Este site foi criado com o intuito de divulgar os feitos mais marcantes no decurso da história mundial

domingo, 14 de dezembro de 2014

O Beato Gil e o Pacto de Fausto

Na Idade Média Portuguesa, tivemos notícia duma personalidade cujo percurso de vida pautou-se por uma originalidade e capacidade intelectual ímpares. Num período em que o flagelo do analfabetismo não poupava a maior parte esmagadora da população, Frei Gil distinguiu-se pela sua panóplia de conhecimentos, fruto duma educação madura que lhe permitiu ser dotado dum raciocínio invulgar para a época em que viveu. Além de ser frade dominicano, o nosso biografado foi ainda médico, teólogo e pregador, o que confere indubitavelmente um leque de valências que o individualizaram no século XIII, e o projectariam até no além-fronteiras. Aqui retrataremos a história dum homem com um percurso de vida deveras original.
Gil Rodrigues de Valladares nasceria em Vouzela, entre 1184/1185-1190, no seio duma pequena povoação rústica. Todavia, era filho dum nobre reputado - Rui (ou Rodrigo) Pais de Valadares, um homem com crédito suficiente para integrar o Conselho de Fidalgos do rei D. Sancho I e que era ainda mordomo-mor deste último soberano. Era ainda alcaide da cidade de Coimbra. A sua mãe teria sido Dona Maria Gil Feijó, segunda mulher do citado fidalgo. É muito provável que Gil tivesse alguns irmãos (talvez três!), mas pouco ou nada se sabe sobre eles.
Sabemos pois que, ao pertencer a uma família com consideráveis posses, foi-lhe permitida a possibilidade de estudar num dos núcleos culturais mais valorados da Península Ibérica. Dentro deste contexto, realizaria a sua formação religiosa e intelectual no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Além dos ensinamentos de teologia, terá igualmente estudado aí conteúdos inerentes à Medicina e Humanidades (aqui denotara interesse pela Filosofia). A sua bagagem cultural seria ainda posteriormente complementada através da passagem por Paris, alcançando o aperfeiçoamento dos seus conhecimentos no sector da Medicina, área na qual se formaria, tratando com razoável eficácia os pacientes que lhe eram destinados. 
Aliada à sua inclinação para as ciências profanas, começaram a irromper narrações lendárias, ainda nos séculos XIII-XIV, que o associariam mesmo ao sector das magias ocultas, as quais teria alegadamente estudado no decurso da sua juventude. Certamente que nos é impossível precisar o grau de veracidade deste mito assaz popularizado, contudo é nosso dever relatá-lo pois o mesmo, além de ser original, constitui parte assídua nas descrições biográficas elaboradas sobre o beato Gil. 
De acordo com um autor anónimo contemporâneo, Gil terá sido abordado por um estranho, no decurso da sua viagem desde Coimbra até Paris, onde aquilataria o seu intelecto. De forma veemente e com um diálogo persuasor, essa figura sinistra desejava ensinar-lhe secretamente a arte da magia em Toledo, embora exigisse que o nosso biografado oferecesse a sua alma ao Diabo, processo que seria materializado através dum pacto de sangue. A lenda diz-nos que teria residido alguns anos em Toledo (7 anos, segundo o que é popularmente narrado, embora nos pareça demasiado tempo, se é que realmente há algum fundo de verdade neste mito) e que os conhecimentos de magia adquiridos lhe teriam sido extremamente úteis em Paris, onde evidenciara capacidades suficientes para alcançar o grau de Doutor em Medicina. Neste período, terá realizado algumas curas notáveis que foram facilmente qualificadas de milagres, o que automaticamente lhe granjeou prestígio. A narração conheceria entretanto novos capítulos. Gil começou a sentir-se atormentado pelo pacto que fizera, e terá sido acometido por visões, nas quais lhe surgia um cavaleiro gigantesco que, com uma espada desembainhada, o ameaçava de morte, caso não alterasse a sua postura ímpia. Não sabemos até onde se situaria a influência do vector metafísico e supersticioso na vida desta personalidade medieval, pelo que é impossível determinar a veracidade desta narrativa.
Influenciado ou não por esta história, a verdade é que Gil, após a sua passagem bem-sucedida por França, começa a dedicar-se à causa religiosa, deixando para trás uma juventude intelectualmente irreverente. Em momento incerto da década de 1220, toma o hábito dominicano e professa em Palencia, mas acabará posteriormente por regressar a Portugal, onde se estabelecerá num convento da Ordem em Santarém. O monge seguirá agora uma vida de meditação e penitência, enveredando pela ruptura face a um passado mais imprudente e ousado. De acordo com a narração lendária, teria sido neste momento que, após várias e árduas intercessões, a Virgem Maria teria finalmente actuado em seu auxílio, restituindo-lhe a cédula que havia anteriormente assinado para se fidelizar a Satanás. Com o documento na mão, Frei Gil libertara-se assim do jugo demoníaco que o atormentava. Mais uma vez, remetemos estes elementos para o carácter especulativo, visto que a história de vida deste dominicano encontra-se impregnada de inúmeras lendas e superstições.
De acordo com a tradição, Gil terá igualmente demonstrado os seus dotes de pregador, convencendo muitos jovens e até professores a abraçar a causa dominicana. Graças à sua notoriedade, foi designado prior provincial da Ordem na Espanha em 1233 (alegadamente permaneceu nesse lugar até 1259), e participou em Capítulos realizados em Burgos e Bolonha. À frente deste reputado cargo, promoveu a observância religiosa, a pregação, a fundação de novos conventos e a conversão de judeus e muçulmanos que viviam na Península Ibérica. Efectivamente, fora um homem letrado que se dedicara aos votos de extrema humildade, pobreza e meditação, e ao qual viria a ser ainda reconhecido o dom de palavra, confortando todos aqueles que o rodeavam.
De acordo com os investigadores, Gil deixou-nos ainda obras literárias ou escritos - "Vidas de Fr. Fernando Pires e de Fernando de Jesus", "Livro de Naturas" e uma colaboração parcial na elaboração do livro "Vidas dos Irmãos".
Frei Gil faleceria em Santarém no dia 14 de Maio de 1265. A sua sepultura atrairia muitos peregrinos ao longo dos séculos vindouros que procuravam a sua intercessão no outro mundo. De repente, a comunidade começou a venerá-lo como um santo (é tratado mesmo com este epíteto por alguns historiadores), mas a verdade é que Gil só fora beatificado por Bento XIV em 9 de Maio de 1748, não alcançando até então o nível superior de canonização.
É actualmente o padroeiro da vila de Vouzela em Portugal.




Imagem nº 1 - Estatueta do Frei Dominicano Gil de Vouzela.
Retirada do Wikipédia (Foto: Gabriel Silva)




Imagem nº 2 - Frei Gil a conceder esmolas aos mais carenciados.
Quadro do século XV (autor flamengo?) retirado do Wikipédia




Referências Consultadas:



Nota extra - A designação "Pacto de Fausto" foi inventada mais tarde, radicando as suas origens no mago alemão Johannes Georg Faust (1480-1540), pelo que o título deste artigo, embora referente a uma personalidade portuguesa dos séculos XII-XIII, aplicou, desde já, essa denominação posterior, embora veiculada na actualidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário