualmente alguma música que animava os intervalos. 
Durante o confronto, estariam em jogo inúmeras fortunas de dinheiro (apostas/ resgates/prémios para os vencedores), mas igualmente as vidas dos participantes porque a lança poderia trespassar a armadura ou provocar a queda fatal de qualquer competidor. 
Como já disséramos, e apesar da grande difusão em França, as provas chegariam a realizar-se também em Inglaterra, quando não existiam éditos reais a proibi-las expressamente. Aí chegou a praticar-se o jogo ou mesa da “Távola Redonda”, inspirando-se nas fábulas do lendário Rei Artur visto como fundador mítico da cavalaria medieval inglesa. De acordo com alguns cronistas, nomeadamente Matthew Paris, este torneio seria diferente dos demais, assumindo uma natureza específica e que ainda hoje é motivo de debate entre os historiadores. 





Imagem nº 1 - As competições de lutas medievais tiveram a sua origem na França, mas conheceriam igualmente manifestações noutros reinos. Na imagem, um cavaleiro se prepara com a sua lança para uma justa, esperando encontrar do outro lado um oponente em condições similares.
Retirada de: https://www.thegreatcoursesdaily.com/tournaments-of-the-medieval-knights/, (Direitos: strannik72/Shutterstock)





Imagem nº 2 - Anúncio e apresentação inicial dos participantes nos torneios. Aqui visualizamos a  formação de duas equipas de cavaleiros que lutariam entre si.
Miniatura no "Livre des tournois of Rene d'Anjou" (1465), Bibliothèque Nationale de France. 
Foto por Prisma/UIG/Getty Images in Revista Forbes).




Treinos Preparativos dos Cavaleiros


Como já havia afirmado o rei português D. Duarte (governou entre 1433-1438), dominar bem um cavalo era o primeiro passo para realizar grandes façanhas no palco de combate. O soberano chegou a redigir o “Livro da Ensinança de Bem Cavalgar a Toda a Sela” que, embora inacabado, aconselharia os cavaleiros a estarem firmes sobre o cavalo (sem demonstrar qualquer receio nos cavalgares belicistas), instruindo ainda sobre a postura ideal sobre a sela e os movimentos das pernas. D. Duarte escreveu igualmente sobre as maneiras de usar ambas as mãos: a esquerda, para trazer a rédea e governar o cavalo; a direita, para trazer as armas e lutar. O cavaleiro deveria ainda conhecer bem o comportamento do seu animal, antecipando-se assim a eventuais movimentos bruscos ou impulsivos que poderiam comprometer a sua participação. A equitação teria que ser uma prática frequente da parte do cavaleiro para que este pudesse amadurecer as suas capacidades tendo em vista futuras batalhas ou torneios.
Além de domar o respectivo cavalo, o cavaleiro deveria saber manejar lanças em riste e espadas, conciliando em simultâneo as técnicas de carga diante de eventuais adversários. A destreza e o vigor tinham que ser características essenciais de um competidor de elite. 
Por outro lado, a feitura do armamento defensivo era fundamental para salvaguardar a sua integridade física e, muitas vezes, as suas vidas dependiam naturalmente disso, no caso de serem surpreendidos. Por exemplo, houve preocupação para assegurar um fecho cada vez rigoroso do elmo, de modo a proteger com mais eficácia a cabeça do cavaleiro. 
As assembleias guerreiras poderiam durar vários dias. De acordo com o historiador Manuel de Sousa, o primeiro dia seria dedicado aos preparativos e à formação dos grupos, o segundo abrangia já as escaramuças e os desafios que alimentavam os ensejos dos mais jovens, e estas práticas poderiam repetir-se de forma sucessiva por algum tempo. Muitas vezes, os adversários presentes nos torneios colectivos provocavam-se mutuamente com injúrias, gritos e gestos, incitando assim ao combate corpo a corpo. Os cavaleiros, pelo menos, os melhores, teriam que saber gerir a sua componente psicológica para não cometerem qualquer erro crasso ou subestimar um potencial concorrente. 
Ao contrário das justas (mais individuais), os torneios que, então englobavam a formação de equipas, poderiam motivar a realização de assaltos, saídas, emboscadas, ataques frontais, fugas simuladas, etc. Nos torneios, a estratégia e o rigor táctico dos contingentes eram elementos decisivos, embora tal não excluísse a perícia individual que, muitas vezes, poderia ajudar a desequilibrar, tornando-se num detalhe que faria nascer heróis e lendas. 
A participação de cada cavaleiro nestes torneios traria sempre custos avultados, e não só ao nível dos preparativos. Caso fosse capturado nos torneios, teria sempre que pagar um resgate ao cavaleiro sequestrador/captor, tanto pela sua liberdade bem como pela recuperação do seu equipamento e do seu cavalo. 
No entanto, os torneios poderiam trazer fortunas e prestígio aos seus participantes mais bem-sucedidos e claro as suas performances poderiam sempre impressionar príncipes ou altos membros da nobreza (potenciais empregadores) e damas (potenciais esposas) que assistiam, num palanque, enquanto a restante multidão se posicionava no redor. 
No século XIII, teremos inclusivamente uma verdadeira corporação vocacionada para estas competições, os “arautos-de-armas” ou “heraldos”, que se reuniam regularmente para discutir combates, armas, armaduras, escudos e outros usos cavaleirescos, além de deliberar as regras das justas e dos torneios, proclamando e premiando os vencedores e viabilizar a assistência médica, dentro do possível, aos vencidos. 
Além dos combates, haveria ainda espaço para a realização de banquetes e alguma animação, estando bem presentes a dança e a música. 





Imagem nº 3 - Os cavaleiros tinham que se preparar da melhor forma, não só para os torneios, como para as batalhas do futuro.




Ilustres Participantes – Entre a Glória e a Morte

Na sua concepção, os torneios e as justas não se destinavam a provocar a morte propositada dos cavaleiros derrotados. Muitas vezes, tentava-se incutir alguns princípios de ética e de respeito elitista/cavaleiresco. Todavia, a actividade de alto risco e a recorrência evidente de acidentes originaram um número elevado de mortos e feridos, sendo que tais ocorrências eram, por vezes, repudiadas pelos combatentes de ambos os grupos que não pretendiam qualquer desenlace fatal. 
Na verdade, havia cavaleiros que eram mais comedidos na forma como manejavam a lança e a espada com o intuito de não desferir golpes mortais nos seus oponentes, mas também havia aqueles que entravam “enlouquecidos” e que atacavam de forma desenfreada, não se preocupando sequer com a integridade de quem se atravessasse no seu caminho. 
No século XII, a Igreja procurou censurar tais torneios ou assembleias através dos Concílios de Clermont (1130) e de Latrão II (1139). Aquela alta entidade chegou a negar uma sepultura cristã a quem perecesse nesses enfrentamentos, porque entendia que se tratariam de mortes em vão, mas tal não fez esmorecer as iniciativas desportivas/lúdicas da aristocracia que valorizava o prestígio e a componente financeira associados. Também alguns reis ingleses e franceses chegaram a promover éditos de proibição durante certos períodos. 
No entanto, e com o decurso dos séculos posteriores, os índices de mortalidade diminuíram gradualmente, dado que as armaduras seriam melhoradas, sendo agora permitido o uso de cotas e de couraças reforçadas. Segundo Manuel de Sousa, as armaduras de justa, utilizadas nos séculos XIV e XV, alcançariam uma grossura considerável, pesando agora entre 30 a 40 quilos. Por outro lado, em data desconhecida (mas posterior ao século XIII), seriam adoptadas as “lanças desportivas” em que as pontas seriam protegidas, evitando cenários de perfuração letal. Além disso, os torneios colectivos e as “mêlées” começarão a perder espaço para as justas, envolvendo menos cavaleiros, e por conseguinte, traduzindo-se num número inferior de baixas. 
Ainda assim nas histórias dos torneios e das justas, encontrámos narrativas que glorificavam os feitos de alguns cavaleiros, mas que também relevaram os desfechos trágicos reservados a outros vultos do seu tempo. 
Começando pelos cavaleiros mais bem-sucedidos, podemos considerar o notável percurso de William Marshal (ou em português, “Guilherme Marechal”; 1147-1219), célebre conde de Pembroke que viria a ser braço-direito de reis ingleses. Como os torneios haviam sido banidos em Inglaterra no reinado de Henrique II (1154-1189), ele viria, no decurso da sua juventude, a evidenciar-se em tais competições que decorreriam na França. Dado o facto de ele ter três irmãos mais velhos, já sabia que dificilmente iria herdar alguma fortuna, pelo que teve de construí-la de algum modo. No seu primeiro torneio colectivo em 1167, ele conseguiu capturar três cavaleiros juntamente com as suas armas. Mais tarde, ele viria a fazer um pacto com o cavaleiro flamengo Roger de Gaugi: ambos se entreajudariam para vencer os torneios e capturar o máximo de nobres participantes que, no fim, teriam de pagar um resgate pela sua libertação. Em dez meses, esta dupla teria conseguido fazer 103 cavaleiros prisioneiros, dividindo assim imensas fortunas entre si. 
Os feitos de William Marshal, um dos maiores cavaleiros do seu tempo, conhecido pelas suas habilidades militares e pela sua honra, foram registados pelos cronistas medievais e perduraram nas memórias populares durante séculos. 
Em 1274, o príncipe inglês Eduardo I, depois de regressar da improdutiva Nona Cruzada na Terra Santa, atravessou território francês, tendo sido desafiado pelo conde de Chalôns a participar num torneio. No âmbito de uma “mêlée”, ambos se enfrentariam, secundados pelos seus seguidores. Todavia, o alto e resiliente príncipe Eduardo, que já havia sobrevivido a uma provação na Palestina em que liquidou um membro da Ordem dos Assassinos que havia entrado discretamente nos seus aposentos, levará outra vez a melhor, fazendo o conde francês cair do seu cavalo. No entanto, os cavaleiros franceses ficaram indignados pelo sucedido e demonstraram a sua fúria. Verificou-se mesmo uma pequena batalha com os ingleses a fazerem recurso dos seus arcos. No entanto, o conde francês viria a reconhecer civilizadamente a derrota, rendendo-se no imediato ao rei e restaurando a ordem na competição. 
O Duque Henrique de Breslau (Varsóvia) também se parece ter evidenciado no decurso do século XIII, tendo saído como vitorioso de um torneio que juntou vários participantes. 
No entanto, a glória de uns significava a derrota, e por vezes, a morte de outros.
Em 1186, Godofredo II, Duque da Bretanha e filho do rei Henrique II de Inglaterra, faleceu num torneio alegadamente realizado em Paris (França), quando só tinha 27 anos de idade. 
No ano de 1240, em Neuss (perto de Colónia), seis cavaleiros sucumbiriam durante um torneio. 
Em 1252, o cavaleiro inglês Arnold de Montigney tombaria fatalmente após a sua garganta ter sido cortada pela lança do seu adversário Roger de Lemburn, após uma justa ocorrida nas imediações da abadia de Wallenden. 
Sir William Montague, primeiro conde de Salisbury, faleceria em 1344, não resistindo aos ferimentos sofridos num torneio realizado em Windsor. 
Henrique II de França (1547-1559) viria a morrer numa justa diante de Gabriel de Montgomery, capitão da Guarda Escocesa do Rei Francês. A lança do adversário atravessou a sua viseira e a quebrou em fragmentos, cegando o olho direito e penetrando na sua órbita direita e têmpora. Após 10 dias de profundo sofrimento, o rei francês faleceria. 
Além daqueles que faleciam, é necessário mencionar que outros ficariam acamados ou condicionados para o resto dos seus dias, nunca recuperando verdadeiramente das lesões sofridas.
Devido à violência, estas competições guerreiras acabariam por cair em desuso a partir do século XVII. 
Nos salões palacianos, os jograis cantariam, por várias vezes, as façanhas dos cavaleiros bem-sucedidos e heróis daqueles tempos, mas também lamentarão as tragédias que estiveram no horizonte de outros garbosos participantes. 
De acordo com Mark Cartwright, os torneios daqueles tempos foram a principal expressão dos ideais aristocráticos, como o cavalheirismo e a linhagem nobre, onde as armas (brasões) e a honra das famílias eram colocadas em xeque, as damas eram desejadas e até o orgulho nacional poderia estar em causa".





Imagem nº 4 - O duque Henrique de Breslau (também conhecido como Henrique IV, o Justo que viveu entre 1256 e 1290) recebe uma grinalda de flores após ter sido bem-sucedido num torneio medieval. 
Iluminura retirada do Codex Manesse (inícios do século XIV)





Imagem nº 5 - O rei Henrique II de França é derrubado numa justa quando o seu oponente fez penetrar a lança pela sua viseira. O soberano faleceria 10 dias depois, não resistindo aos ferimentos sofridos.
Retirada de Getty Images (Arquivo)




Nota Adicional I: Além dos escritos de D. Duarte, também René de Anjou, rei de Nápoles, redigiu um tratado sobre torneios. 

Nota Adicional II: Sobre William Marshal (ou Guilherme Marechal), já tínhamos redigido nesta página um artigo biográfico. O mesmo intitula-se: "William Marshal, Conde de Pembroke e Cavaleiro por Excelência". 

Nota Adicional III: Em 1066, encontramos referência sobre a morte de um Godfrey de Preuilly, morto num alegado "torneio", cujas regras até foram ironicamente inventadas por ele. Todavia, Manuel de Sousa, no seu "Livro de Cavalaria", demonstra alguma prudência em torno da narrativa, considerando que não existem evidências suficientes que confirmem as origens dos torneios no âmbito dessa datação, pelo que, prefere alinhar na ideia teórica de que os torneios começaram a ganhar expressão nos inícios do século XII, percorrendo a restante Idade Média.  




Referências Consultadas:

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Curiosidades Históricas XLIII-XLIX


Curiosidade Histórica XLIII - O embuste do Dr. Torralba

Eugénio Torralba foi um médico espanhol, natural de Cuenca (ou de Deza – Soria), que terá vivido entre os anos de 1460 e 1538. Ele teria feito os seus primeiros estudos em Salamanca, tendo depois aprofundado Medicina em Itália, nomeadamente na Universidade de Ferrara. No entanto, é certo que ele viria a demonstrar interesse paralelo por disciplinas proibidas do seu tempo como a astrologia e a necromancia. Sabemos ainda que chegaria a servir como médico e consultor do cardeal Raffaelo Sansoni Riario, sobrinho do Papa Sisto IV. Em anos posteriores, tornou-se igualmente médico e consultor do cardeal cismático Bernardino López de Carvajal e do cardeal Francesco Soderini.
Entre 1520 e 1526, viveu e trabalhou em cidades como Valladolid, Cuenca, Roma e Bolonha, como médico e homem de confiança de várias personalidades da corte e da cúria. Até aqui, tudo parecia ser um percurso natural de um profissional de sucesso do seu tempo.
No entanto, e aproveitando-se da falta de cultura e do analfabetismo das povoações que habitavam na sua região, o Dr. Torralba inventou um ardil de forma a ganhar mais dinheiro (ou será que ele acreditava mesmo nas suas visões?). Ele começou por argumentar que tinha uma relação de aproximação privilegiada com um suposto duende que denominou de Zequiel. De acordo com os seus argumentos, este duende mágico lhe tinha ensinado vários segredos, nomeadamente relacionados sobre o uso e propriedades de várias plantas medicinais, cenário que poderia resultar na descoberta das curas para as doenças mais complexas que os seus diversos pacientes apresentavam. Assim, começou a receber somas de dinheiro avultadas porque os seus clientes, desprovidos de espírito crítico, acreditavam cegamente nas lendas em torno da existência dos duendes e dos seus poderes mágicos.
O Dr. Torralba alegara ainda que o duende o havia ajudado a viajar desde Valladolid até Roma para assistir, em primeira mão, ao saque de Roma ocorrido a 6 de Maio de 1527 pelas forças imperiais do rei espanhol Carlos V. De acordo com o seu testemunho (compilado mais tarde pelo Santo Ofício), o duende Zequiel ajudou o médico a subir para cima dum bastão ou de uma cana e aquele teria sido ainda guiado por uma nuvem de fogo, tendo viajado pelos céus até à Cidade Eterna em tempo recorde. Ao fim de duas ou três horas de aventura, regressaram finalmente a Valladolid.
Em inúmeras das aparições narradas, o duende teria ainda anunciado ao médico acontecimentos inéditos que iriam ocorrer no futuro.
No entanto, a história, sendo uma ilusão ou até mesmo um embuste do médico, seria desmascarada. A própria Inquisição não achou qualquer graça a estes relatos, tendo ordenado uma investigação que culminou na detenção de Torralba.
Ele viria a ficar aprisionado em Cuenca. De acordo com um artigo de Eduardo Gil Bera publicado na página da Real Academia da História, o Dr. Torralba sofreu, em 1528, uma audiência de tormento. O processo instruído pelo inquisidor Ruesta, durou até 1531, altura em que o médico sinistro foi admitido à reconciliação e condenado à prisão e ao sambenito. Em 1535, ele seria finalmente perdoado pelo inquisidor Alonso Manrique, com a condição de nunca mais citar ou falar com Zequiel.
No seu final de vida, o Dr. Torralba seria nomeado médico e consultor do almirante de Castela, Fadrique Enriquez. Ele viveria em Medina de Rioseco pelo menos até 1538. Terá falecido nessa altura ou muito pouco tempo depois.





Legenda - O Dr. Torralba afirmava ter entrado em contacto com o duende Zequiel. Ilusão ou embuste?
Direitos da Imagem: Site "En Buena Lid"


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Curiosidade Histórica XLIV - Ford vs Ferrari, uma rivalidade épica na década de 60

A Corrida “24 Horas de Le Mans” (França) é ainda hoje considerada como a maior do planeta, tendo em conta que esta prova de resistência prevê mesmo 24 horas de competição (embora os pilotos possam alternar em períodos intercalados de forma a usufruírem de algum tempo de descanso). Esta icónica prova foi criada em 1923, e durante as décadas posteriores de 50, 60 e 70, atingiu o auge.
Entre os anos de 1960 e 1965, os carros potentes e inovadores de Enzo Ferrari (os famosos Ferraris) permitiram à marca italiana acumular várias vitórias esclarecedoras na prova de Le Mans. A Scuderia Ferrari, fundada originalmente pela personalidade em cima citada, estava agora a alcançar os seus primeiros grandes êxitos em corridas, isto depois de uma Segunda Guerra Mundial que condicionou, em muito, os seus progressos.
No entanto, se na Itália se erguia um colosso, nos Estados Unidos da América, a marca Ford (criada em 1903 por Henry Ford) pretendia impor-se igualmente na excelência da produção de veículos, e a participação em corridas prestigiadas poderia conceder a visibilidade desejada para que a super-empresa almejasse a hegemonia no mercado mundial. Em 1963, a direcção da Ford apresentou mesmo uma proposta para tentar comprar a Ferrari que atravessava, na altura, algumas dificuldades financeiras. A empresa norte-americana queria assumir a hegemonia nos carros desportivos. Alguns alegam que uma das condições propostas previa que a Ferrari não pudesse participar nas mesmas provas do que a Ford, não ofuscando assim os seus interesses. Por outro lado, a Ford não se contentava em ser apenas a maior produtora de veículos daquele tempo, ansiando por incutir mais qualidade e excentricidade à sua marca. Por uma questão de prestígio e de honra, e revelando-se claramente insatisfeito ao deparar-se com a proposta que lhe surgiu na frente, Enzo Ferrari não deixou vender o seu legado e manteve a independência da marca (embora tenha depois iniciado em 1965 uma parceria com a FIAT). Por seu turno, Henry Ford II (neto do fundador) não digeriu bem a recusa pelo que jurou vencer a todo o custo a marca italiana em futuras competições, estando disposto a investir muito dinheiro para que tal acontecesse. O embate entre estas duas grandes marcas seria inevitável.
Dentro deste contexto, a Ford iria desafiar o mundo desportivo do automobilismo ao participar, pela primeira vez, na Corrida de Le Mans em 1964. É certo que a Ford se preparou minuciosamente para esse grande evento, no entanto não terá sucesso imediato nas edições de 1964 e 1965. Sabemos que a companhia faria, nestes tempos, um acordo com o já afamado construtor de veículos norte-americano Carrol Shelby tendo em vista o fabrico de um carro inovador capaz de competir com a potência inerente aos Ferraris. Dali sairia o célebre clássico Ford GT40 (produzido entre 1964 e 1969). Em breve, a Ford apostaria também as suas fichas no piloto Ken Miles, um corredor britânico que, embora pouco temperamental, contava já com um currículo de respeito. Sabia-se que era também mecânico e que gostava de participar com os seus carros desportivos em corridas relevantes de pendor regional e nacional, onde tinha obtido já notáveis resultados. Miles era um condutor arrojado e um hábil manobrador, não hesitando em explorar a velocidade dos seus carros. Ainda assim, a escolha que recairia em si não foi consensual. Miles que tinha combatido pelos britânicos na II Grande Guerra Mundial era acusado de não ter propriamente uma postura de classe que se identificasse com os altos padrões da empresa norte-americana, mas a insistência do construtor Carrol Shelby permitiu que ele liderasse a equipa de pilotos da Ford em Le Mans. No ano de 1965, ele participou então na corrida de Le Mans pela Ford, tendo sido obrigado a abandonar juntamente com Bruce McLaren por problemas ocorridos na caixa de velocidades. Todavia, ambos voltariam a ter uma nova oportunidade no ano seguinte, embora correndo agora em carros diferentes da Ford.
Em 1966, a Ferrari partia claramente como favorita para a nova prova de Le Mans, tendo em conta os seus sucessos estonteantes nas edições dos últimos cinco ou seis anos. Contudo, a Ford começa o ano de 1966 com duas vitórias importantes com Ken Miles e o seu colega de corrida, Lloyd Ruby, a levarem a melhor nas corridas norte-americanas das “24 Horas de Daytona” (5/6 de Fevereiro) e das “12 Horas de Sebring” (26 de Março).
Mas a “Corrida de 24 Horas de Le Mans” iria ser o tira-teimas épico de uma Ford em fase crescente contra uma Ferrari que parecia imparável.
Henry Ford II, proprietário da empresa norte-americana, foi o escolhido para dar o tradicional tiro de partida em Le Mans. A prova decorreria na passagem entre os dias 18 e 19 de Junho.
Na primeira volta, a Ford, representada por mais de uma dezena de carros (cada um a cargo de dois condutores responsáveis, embora um destes estivesse sempre na zona de staff para substituir o colega, de forma a gerir os tempos de descanso), parece assumir a liderança, mas logo depois começariam a surgir problemas. Após um embate (e aconteceram, na verdade, algumas colisões logo no início), a porta do carro de Ken Miles ficou seriamente danificada, tendo sido o seu fecho destruído (ou seja, a porta não se encerrava na totalidade, impedindo o foco do condutor na corrida). Parecia que o pesadelo da desistência do ano anterior voltava a pairar no horizonte do piloto britânico, contudo a porta seria logo consertada quando o piloto parou nas boxes. Na verdade, Miles recuperou deste atraso, imprimindo altas velocidades e aproximando-se novamente do grupo de liderança da prova.
Também Dan Gurney da Ford ia bem lançado, contudo o mexicano Pedro Rodriguez (e o seu condutor associado Richie Ginther), à frente de um Ferrari, era quem liderava. A noite trouxe alguns chuviscos e uma acrescida vantagem dos Ferraris, dado que alguns Fords tiveram que trocar as pastilhas de freio. Ainda assim, a Ford perdeu mais quatro ou cinco carros entre a noite e a manhã, devido a problemas nos motores e a um acidente entretanto ocorrido. Todavia, isto não impediu a companhia norte-americana de continuar a disputar o triunfo final na prova, enfrentando a concorrência da Ferrari e da Porsche. No entanto, até a Ferrari seria assolada por desistências e isso acabaria, em breve, por ter um impacto determinante dado que os seus melhores pilotos foram forçados a abandonar. Os carros de Pedro Rodriguez & Richie Ginther e de Lorenzo Bandini & Jean Guichet não conseguiriam completar a corrida, pelo que causaram um terrível impacto nas ambições da companhia italiana.
A partir dum certo momento, a Ford passou a assumir a liderança. Ken Miles evidenciou-se batendo recordes de velocidade a cada volta. Parecia que, nas horas derradeiras, estava encontrado o vencedor. Contudo, Leo Beebe, diretor de corridas da Ford, queria uma vitória pomposa pelo que deu instruções para que Ken Miles abrandasse de forma a cruzar a meta juntamente com os outros dois carros da Ford que já vinham atrás na demanda por um lugar no pódio. No entanto, isto custaria a vitória a Ken Miles, dado que, ao chegarem, em simultâneo, os três veículos à meta, seria utilizado um critério de desempate que viria a favorecer os seus colegas do outro carro da Ford – os neozelandeses Bruce McLaren e Chris Amon que também tinham completado 360 voltas mas que tinham partido poucos metros atrás de Ken Miles (e do seu colega associado Denis Hulme) quando se dera o arranque da corrida. Apesar da vitória indiscutível da Ford na prova, a verdade é que Miles nunca digeriu bem esta injustiça, dado que ele havia sido o melhor piloto da corrida e que só tinha abrandado para obedecer aos caprichos do staff da Ford. Miles perderia a oportunidade histórica de ter sido o primeiro piloto a vencer, no mesmo ano, as “24 Horas de Daytona”, as “12 Horas de Sebring” e a “Corrida das 24 Horas de Le Mans”.
Como se não bastasse, dois meses depois, Ken Miles perderia a vida quando participava num teste interno de preparação que incidia em torno dum novo modelo da Ford GT40. Ao que parece, os travões falharam ou o sistema de transmissão bloqueou, provocando um despiste fatal.
Depois do êxito de 1966, a Ford voltaria a vencer a prova de Le Mans em 1967, 1968 e 1969, perdendo depois, em grande parte, a hegemonia para a Porsche nesta competição que ainda hoje perdura.
Muito recentemente, em 2019 foi lançado o filme “Ford vs Ferrari”, dirigido por James Mangold, o qual reflecte a rivalidade vivida naqueles tempos entre estas duas grandes empresas automobilísticas.






Legenda - Ford e Ferrari protagonizaram uma grande rivalidade na década de 60.
Direitos de Imagem: Filme "Ford vs Ferrari" (Dir. James Mangold)



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Curiosidade Histórica XLV - KFC vs Mcdonald's


Harland David Sanders, também conhecido como Coronel Sanders, viria a ser um dos maiores dinamizadores da gastronomia norte-americana e mundial.
Ele nasceria em Henryville (Indiana), a 9 de Setembro de 1890. Devido ao falecimento prematuro de seu pai, teve de cuidar dos seus irmãos. Desde tenra idade, ele assumiria várias profissões, nomeadamente agricultor, motorista, bombeiro, advogado e vendedor de seguros.
A sua vida foi marcada, nestes primeiros tempos, por momentos turbulentos. Quando fora advogado, ele envolvera-se numa rixa com um cliente em pleno tribunal, e enquanto vendedor de seguros, acabaria por ser expulso por insubordinação.
Apesar dos efeitos dramáticos da Grande Depressão Norte-Americana, Harland Sanders abriria, no ano de 1929, uma estação de serviço em Corbin (Kentucky), onde começou a cozinhar e a servir frango frito. Muitos clientes, nomeadamente viajantes famintos, passariam por lá de forma a satisfazerem os seus paladares.
Um dia, Harland Sanders iria envolver-se num tiroteio com um operador de comida rival por causa de uma disputa em torno de cartazes publicitários na região. Um dos homens de Harland seria morto pelo seu rival Matt Steward (o qual apanhou vários anos de prisão, deixando assim de ser um concorrente local), enquanto Harland Sanders atingiria um dos oponentes, ferindo-o apenas no ombro e escapando assim de uma sentença severa.
Durante quarenta anos, Harland Sanders revelou ser um homem duro e por vezes, agitado.
Ele panaria o frango com diversas ervas e especiarias, usando diversas técnicas. Além disso, teve de acelerar o processo de produção/confecção para que tivesse capacidade de resposta para um número cada vez mais crescente de clientes interessados.
Em breve, ele apostaria na restauração, e em particular, num restaurante de mesas. O restaurante torna-o numa celebridade local. Em 1935, foi mesmo nomeado como “Coronel de Kentucky” pelo governador Ruby Laffoon.
Sanders expandiria o seu negócio através de vários cafés e um motel. No entanto, ele teve de vender o seu restaurante original porque, em 1955, seria introduzida uma nova rodovia inter-estadual alternativa que reduziria drasticamente o tráfego da via que servia então o seu velho espaço de restauração. Vieram dias difíceis. Chegou a estar praticamente falido e a depender de 105 dólares atribuídos pela Segurança Social Norte-Americana.
No entanto, Harland Sanders começou a viajar pelo país, vendendo a sua licença por mais de 200 restaurantes do país. Ficaria acordado que teria direito a 3 ou 4 cêntimos por cada receita de frango sua que fosse vendida nesses espaços. Em contrapartida, os proprietários dos restaurantes teriam direito a comercializar a sua receita original, lucrando com a restante margem das vendas. Mas apesar de receber uma ninharia por cada frango frito vendido, a verdade é que Sanders terá sucesso (a sua receita será muito procurada) e conseguirá embolsar cerca de 300 mil dólares por ano. Um grupo de investimento irá aperceber-se do seu potencial gastronómico e irá comprar o que restava da sua empresa (e dos seus direitos) por 2 milhões de dólares. Os investidores preservarão ainda o papel crucial de Sanders que continuará a ser a cara do negócio, aparecendo mesmo nas televisões. Por outro lado, é assumida a estratégia ambiciosa de se criar uma autêntica cadeia de restaurantes de fast-food denominados de Kentucky Fried Chicken (KFC), cenário que se repercutirá sobretudo a partir da década de 60. Mais de 3.500 restaurantes seriam franqueados.
Sanders continuou a visitar os restaurantes da KFC em todo o mundo, conhecendo cada realidade que se lhe deparava. Chegou também a ter uma divergência judicial com a companhia proprietária dos seus restaurantes, mas tudo acabaria por se revolver.
Ele morreria de leucemia com 90 anos de idade, em 16 de Dezembro de 1980. Nos últimos anos de vida, usou parte da sua fortuna para criar uma instituição de caridade e conceder bolsas de estudo.
A sua cadeia de restaurantes KFC está hoje espalhada pelos quatro cantos do mundo, alcançando lucros exorbitantes.


Um rival superior - o surgimento da Mcdonald's

Além do espírito empreendedor do Coronel Sanders, é importante referir que, na sua época, uma nova cadeia de restaurantes iria evidenciar-se com notável brio, suplantando quase toda a concorrência.
Em 1940, os irmãos Dick (Richard) e Mac (Maurice) McDonald possuíam uma espécie de restaurante de drive-in ou churrascaria cujas refeições assentavam à base de hambúrgueres, batatas fritas e batidos, procurando dar uma rápida capacidade de resposta aos seus clientes. Começaram a pensar na ideia de colocarem empregadas a servir junto aos carros. Eles reinventariam o seu próprio restaurante e a própria cozinha norte-americana, fazendo do serviço fast-food um sucesso. O novo sistema Speedee garantia uma eficiência nunca antes observada. A automatização, a rapidez e a qualidade do produto passaram a ser as metas a atingir por parte dos novos empresários.
As suas vendas aumentariam em 40%. Os fundadores conseguem lucrar 350 mil dólares ao ano, contudo não pensam em expandir-se. No entanto, Ray Kroc, um empresário norte-americano, iria ingressar na empresa como franqueado em 1955. Ray está disposto a tudo (recorrendo a empréstimos bancários e a grupos de investimento) para tornar este modelo de restaurante num sucesso à escala nacional e internacional, desejando a construção de um império. Em 1961, ele irá comprar as patentes dos dois irmãos por um total de 2,7 milhões de dólares. Ray não só recuperará o investimento avultado que realizou na expansão de novos restaurantes e na aquisição das patentes, como irá enriquecer rapidamente. A empresa irá readaptar-se aos novos tempos, servindo muitos dos produtos originais, mas complementando com outras novidades que permitiram dar uma resposta certeira às necessidades do mercado consumista.
A McDonald’s é actualmente a maior cadeia de restaurantes do mundo, servindo em mais de 37 mil localizações e contando com uma facturação superior a 20 mil milhões ao ano.





Legenda- Harland Sanders, o criador da marca KFC.





Legenda- Os irmãos Dick e Mac McDonald, fundadores do McDonald's que viria a tornar-se num império através da visão de Ray Kroc.
Direitos da Imagem: Filme "Fome de Poder" (Dir. John Lee Hancock, 2016)



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Curiosidade Histórica XLVI - O Sacrifício de Leónidas e dos seus 300 Guerreiros Espartanos


Leónidas foi um dos soberanos-guerreiros mais corajosos da Idade Antiga. Ele havia nascido em Esparta por volta de 540 a. C., sendo fiel à causa da sua cidade-estado. Ele era filho do rei agíada Anaxandridas II.
O Estado Espartano exigia que os seus habitantes servissem de forma incondicional os seus desígnios, mesmo que isso justificasse o sacrifício das suas vidas. Os espartanos chegaram a desenvolver uma força militar de elite que seguia de forma rígida e brutal os padrões de combate da época.
Depois de ter alcançado 7 anos de idade, Leónidas teve, tal como qualquer criança espartana, que deixar o berço familiar e ingressar na cultura belicista predominante, tendo mesmo que enfrentar sucessivos desafios que colocariam em causa a sua sobrevivência. O jovem participaria em duelos com outros adolescentes que poderiam, por vezes, ser letais e até mesmo em digressões em terras inóspitas. Depois de superar tais adversidades e de completada a sua formação, Leónidas estava assim preparado para subir ao trono até porque os seus irmãos mais velhos já tinham falecido.
No entanto, uma nova ameaça irrompeu no horizonte. A poderosa Pérsia governada pelo imperador Xerxes iria invadir a Grécia, de forma a punir Atenas por ter incentivado rebeliões e expedições em épocas anteriores contra o seu território. Além disso, os persas ainda tinham na memória o desaire recente na Batalha de Maratona (490 a. C.), o que constituiu uma primeira tentativa frustrada de invadir a Grécia, isto ainda no reinado de Dário I.
Mas desta vez, os persas, com a presença pessoal de Xerxes, avançarão com uma força terrível composta por mais de 200 mil homens. Neste momento, Atenas começava a experimentar o advento da nascente democracia. Temístocles, político e general ateniense, evidencia-se neste contexto, e convence as elites a reforçar o poder da sua marinha, tendo já ordenado em anos anteriores a construção de diversos barcos de guerra (os célebres trirremes), dado que o controlo dos mares era fundamental para salvaguardar a integridade do território helénico. Todavia, em terra, serão também necessários reforços, e Atenas, sozinha, não terá meios suficientes para resistir ao poderoso adversário. Recorde-se que, nesta altura, a Grécia estava longe de ser uma nação una, dado que existiam diversas cidades-estado independentes e com regimes distintos de governação. Por exemplo, Atenas e Esparta chegaram a manter, no passado, uma rivalidade amarga. Mas agora os governantes atenienses são obrigados a engolir o seu orgulho e a pedir ajuda ao velho estado rival. Inicialmente, os espartanos demonstram alguma renitência, mas por fim, temendo que os persas se apoderassem de todos os domínios gregos, decidiram aderir à causa.
Os espartanos receberam igualmente emissários persas que, de forma sigilosa, demonstraram a intenção de Xerxes invadir de forma implacável a Grécia, exigindo como solução alternativa a submissão pacífica de todos os territórios de forma a evitar-se um massacre, contudo os negociadores não foram bem-sucedidos porque Esparta queria manter a todo o custo a sua independência. Pouco tempo antes do início da guerra, Leónidas, um dos dois reis de Esparta, decidiu consultar o mítico Oráculo de Delfos, sítio profícuo donde emanavam as mais diversas profecias divinas ou premonições terrenas. Aí Leónidas ficará a saber que um rei de Esparta terá de morrer em combate para que o Estado Espartano possa sobreviver à nova ameaça. Mas essa era mesmo a essência desta nação – o sacrifício individual era exigido a todos para que esta não ficasse comprometida. E sabendo deste vaticínio melindroso, Leónidas estava disposto a dar a sua vida pela causa espartana e pela integridade do seu povo.
Em 480 a. C., Xerxes dá início à invasão, liderando uma força heterogénea de 200 mil homens provenientes de todas as regiões da Pérsia. Ele recorre a vários tipos de animais que poderiam ser usados em combate, nomeadamente elefantes, cavalos, tigres e até rinocerontes.
As cidades-estado gregas conseguiram reunir apenas 7 mil homens, sendo que Leónidas liderava um contingente de 300 espartanos que incluía os melhores que tinha à sua disposição e que já tinham sido pais, assegurando assim a descendência do seu nome. Estas forças helénicas enveredarão pela decisão de enfrentar o numeroso exército invasor no desfiladeiro de Termópilas. À frente, estará naturalmente a força espartana, mais habilitada para o combate militar. Todos os outros (téspios, coríntios, arcádios, lócrios, focenses) ficarão na retaguarda.
A ideia de enfrentar os persas num desfiladeiro foi, sem dúvida, uma excelente decisão estratégica, visto que anulava, em grande parte, a superioridade numérica do adversário, forçando-o a lutar por um caminho estreito sem ter grande espaço de manobra e sem poder usar toda a sua força em simultâneo.
A batalha terá acontecido no Verão de 480 a. C. (Agosto ou Setembro) e irá durar por cerca de uma semana, embora contabilizando-se, em termos práticos, três dias de intensos combates. Quando observaram a formação de soldados espartanos a barrarem-lhes o caminho pelo desfiladeiro, os emissários persas terão tentado algum tipo de negociação e pedido àqueles que baixassem as armas, ao que Leónidas retorquiu em forma de grito de guerra: “Vinde cá buscá-las!”. Assim sendo, uma primeira força persa, não muito experiente ou pouco talhada para o combate, avançou para os enfrentar. Os espartanos mantiveram a formação com os seus escudos e lanças e gradualmente varreram esta primeira investida persa que logo se dispersou. Muitos persas caíram no estreito marítimo de Artemísio que, apresentando correntes instáveis, ladeava o desfiladeiro e garantia uma morte praticamente certa a quem caísse nas suas águas. Recorde-se que este estreito era igualmente disputado entre a frota persa e a marinha ateniense, sendo que esta última procurava negar o acesso ao mesmo, de forma a não comprometer a resistência no desfiladeiro.
Após a primeira tentativa fracassada, Xerxes decidiu esperar quatro dias até voltar de novo ao ataque. Desta feita, enviará novos conjuntos de infantaria ligeira constituídos por soldados das regiões da Confederação Meda e do Cuzistão. O enfrentamento será agora um pouco mais equilibrado. Ambas as forças chegam a empurrar-se mutuamente como “muralhas em movimento”, contudo os espartanos estavam dotados de escudos mais resistentes e de lanças muito mais largas e eficazes, beneficiando ainda da sua alta preparação militar. Apesar de já sofrerem algumas baixas, os espartanos voltam a triturar o inimigo que acaba por cair no desespero.
Cansado de ver milhares de homens a cair diante de 300 espartanos, o imperador persa Xerxes ordenará um segundo assalto nesse mesmo dia. Mas desta vez, não lançará soldados inexperientes ou apenas regulares, mas sim a sua força de elite: os “Imortais” (designação assente na ilusão de que quando um soldado deste destacamento caísse, outro estaria logo atrás para o substituir, transmitindo a falsa ilusão de que não morriam; aliás, os “Imortais” constituíam um destacamento de 10 mil homens). Eram homens bem versados na arte das lanças (embora mais curtas), das espadas, das adagas e também dispunham de bons arqueiros.
Os “Imortais” lançaram-se assim sobre os Espartanos, mas Xerxes ficará em breve horrorizado. A sua melhor força de combate não consegue abrir brechas na linha inimiga. Pelo contrário, os “Imortais” sofrem consideráveis baixas e são repelidos por Leónidas e seus companheiros. Não havia dúvidas de que, num prisma de equilíbrio, os espartanos demonstravam um brio militar superior à força de elite rival que, mesmo bem preparada, não conseguiria usufruir dos seus dez mil homens porque não tinha sequer espaço no desfiladeiro para usufruir da vantagem numérica que poderia ser o seu trunfo.
No sexto dia, Xerxes voltou a ordenar cargas de infantaria para forçar a passagem pelo desfiladeiro, esperando que o desgaste acumulado dos defensores começasse a surtir efeito, mas novamente não tem sucesso, sofrendo novamente o seu exército pesadas baixas.
Entretanto, o imperador persa Xerxes recebe a visita de um grego, de seu nome Efialtes, que a troco de uma avultada recompensa, informa o soberano de que há um caminho alternativo e praticamente oculto pelo desfiladeiro que permitirá um ataque pela retaguarda às forças espartanas e restantes destacamentos helénicos, cercando-os por completo. Ao descobrir esse caminho através de um traidor grego, os persas podem agora atacar o adversário, bastante inferior numericamente, por ambos os lados, e rompendo assim o equilíbrio. Tendo consciência de que a batalha pela defesa do desfiladeiro está perdida, Leónidas decide resistir até ao fim com os seus homens, mas convence muitos dos outros destacamentos gregos a abandonarem rapidamente as suas posições de modo a que muitos soldados preservem as suas vidas, podendo assim participar em outras batalhas futuras contra o invasor.
Os persas avançarão pelo tal caminho oculto e não terão muitas dificuldades em colocar em debandada alguns dos defensores focenses que deveriam vigiar essa área.
Os cerca de 300 espartanos estão agora praticamente sós, contando apenas com 700 téspios (representados por Demófilo) e alguns tebanos que recusaram, a todo o custo, abandonar a batalha, preferindo morrer em glória e assegurando a retirada segura dos outros contingentes gregos que acabavam de deixar a batalha.
No sétimo e derradeiro dia da batalha, os espartanos de Leónidas e os seus aliados voltaram a pegar nas suas lanças, escudos e espadas, fazendo custar muito caro cada avanço dos persas que os atacavam de todos os lados. Dois irmãos de Xerxes perecerão na batalha, mas a verdade é que os espartanos começam a sofrer fortes baixas, não conseguindo já manter a sua formação defensiva e organizada. A batalha irá virar a anarquia, o que favorecerá os persas que, em maior número, e controlando já quase todo o desfiladeiro, só têm de eliminar um ou dois focos de resistência. Como já tinham feito em momentos anteriores, os persas recorrerão novamente ao lançamento de autênticas “chuvas de flechas”, eliminando gradualmente os combatentes que ainda se lhes opunham. Leónidas acabará por cair em combate juntamente com muitos dos seus homens que lutaram até ao último suspiro.
Os persas acabariam por vencer a batalha de Termópilas, mas perderam mais de 20 mil homens para conseguirem passar pelo desfiladeiro. Por seu turno, os espartanos perderam todos os seus homens (300), após uma resistência heróica. Terão igualmente falecido cerca de 2 mil aliados gregos durante o confronto que durou por uma semana. Mas a proporção é clara – por cada soldado helénico morto, faleceram 10 persas.
Depois de passarem o desfiladeiro, os persas saquearão e atacarão várias cidades gregas que, desguarnecidas, sofrem as consequências de um invasor irado. Atenas será evacuada e ficará à mercê dos invasores que a pilharão e a incendiarão, não perdoando sequer os seus principais monumentos ou edifícios.
Mas a campanha de Xerxes durará por pouco tempo. Ainda nesse ano de 480 a. C., a sua frota será derrotada na Batalha Naval de Salamina, onde a marinha helénica, comandada pelo general ateniense e democrata Temístocles, afundará 200 navios persas. Finalmente, em 479 a. C., dá-se a batalha de Platea (ou Plateias), onde os persas, já sem Xerxes que havia regressado ao seu território, sofreram dezenas de milhares de baixas diante das ligas helénicas.
A invasão da Grécia terminava após muito sangue derramado, resultando na destruição total ou parcial de várias regiões mas sem hipotecar a sobrevivência das suas principais cidades-estado.
O heroísmo de Leónidas, Demófilo e Temístocles impediu que a cultura helénica se pudesse extinguir, e a nascente democracia, embora para já exclusiva da cidade-estado de Atenas, ficaria também a salvo.




Legenda: Soldados Espartanos formam uma linha defensiva com escudos e lanças, sendo liderados pelo seu rei Leónidas.


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Curiosidade Histórica XLVII - Quando Mao Tsé-Tung cometeu o erro de ordenar o extermínio de pardais


Desde o fim da Guerra Civil Chinesa (1927-1937 e com uma segunda fase entre 1945-1947) que a China estava sob a égide do comunismo. A partir de 1949, o carismático Mao Tsé-Tung tornou-se oficialmente no rosto do novo regime. Mais de 90% da população era composta por camponeses, e o país ainda estava atrasado a todos níveis. Mao Tsé-Tung sonhava em dar melhores condições de vida ao seu povo, contudo continuava a insistir na repressão política e no isolamento económico do seu país, evitando ainda a entrada de capital e tecnologia estrangeiras. Visão diferente haveria de ter Deng Xiaoping que chegou a ser secretário-geral do partido e que, na qualidade de político eminente, abriria, mais tarde, o caminho para o advento de uma China moderna com um regime misto (ou dualista), comunista politicamente, mas capitalista no prisma económico (mais conectada comercialmente com o mundo exterior).
Porém, voltemos aos tempos em que a China pretendia o seu renascimento, embora o contexto interno não fosse o mais favorável porque a miséria social abundava.
Entre 1958 e 1960, Mao Tsé-Tung começou a ensaiar uma estratégia que permitisse dar o “Grande Salto em Frente”, apostando tudo no ideal de uma nação desenvolvida e socialmente igualitária e incidindo, em particular, na colectivização do campo através de uma Reforma Agrária forçada e em planos de industrialização urbana. Contudo, tal estratégia culminaria em resultados desastrosos.
Uma das iniciativas mais nefastas deste período foi a “Campanha das Quatro Pragas” que, iniciada em 1958, visava a eliminação de quatro espécies de animais que poderiam colocar em causa a economia agrícola. Assim sendo, o regime determinou que deveriam ser exterminados os mosquitos, as moscas, os ratos e os pardais (nomeadamente o pardal montês) porque prejudicavam as colheitas. No entanto, por um lado, era impossível eliminar toda a imensidão de insectos, mas em relação aos pardais, as medidas surtiram mais efeito. Durante cerca de três anos, um bilião de pardais foram mortos devido ao facto de comerem os grãos e as sementes. Para fazer desaparecer esta espécie dos seus céus, os agricultores chineses batiam panelas e frigideiras, ou até tambores, para assustar as aves, impedindo-as de pousar. Muitos pardais, cansados de voar, acabariam por tombar de exaustão. Os chineses mais novos recorreram a figas, e outros, mais equipados, usaram armas de fogo para os alvejar. Inúmeros ninhos foram destruídos. As aves quase desapareceram do mapa.
O problema é que os pardais, além de comerem grãos (o que prejudicava a produção agrícola), também digeriam inúmeros insectos e contribuíam decisivamente para o equilíbrio ecológico. Com poucas aves nos céus da China, mosquitos e moscas irromperam pelas colheitas, provocando o caos nos campos e aproveitando-se do facto de não existirem predadores. De repente, surgiram também terríveis pragas de gafanhotos. A produção baixaria ainda mais...
Quando os responsáveis políticos se aperceberam do erro que haviam cometido, já era tarde demais, embora tenham cancelado a caça desenfreada àquela espécie.
O abate desmesurado de pardais seria, sem dúvida, uma das causas que originou a Grande Fome Chinesa (1959-1961), a qual provocou, pelo menos, cerca de 30 milhões de mortes.




Legenda - Cartaz Propagandístico do Regime Chinês contra os pardais.
Direitos de Imagem: knowledgeglue.com


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Curiosidade Histórica XLVIII - Arquimedes, o Génio de Siracusa


Arquimedes (287-212 a. C.) foi um dos principais matemáticos, físicos e inventores gregos da Antiguidade. Ele faria grande parte da sua vida em Siracusa (cidade-estado ou bastião helénico que era parte integrante da Ilha da Sicília), embora tenha alegadamente estudado na Escola de Matemática de Alexandria, onde terá convivido com Eratóstenes de Cirene, o matemático que fez o primeiro cálculo da circunferência da Terra.
A contribuição de Arquimedes foi transversal a vários campos. Por exemplo, ele viria a ser pioneiro da ideia da “gravidade específica” directamente associada ao Princípio de Arquimedes, onde “qualquer corpo mais denso que um fluido, ao ser mergulhado neste, perderia peso correspondente ao volume do fluido deslocado". Na geometria, o erudito viria a demonstrar um interesse particular pelo estudo das esferas e dos cilindros.
Ao nível das invenções, criou o “Parafuso de Arquimedes”, uma espécie de mola espiral que permitia elevar a água, através de um cilindro ou tubo, para uma posição mais alta ou sólida no exterior. Ou seja, esta máquina hidráulica antiga permitiria extrair água ou bombear/drenar lamas e resíduos.
Mas Arquimedes também fez com que os seus conhecimentos chegassem ao sector militar, como veremos já de seguida. No ano de 216 a. C., morre o rei de Siracusa - Híeron II, o qual seria supostamente seu aparentado. Pouco tempo depois, e no âmbito da Segunda Guerra Púnica, os romanos aproveitam o contexto para tentar afirmar o seu domínio no Mar Mediterrâneo e, entre outras campanhas, lançam-se à conquista da cidade-estado costeira de influência helénica de Siracusa com o objectivo de garantir controlo total da Sicília enquanto província insular romana.
No entanto, os romanos liderados pelo general Marco Cláudio Marcelo não vão ter vida fácil, dado que o cerco de Siracusa se arrastará por muito tempo. Os siracusanos, sob a liderança do soberano sucessor Epícides, vão dar luta e pedirão mesmo ao seu conterrâneo Arquimedes para ajudar com as suas invenções.
O inventor grego aperfeiçoará e desenvolverá alavancas que aplicadas nas catapultas serão fundamentais para bombardear, com boa eficácia, a frota invasora, recorrerá a um enorme gancho operado por guindaste (“A Garra de Arquimedes”) que levantaria e derrubaria os navios inimigos que se aproximassem demasiado das muralhas, e por fim, terá criado vários espelhos gigantes que, exibidos no alto das linhas fortificadas de Siracusa, projectariam os poderosos raios solares contra as embarcações inimigas, incendiando-as.
Por seu turno, os romanos procuravam tomar a cidade através de escadas de assalto, do poder de fogo dos seus barcos e de uma torre de cerco (movida por roldanas), mas encontravam sempre forte resistência da guarnição. Durante o bloqueio, as forças de Marco Cláudio Marcelo tiveram ainda que aniquilar uma frota de socorro enviada pelos cartagineses que tentou, em vão, libertar Siracusa do cerco.
No entanto, os siracusanos, talvez demasiado confiantes, caíram no erro de subestimar o poder emergente de Roma e decidiram realizar o Festival Anual consagrado à sua Deusa Artémis. Assim sendo, um pequeno grupo de soldados romanos aproximou-se da cidade (com a população agora mais relaxada e distraída) durante uma noite e conseguiu escalar os muros, tendo conseguido furar as defesas.
O General Romano Marco Cláudio Marcelo ordenou que Arquimedes fosse poupado porque queria conhecer a brilhante mente que estava por detrás da criação daqueles dispositivos inovadores de defesa. No entanto, o inventor helénico continuou a realizar os seus trabalhos, mesmo quando os romanos já estavam no interior da cidade, violentando todos aqueles que encontravam nas ruas. Entretanto, Arquimedes foi perturbado por um soldado romano. O sábio protestou contra essa interrupção do seu trabalho e disse grosseiramente ao soldado para sair; o soldado, sem saber quem ele era (ou talvez ciente de sua identidade como criador de máquinas de guerra que tinham causado a morte de centenas de romanos), matou Arquimedes no local, desobedecendo às normas superiores.
Apesar de terem conquistado a parte externa da cidade, a verdade é que, só oito meses depois, os romanos entravam, através de um conluio acordado com um traidor que abriu as portas, na cidadela fortificada interior de Siracusa, para onde muitos cidadãos se tinham refugiado. Os romanos saquearam, mataram e escravizaram muitos siracusanos, não lhes perdoando a resistência ousada que tinham encetado.
Cícero, filósofo romano, visitaria, mais tarde, o túmulo de Arquimedes, descrevendo que este era encimado por uma esfera inscrita em um cilindro, as duas formas que ele mais apreciara.





Legenda - Arquimedes inovou os dispositivos militares defensivos de Siracusa, durante o cerco romano que seria concretizado essencialmente através de uma abordagem naval contra as muralhas desta cidade costeira. 


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Curiosidade Histórica XLIX - Heron de Alexandria


Heron viveu entre 10 a 80 d. C., tendo sido um génio que encetou descobertas determinantes. Ele viria a ser um engenheiro dotado de Alexandria, cidade que, na época, se encontrava munida da maior biblioteca mundial, conjugando todo o conhecimento herdado até então.
Da sua vida, pouco sabemos, mas ao nível das suas contribuições científicas, ele apuraria a fórmula que determinaria o cálculo da área do triângulo e utilizaria métodos iterativos para se aproximar da decifração da raiz quadrada. Desvendaria igualmente que o ar poderia ser usado para fazer pressão sobre objectos e corpos, visão que foi inovadora para a época. Dentro deste contexto, ele criaria o primeiro motor a vapor documentado, a eolípila, embora a sua finalidade na época fosse apenas para lazer ou entretenimento, não conhecendo ainda um efeito prático relevante. Tratava-se de uma esfera oca que se ligava a um par de tubos que, por seu turno, eram conectados a um caldeirão que, se encontrando fechado, era aquecido por debaixo por uma pequena fogueira. O vapor entrava na esfera pela caldeira através dos tubos e escapava através de dois tubos dobrados projectando-se do equador da esfera, fazendo com que ela girasse. No entanto, e apesar da utilidade social da eolípila ser muito discutível, certo é que esta descoberta permitiria alargar horizontes nos séculos posteriores.
Heron foi ainda responsável pela regra do paralelogramo, ao nível da composição de velocidades. Ele viria a concentrar os seus esforços no estudo dos pequenos centros de gravidade e das engrenagens.
Sabemos também que desenvolveu as teorias do movimento e do equilíbrio, bem como métodos de elevação e transporte de objectos pesados com recurso a dispositivos mecânicos.
O trabalho geométrico mais importante de Heron denominava-se de “Métrica”, contudo o mesmo não foi preservado até aos dias de hoje. Julga-se que neste livro terá reunido regras e fórmulas geométricas provenientes de várias fontes (algumas originárias da antiga Babilónia), além de ter estudado áreas e volumes de figuras planas e sólidas.
Por fim, e em jeito de curiosidade, Heron inventou ainda um mecanismo que terá sido um percursor das máquinas de vendas automáticas. Ele criaria um equipamento em que quem depositasse uma moeda no orifício, o peso infligido sobre a mesma permitira fazer sair água benta tão procurada pelos cidadãos nos templos antigos. Nessa máquina de venda, a moeda inserida na ranhura, caía numa extremidade da viga funcionando como a alavanca que era pressionada para puxar a descarga.
Heron viria a ser um dos mais proeminentes inventores helénicos.




Legenda - Heron criou a primeira máquina a vapor - a eolípila, embora esta não tivesse grandes efeitos práticos.
Direitos da Imagem: Sheila Terry, Science Photo Library

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Curiosidades Históricas XXXVI-XLII


Curiosidade Histórica XXXVI - O Cavalo que (quase) se tornou Cônsul


Calígula foi um dos imperadores mais insanos e depravados de Roma. Com 24 anos de idade, assumiria o poder em 37 d. C., ano em que Tibério faleceria sem deixar grandes saudades.
Ao início, a sua chegada ao trono foi vista como bastante promissora. Ansiava-se por um advento mais estável e harmonioso no coração do Império Romano.
Segundo o Canal História, Calígula libertaria imediatamente muitos dos homens presos injustamente pelo anterior imperador Tibério e devolveu honra (através de enterramentos dignos) à memória da sua mãe (destinada anteriormente a morrer à fome numa ilha) e de dois irmãos mais velhos também vítimas da repressão tiberiana. Eliminou ainda impostos impopulares e patrocinou vários torneios de gladiadores, peças de teatro e corridas de bigas. Tudo parecia correr bem nos primeiros tempos. A prosperidade tinha voltado...
No entanto, a faceta tolerante e popular de Calígula não iria durar por muito tempo. De repente, o imperador romano adoece. Julga-se que terá entrado a partir daí numa espiral de loucura. Os seus actos mudam drasticamente. O imperador romano cede à crueldade e barbaridade: incentivará perseguições múltiplas, promoverá a tortura e execuções horrendas dos prisioneiros, manterá relações incestuosas com as suas irmãs e insultará muitas das instituições prestigiadas de Roma.
Além da sua iniquidade e opressão brutais, Calígula irá troçar do próprio Senado Romano e até de elementos da Guarda Pretoriana que o protegiam (será inclusivamente este destacamento que concretizará mais tarde o seu assassinato).
Na esfera do senado, as críticas dos altos dignitários romanos intensificavam-se contra os devaneios do Imperador. Calígula respondeu da forma mais invulgar, chegando ao ponto de querer nomear o seu cavalo preferido "Incitatus" para o prestigiado cargo de cônsul.
Este cavalo tinha sido um dos dez mil importados anualmente da Hispânia, e parece ter sido alvo de admiração do atormentado imperador que lhe conferiu um tratamento especial, nomeadamente através da colocação de vários serventes ao seu dispor, além de uma alimentação recheada.
Incitatus teve ainda direito a um estábulo de mármore com berços de marfim, cobertores púrpuras dos mais caros e ainda colares de pedras preciosas.
Apesar de o cavalo nunca ter chegado a tomar formalmente posse como cônsul, Calígula provocou claramente a ira dos senadores com esta intenção pública. O imperador romano quis fazer passar a mensagem de que as opiniões dos senadores valiam tanto como a do seu estimado cavalo, isto é, nada. Se calhar, e apesar de louco, Calígula preferia confiar mais depressa nas capacidades do seu animal do que nos outros vultos renomeados da Cidade das Sete Colinas.
Mas Calígula ganhava inimigos em todos os cantos. O seu autoritarismo tresloucado era um mal que tinha de ser cortado pela raiz. Nos bastidores, muitos murmuravam – era necessária a sua eliminação.
Como disséramos, foram os elementos da própria Guarda Pretoriana que, liderados por Cássio Quereia (guarda que era constantemente humilhado pelo imperador que o considerava afeminado), o assassinariam em 41 d. C., ao fim de quase quatro anos de reinado.




Legenda: Estátua Equestre alusiva a Incitatus, o cavalo preferido do imperador romano Calígula.
Foto da autoria de Joe Bankowski in Flickr


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Curiosidade Histórica XXXVII - A Cruz Flamejante de Goa


A Cruz Flamejante de Goa integra, sem dúvida, uma lista restrita de grandes tesouros portugueses que terão desaparecido para sempre sem deixar qualquer rasto!
Talvez datada do século XVI, ela terá adornado a Sé Catedral de Goa então administrada pelos portugueses.
Esta relíquia era feita de ouro maciço e incrustada com diamantes. Pesava 135 kg e só seria possível transportá-la através do esforço conjugado de 3 ou 4 homens.
De acordo com o Canal História, no início do século XVIII, foi necessária a sua trasladação/transferência para a metrópole. Vivia-se uma época de maior turbulência política e militar (guerras com reinos vizinhos e com outras potências europeias marítimas) pelo que a Coroa Portuguesa terá pretendido reaver, com total sigilo, alguns dos bens materiais preciosos que detinha no Oriente.
O navio português que se encarregou de transportar a Cruz Flamejante de Goa e muitos outros tesouros ficou conhecido pelo nome de "Nossa Senhora do Cabo". Ele partirá secretamente em 1721 e será tripulado por membros da Ordem de Cristo (organização descendente dos templários portugueses).
No entanto, um ciclone no Índico forçou os portugueses a libertarem-se dos canhões e de outros equipamentos de artilharia, de forma a aliviar a carga do navio e a evitar um naufrágio. Contudo, o temível pirata francês Oliver Levasseur teve conhecimento dos acontecimentos e abordou prontamente o navio então fragilizado em termos de defesa na Ilha de Reunião, a leste de Madagáscar.
Sem encontrar grande resistência, o pirata apoderou-se do navio e de todo o seu espólio. Nas suas mãos, cairiam a Cruz Flamejante de Goa, muitos lingotes de ouro e prata (que hoje seriam avaliados em centenas de milhões de dólares ou euros), moedas de ouro, diamantes, pedras preciosas e quantidades consideráveis de seda.
Acredita-se que o pirata havia instalado a sua base em Madagáscar, ilha que albergava muitos desses aventureiros odiados. Ali se refugiaria após as suas incursões terríveis no Índico.
Em 1724, Oliver Levasseur tentou negociar uma amnistia com o Governo Francês, mas este exigiu-lhe em troca uma boa parte das riquezas saqueadas ao navio português, condição recusada pelo pirata que, em breve, se arrependeria da sua ganância irredutível.
Em 1730, o pirata é capturado e enforcado pelas autoridades francesas. O paradeiro em torno dos tesouros que havia furtado ainda hoje é uma incógnita. Diz-se que, na forca, Oliver Levasseur havia desafiado a multidão a encontrá-los, lançando um papel com símbolos e códigos, ainda hoje indecifráveis, mas que alegadamente deixavam pistas quanto à sua localização.
Recentemente, uma equipa de arqueólogos e historiadores liderada por Barry Clifford e Scott Wolter realizou investigações em Madagáscar e Goa, teorizando a possibilidade da Cruz Flamejante de Goa e de muitos tesouros portugueses e estrangeiros se encontrarem submersos ao largo da costa de Madagáscar ou na pequena ilha de Sainte-Marie.
Até hoje, já se encontraram ali lingotes, artefactos religiosos provenientes da Índia e destroços de embarcações, contudo a Cruz Flamejante de Goa ainda está por descobrir. Se não foi destruída, é certo que estará algures enterrada em solo firme outrora ocupado por piratas ou talvez submersa ao longo dum imenso Oceano.





Legenda da Imagem: Uma Caravela Portuguesa
(Direitos do Quadro - A. Machado)


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Curiosidade Histórica XXXVIII - Confúcio, a esperança que emergiu do caos


A civilização da China Antiga foi uma das mais avançadas do seu tempo. Invenções como a bússola, o papel, a impressão e a pólvora imortalizaram esta sociedade asiática logo nos seus primeiros tempos de glória. Contudo, as guerras internas entre estados/principados chineses marcariam várias gerações. Presenciaram-se eras de repressão e de crueldade. A anarquia tornou-se ainda mais recorrente no período dos Reinos Combatentes (século V a. C. - 221 A. C.; embora existam propostas cronológicas que estendem as suas origens até aos séculos VIII e IX a. C.). Até um certo momento, parecia não haver uma luz ao fundo do túnel.
No meio da conjuntura turbulenta surgiria um homem que se propunha a fornecer uma visão diferente sobre a realidade. Ele não desejava criar uma religião (nem se achava sequer santo ou profeta), indicando apenas um caminho diferente para uma sociedade praticamente desprovida de princípios morais.
O seu nome era Confúcio (ou K’ung Fu-tsu). Ele havia nascido em 551 a. C. em Tsou (Estado Feudal de Lu, na China), talvez oriundo de uma família da baixa aristocracia. O seu pai, Shu-Liang He havia sido magistrado e guerreiro, enquanto a sua mãe Yen Cheng Tsai seria descendente de Po Ch’in, filho mais velho do duque de Chou. Dos onze filhos contraídos pelo casal, Confúcio era o mais novo. A morte prematura do seu pai forçou-o a trabalhar para garantir o sustento da família. Seria pastor, vaqueiro, funcionário público e guarda-livros. Viria também a assumir um cargo administrativo no seu próprio estado ou província, exercendo-o com rigor e zelo. Sabemos ainda que, com 19 anos, contrairia matrimónio com Chi-Kuan, da qual teve um filho – K’ung Li.
No que alude à sua juventude, apuramos ainda que este autodidacta apreciava história, poesia, música, sabendo cantar e tocar alaúde e cítara.
A morte da sua mãe chocou-o ainda mais. Diz-se que Confúcio chorou intensamente a partida da sua progenitora durante 2 anos e 3 meses, retirando-se mesmo da vida pública durante esses tempos.
Em termos de pensamento, Confúcio defendia um sistema que valorizasse as virtudes sociais, a moralidade, o altruísmo, a lealdade familiar, a veneração dos antigos, o respeito pelos idosos, a integridade, a sinceridade desinteressada, a caridade, o espírito de justiça e a importância da família no seio social. Confúcio apregoava ainda outros valores nomeadamente a coragem, a ética, o respeito, a coerência, a necessidade de acesso à educação/sabedoria para formar um povo capaz, a honradez… Tudo deveria desembocar no bem-estar comum. O seu código de conduta social foi uma lufada de ar fresco num território arrasado por conflitos e massacres hediondos. No entanto, e apesar de algumas viagens empreendidas ao longo de 13 anos, nenhum soberano chinês decidiu abraçar directamente as suas ideias porque encaravam as mesmas como perigosas para a realidade vigente que radicava na cultura militar.
Confúcio faleceria em 479 a. C., talvez com o desgosto de nunca ter conseguido mudar verdadeiramente a sociedade do seu tempo que continuava atolada nos conflitos bélicos. Nos seus fôlegos derradeiros, ele acreditava que a sua pregação tinha sido inútil. Ainda assim, ele teve vários discípulos que o seguiram durante a vida, nunca descartando ou escolhendo os mesmos com base na sua classe social. Aliás, alunos ricos e pobres tiveram a oportunidade de beber da sua fonte de conhecimento. A sua escola de pensamento chegaria a ter três mil alunos e isso garantiria a sobrevivência dos seus ensinamentos no futuro.
Ainda assim, as suas ideias viriam a ser reprimidas nos próximos tempos. Qin Shi Huang, Primeiro Imperador da China Unificada, foi um dos vultos que não aceitou a sua herança filosófica. Este reinaria entre 247 a.C. e 221 a. C., tendo sido responsável pela unificação territorial chinesa que ditaria o fim de vários estados independentes. Seria o mentor do projecto inicial de construção da Grande Muralha da China, e ainda sonharia com a imortalidade, enviando mesmo emissários para inúmeras regiões de forma a descobrir o elixir ou a fórmula mágica que lhe garantisse a eternidade. No entanto, Qin Shi Huang acabará por se resignar num determinado momento com a inevitabilidade do seu fim, mas mesmo assim, quis garantir uma passagem segura e triunfante para o além, ao ser sepultado juntamente com a sua mulher (e as concubinas) e com um exército de terracota composto por 8 mil unidades. No seu tempo, imperou o legalismo, isto é, as leis tinham de controlar implacavelmente os indivíduos, existindo penalidades cruéis para todos os que desobedecessem. Por outras palavras, a tirania voltaria a ser uma realidade, pelo que os pensamentos humanistas de Confúcio foram proibidos durante o reinado de Qin Shi Huang. No entanto, a dinastia de Han, iniciada mais tarde a 206 a. C., voltaria a recuperar os ensinamentos de Confúcio, fazendo inspirar os seus princípios no esboço de idealização da sociedade chinesa.
A sua filosofia irá perdurar por milénios, sendo ainda seguida ou estudada por milhões nos dias de hoje.
Deixamos, por fim, algumas das afirmações mais célebres que foram atribuídas a este pensador que sugeriu um caminho alternativo para aquela civilização oriental:

“A vingança perpetua o ódio”

“Nunca faça apostas. Se você sabe que vencerá o outro, você é um trapaceiro … E se não sabe, você é um tolo”.

“Dê um peixe para um homem e ele comerá um dia. Ensine-o a pescar e ele comerá por toda vida”

“Aquele que busca garantir o bem-estar dos outros já garantiu o seu próprio bem-estar”.

“Não responda a uma palavra raivosa com outra do mesmo teor. É a segunda, a sua palavra, que certamente os levará ao confronto”

“A ignorância é a noite da mente, mas uma noite sem lua e sem estrelas”.

“Quando um país é bem governado, pobreza e miséria são coisas que envergonham; quando um país é mal governado, o que envergonha são a riqueza e as honras”

“Exige muito de ti e espera pouco dos outros. Assim, evitarás muitos aborrecimentos”.

“Saber o que é correto e não o fazer é falta de coragem”.

“Para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade”

“Quando vires um homem bom, tenta imitá-lo; quando vires um homem mau, examina-te a ti mesmo”

“Se você tem uma laranja e troca com outra pessoa que também tem uma laranja, cada um fica com uma laranja. Mas se você tem uma ideia e troca com outra pessoa que também tem uma ideia, cada um fica com duas”




Legenda - Estátua de Confúcio, um dos grandes pensadores da Antiguidade.
Imagem retirada de: https://heiwaki.wordpress.com/


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Curiosidade Histórica XXXIX - Boudica, a Rainha Guerreira dos Celtas


Boudica ou Boadiceia é, para a maior parte dos nossos leitores, um nome desconhecido mas a história de bravura e coragem desta mulher pode ser equiparável às provas de resiliência de um Viriato, líder dos Lusitanos, e de Vercingetórix, chefe dos Arvernos da Gália, que procuraram enfrentar heroicamente as legiões romanas que, na altura, representavam um Império praticamente imparável nos seus desígnios expansionistas.
Boudica era uma rainha celta das ilhas Britânicas. O seu marido era Prasutagos, rei dos Icenos (povo estabelecido na região de Norfolk) e um dos vultos mais influentes do arquipélago. Contudo, este soberano teve que aceitar uma aliança com o Império Romano que começava a afirmar-se paulatinamente naquele domínio insular. Prasutagos foi mesmo obrigado a nomear o Imperador Romano (que, na altura, seria Nero) como co-herdeiro juntamente com as suas duas filhas. Todavia, a sua morte trouxe discórdia e tumultos. Os romanos entraram rapidamente pelo território, saqueando várias vilas celtas.
Chegados à tenda ou moradia real dos celtas, os romanos esperavam que Boudica consentisse a passagem de testemunho. Contudo, a rainha viúva terá rasgado diante deles o manuscrito que lhe havia sido entregue. Os romanos ordenaram que Boudica fosse amarrada, açoitada e chicoteada em público diante do seu povo. Como se não bastasse, ao seu lado, estavam também agrilhoadas em cima de mesas as suas duas filhas que foram violadas, em simultâneo, por soldados romanos.
Em breve, Caio Suetónio Paulino, governador dos romanos na região, iria também fazer uma campanha na ilha de Mona, onde se registaria, em particular, a captura e execução de muitos druidas celtas, cujos rituais misteriosos e macabros (que envolviam sacrifícios humanos) pareciam inquietar as forças de Roma. No entanto, estes sacerdotes eram venerados pelo povo bretão, pelo que tais acontecimentos indignaram ainda mais os celtas.
De acordo com o Canal História, Boudica acabaria por ser libertada pouco tempo depois pelos romanos que a tinham humilhado a todos os níveis. E este seria um erro do qual os romanos se iriam arrepender porque subestimaram a sua capacidade de reacção.
Alta, de cabelos avermelhados e com uma voz grossa, Boudica não se dava por derrotada. Em breve, iria fazer uso dos privilegiados contactos que mantinha com outras tribos celtas da Britânia. Uma nova rebelião iria estar em marcha nos anos de 60 e 61 d. C.
Ela reuniria um exército capaz de grandes façanhas. Dentro deste contexto, as suas forças ocuparam e pegaram fogo a cidades controladas pelos romanos, nomeadamente Camulodunum (actual Colchester; vários soldados romanos foram mortos e o templo dedicado ao antigo imperador Cláudio foi destruído), Londinium (actual Londres que havia sido abandonada previamente pelo líder romano Caio Suetónio porque considerava que não tinha meios militares suficientes para proteger a urbe) e Verulamium (antiga cidade romana situada a sudoeste de St Albans em Hertfordshire). Julga-se que os romanos terão perdido entre 70 a 80 mil homens durante estas três incursões triunfantes de Boudica e seus aliados.
Caio Suetónio foi naturalmente pressionado a agir até porque os romanos não poderiam permitir mais humilhações. A batalha decisiva iria travar-se numa zona central de Inglaterra ("English Midlands"), embora se desconheça a localização em concreto.
Boudica tinha conseguido criar uma confederação de forças ou tribos celtas que poderia estimar-se em cem mil ou até duzentos mil homens, dado que os seus recentes sucessos encorajaram mais resistentes a aderir à sua causa.
Por seu turno, os romanos comandados por Caio Suetónio apenas apresentariam uma força de dez mil homens, mas segundo o Canal História, terão sido os primeiros a chegar ao local do enfrentamento e naturalmente posicionaram-se num ponto mais elevado que viabilizaria uma abordagem mais favorável. A área encontrava-se ainda coberta por uma densa mancha florestal.
Quando Boudica chegou perto do epicentro onde se travaria o conflito, logo desconfiou de movimentações do inimigo, e por isso, aproveitou para dirigir um último discurso aos seus homens, o qual viria a ser registado pelo historiador romano Tácito:

“Agora não como uma mulher descendente de nobres ancestrais, mas como uma das pessoas que estou vingando a perda da liberdade, o meu corpo açoitado, a castidade ultrajada de minhas filhas. A luxúria romana foi tão longe que nem as nossas próprias pessoas, nem mesmo a idade ou a virgindade são deixadas impolutas. Mas o céu está do lado de uma vingança justa; uma legião que ousou lutar pereceu; os demais se escondem no acampamento ou pensam ansiosamente em fugir. Eles não sustentarão nem o barulho e o grito de tantos milhares, muito menos, a nossa carga e os nossos golpes. Se vocês pesarem bem a força dos exércitos e as causas da guerra, verão que nesta batalha vocês devem conquistar ou morrer. Esta é a decisão de uma mulher; quanto aos homens, eles podem viver e ser escravos”.

Ainda antes do início do enfrentamento, a rainha guerreira celta libertou uma lebre num ritual dedicado à Deusa Andraste (divindade céltica da guerra e da vitória) de forma a invocar a sua ajuda e protecção. Acreditava-se que o animal mostraria a direcção a seguir para o triunfo.
Boudica ordenou um ataque frontal contra as posições romanas. Suetónio tinha exigido rigor táctico e disciplina aos seus homens, evitando a dispersão e qualquer tentação de partir para o saque. As forças de Roma lançaram dardos contra o exército celta que avançava diante de si.
Os romanos contavam com uma clara vantagem em armaduras e armas, tirando naturalmente proveito disso. A entrada da sua cavalaria, com homens munidos de lanças, fragilizou ainda mais as forças de Boudica que prontamente se desorganizaram.
Os celtas poderiam ter mais efectivos mas a verdade é que contavam nas suas fileiras com muitas mulheres, velhos degastados e jovens inexperientes. Além disso, estavam mal equipados.
Tácito menciona que os celtas perderam 80 mil soldados na batalha, enquanto os romanos teriam sofrido apenas 400 baixas. Teorias mais recentes refutam estes números que parecem não corresponder à realidade. É certo que os celtas sofreram uma carnificina (na ordem das dezenas de milhares de baixas), mas os romanos acusaram igualmente baixas relevantes, embora tenham vencido claramente a batalha e terminado com a rebelião.
Boudica sobreviveria à batalha, mas tal como Cleópatra (mais tarde), cometeria suicídio pouco tempo depois (talvez por auto-envenenamento) para não cair nas mãos dos romanos que se afirmaram doravante na Britânia (excepção feita à região da Escócia que concentraria os bastiões de vários clãs tribais).




Legenda - Boudica, a Rainha Guerreira dos Celtas viveu entre 30 e 61 d. C.


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Curiosidade Histórica XL - O Farol da Civilização


No ilhéu de Pharos, ao largo de Alexandria (cidade fundada por Alexandre, o Grande), nasceria, por volta de 285 a. C., uma das estruturas mais espectaculares da civilização egípcia, embora na altura sob a égide helenística. Aliás, os sucessos das campanhas militares de Alexandre, o Grande na Pérsia e no Egipto ditaram a criação de novas dinastias. No Egipto, os faraós da dinastia ptolemaica (de origem macedónica; região grega) seriam agora os senhores incumbidos de gerir este território.
Ptolomeu I Sóter, antigo general que havia servido Alexandre, o Grande, assumiria o governo do Egipto entre os anos de 305 a. C. e 283 a. C., e demonstraria ser um grande patrono das artes e das letras. Ele patrocinaria a fundação da célebre Biblioteca de Alexandria, um dos primeiros grandes pilares culturais da história. Também sabemos que seria responsável por projectar e financiar, num primeiro plano, a construção do primeiro grande farol (aliás, a designação deste equipamento adviria do nome da ilha “Pharos”) em Alexandria que serviria de orientação para as embarcações que por ali passavam. A sua construção iria durar 12 anos e Ptolomeu I não teria muito mais tempo para acompanhar a sua evolução.
Aliás, a mesma só ganhou forma no reinado seguinte com o seu filho Ptolomeu II Fidadelfo (liderou o Egipto entre 283 a. C. e 246 a. C.), o qual continuaria também a dinamizar a Biblioteca de Alexandria, encarregando Demétrio de Faleros e outros homens de recolher livros por todo o mundo, chegando a albergar dezenas de milhares de volumes.
Em relação ao farol, a sua torre terá atingido uma altura impressionante, estimada entre 103 e 118 metros, e acredita-se que a sua luz seria observável até 53 km de distância.
A construção compreendia três estágios: a primeira, quadrada; a segunda, octogonal; e a terceira, cilíndrica, dispondo de mecanismos que assinalavam a passagem do Sol, a direcção dos ventos e as horas.
No seu topo, figurava ainda uma estátua de Poseidon, deus da mitologia grega responsável pelos mares.
A iluminação era viabilizada através de chamas (ou acendimento de uma pequena fogueira) à noite, e de espelhos planos que reflectiriam a luz solar durante o dia, orientando assim os navios que rumavam nas imediações.
É justo realçar o papel de Sóstrato de Cnido, arquitecto e engenheiro do período helenístico, que desenhou o farol e que acreditava na exequibilidade desta imponente estrutura.
O primeiro grande exemplo percursor dos faróis reivindicava assim particularidades especiais.
A estrutura seria uma das mais altas da Antiguidade e resistiria durante cerca de um milénio. No início do século XIV, o farol acabaria por colapsar diante de dois terramotos (1303 e 1323).





Legenda: O Farol de Alexandria, uma das Sete Grande Maravilhas do Mundo Antigo.


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Curiosidade Histórica XLI - Ibn Firnas, o Primeiro Aviador Humano


O mundo antigo estava recheado de lendas de homens que sonhavam em descobrir uma forma de voar, desafiando assim os céus. Na mitologia helénica, é bem conhecida a história de Ícaro que voara tão perto do Sol, tendo esta estrela feito derreter a cera que segurava as suas asas, fazendo-o cair no mar e causando o seu afogamento fatal. No entanto, tratava-se apenas de uma lenda.
Segundo algumas teorias alternativas, egípcios e chineses teriam também testado pequenos objectos voadores (não tripulados e de feição rudimentar), embora sem resultados conclusivos.
Não obstante, a história iria mudar quando um sábio em Córdova (na altura, uma das principais urbes da Espanha Muçulmana) decidiu fazer o impossível.
Abbas Ibn Firnas nascera em Ronda (Málaga), talvez por volta de 810 d. C., tendo ainda vivido no Emirado de Córdova que era, na época, um dos grandes centros da cultura muçulmana. Inspirando-se nos mais diversos conhecimentos, Ibn Firnas foi poeta, médico, filósofo, engenheiro e inventor.
De acordo com alguns relatos secundários, Ibn Firnas terá testemunhado uma tentativa de Armen Firman, um presumível acrobata que, em 852 d. C., recorreu a um traje de seda com hastes reforçadas com madeira e a um manto solto para se lançar do topo de um minarete da grande mesquita em Córdova. O aventureiro detinha conhecimentos básicos de voo, e apesar da sua tentativa ter falhado, a sua engenhoca voadora serviu ao menos para atenuar o impacto da sua queda no solo. Armen Firman sairia deste episódio com alguns ferimentos. Curiosamente, outros historiadores alegam que a alusão a Armen Firman é fictícia, podendo este acontecimento ter antes constituído uma primeira tentativa de Ibn Firnas que não correu bem.
Independentemente das versões apresentadas, Ibn Firnas queria superar este registo, tendo aprofundado os seus estudos. Em 875 d. C. (mais de 20 anos volvidos) chegaria o seu momento, tendo criado a sua própria máquina voadora. Ele construiu um par de asas de seda e madeira e costurou penas de verdade. Tentava assim imitar um grande pássaro voador. Ele pulou de um vale e terá planado por alguns minutos (segundo os testemunhos recolhidos, terão sido cerca de dez minutos), surpreendendo a multidão.
Apesar do sucesso em torno do seu voo, o erudito teve sérias dificuldades em controlar a velocidade, tendo sofrido uma aterragem in extremis que lhe causou sérios ferimentos. Ibn Firnas viveria por mais doze anos (faleceria em 887), chegando imediatamente à conclusão que era necessário criar um mecanismo que permitisse retardar a descida dos voos e assegurar uma aterragem mais estável.
Além de ter sido oficialmente o primeiro aviador humano (ou percursor do paraquedismo), Ibn Firnas foi ainda responsável pelas invenções do relógio de água (clepsidra), de planisférios de vidro, de uma esfera armilar (que simulava os movimentos dos astros) e de tabelas astronómicas inovadoras, entre outras.
Em sua memória, existe hoje uma cratera na Lua baptizada com o seu nome, além de uma importante ponte em Córdova.




Legenda: Ibn Firnas voou com sucesso em Córdova, ao imitar o formato de um enorme pássaro. Estátua presente em Bagdade (Iraque)
Direitos da Imagem: Retirada da Plataforma Pinterest


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Curiosidade Histórica XLII - Nikola Tesla, o Génio que nunca ganhou um Nobel


Nikola Tesla nasceu em 10 de Julho de 1856 na aldeia de Smiljan (terra hoje pertencente à Croácia, mas que outrora pertencia ao Império Austro-Húngaro). Ele era filho de um sacerdote ortodoxo, mas desde cedo, seria educado no sentido de desenvolver a memória e o raciocínio. Durante a infância, a criança admitiu ter visto flashes de luz que apareciam inesperadamente diante dos seus olhos. Dizia-se ainda que ele concentrava em si o dom da memória fotográfica, capaz de reter com total precisão diversos momentos que havia vivido ou presenciado em contextos particulares.
No ano de 1873, iria dedicar-se ao estudo de Engenharia Eléctrica, no Instituto Politécnico de Graz na Áustria, onde estudaria principalmente física e matemática. Em 1880, formar-se-ia finalmente na Universidade de Praga, e no ano seguinte, entra para a companhia telefónica de Budapeste, onde começou a sua carreira de engenheiro electricista.
De acordo com o site e-biografia, Nikola Tesla viria a ser, ao longo da sua carreira de cientista e engenheiro electricista, um verdadeiro génio, sobretudo nos campos da electrotécnica e da radio-electricidade. Ele registaria cerca de 40 patentes nos Estados Unidos e mais de 700 no mundo inteiro. A ele se atribuem diversas invenções, a saber: a lâmpada fluorescente, o motor de indução (utilizado em indústrias e em vários electrodomésticos), o controlo remoto, a Bobina Tesla, a transmissão via rádio (embora Marconi tenha aprofundado os seus estudos e tivesse ficado com os louros desta invenção), o sistema de ignição utilizado nas partidas dos carros, a corrente alternativa, a descoberta do campo magnético rotativo, o aproveitamento de energia das quedas do Niágara, foi ainda responsável pela criação da primeira mega-estrutura hidroeléctrica no mundo, desenvolveu uma máquina de terramotos (de modo a sincronizar e amplificar as vibrações através de uma frequência) que quase destruiu um bairro inteiro em Nova Iorque, terá sido o primeiro homem a aperceber-se de ondas de rádio captadas a partir do espaço, tornou-se num investigador pioneiro das tecnologias do radar e do raio-X, etc.
Nikola Tesla acreditava ainda ser possível prever comunicações inter-planetárias e por satélites, antecipava futuramente a ideia da criação de uma energia eléctrica wireless grátis para todo o planeta através de uma torre que seria construída perto de Nova Iorque, embora o projecto tivesse sido abandonado pouco tempo depois por dúvidas levantadas pelos investidores.
Em 1884, e depois de já trabalhar na Companhia Continental Edison, em Paris, será agora convidado a operar directamente na firma de Thomas Edison (1847-1931) situada em Nova Iorque, cidade em que viveria o resto da sua vida (por quase 60 anos). Nos primeiros tempos, Tesla aprimorou algumas das invenções de Edison (nomeadamente os dínamos), mas em breve, os dois colidiriam em torno das questões inerentes ao uso da corrente contínua. Dentro deste contexto, Tesla aplicou algumas das suas ferramentas para viabilizar o uso da corrente alternada, uma forma eficiente de transmitir energia a grandes distâncias, mas perigosa em casos de acidente. Por exemplo, a corrente alternada de Tesla é a que hoje corre nos fios de alta tensão do planeta e chegou a ser utilizada nas condenações de humanos sentenciados à cadeira eléctrica. Por seu turno, Edison considerava a corrente de Tesla como “assassina” e bastante arriscada, preferindo um modelo de electricidade bem mais moderado.
Outra história conhecida relata-nos que Thomas Edison teria convidado Tesla para resolver um problema na corrente contínua de geradores e motores, tendo prometido uma recompensa de 50 mil dólares (o que nos dias de hoje corresponderia a muito mais dinheiro). Tesla terá resolvido a situação, contudo Edison recusou pagar-lhe a verba prometida, respondendo mesmo: “Tesla, você não entende o humor americano”!
A rivalidade e os ódios entre ambos irão ganhar contornos claros nos próximos anos. Temendo o crescimento do rival, Edison chegou a recorrer a uma campanha que pretendia descredibilizar as inovações de Tesla. Edison teve mesmo a desumana ideia de electrocutar animais para tentar convencer o público dos perigos da corrente alternada teorizada por Tesla.
Ambos queriam implementar os seus modelos de electricidade nos Estados Unidos e depois difundir pelos outros países do mundo.
No ano de 1915, Tesla terá mesmo recusado dividir o Prémio Nobel da Física com Edison (sendo que este também não queria partilhar com o seu antigo funcionário e agora rival), tendo sido o galardão entregue a um outro pesquisador, embora a organização tenha desmentido posteriormente a versão da recusa inicial por parte dos dois inventores. Não sabemos se esta foi uma explicação genuína e verdadeira por parte da entidade que atribui aquele prémio prestigiante a nível internacional, mas a verdade é que os boatos da sua rejeição alimentada pela discórdia entre aqueles dois vultos permaneceram até aos dias de hoje!
Independentemente das versões difundidas, a verdade é que nenhum dos dois viria a ganhar qualquer Prémio Nobel durante as suas vidas.
Nikola Tesla viria a falecer, com 86 anos de idade, em Nova Iorque no dia 7 de Janeiro de 1943.





Legenda: Retrato do Génio Inventor Nikola Tesla (1856-1943).
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