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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O Grito de Revolta de António de Montesinos

Em 1492, Cristóvão Colombo atingia as Antilhas, e em breve, Américo Vespúcio alcançaria as margens da extensa área continental até então desconhecida e que se baptizaria inspirada no seu nome (o nome Américo esteve assim por detrás da designação da América).
Após a descoberta deste Novo Mundo, procedeu-se à conquista, colonização e exploração dos novos territórios. Um processo que culminou na cristianização dos gentios que abandonariam então as suas anteriores convicções pagãs e/ou xamanísticas. Contudo, nem todos os colonos assumiram, desde cedo, uma conduta civilizada ou humanitária. Muitos dos nobres europeus estavam sedentos de ouro, alguns deles obcecados com o mito do El Dorado, a portentosa e luxuosa cidade construída por aquele valioso metal que inspirava o imaginário dos aventureiros europeus. Um número interminável de índios foram torturados (e até assistiram à amputação dos seus próprios membros) pelos novos colonos que exigiam saber onde aqueles guardavam o ouro, a prata, as pedras preciosas e os demais objectos de valor. Outros eram ainda instrumentalizados ou coagidos pelos colonizadores a mergulhar nas águas perigosas de rios traiçoeiros para acharem as tão ambicionadas pepitas de ouro. A escravatura foi ainda uma realidade inegável nas Américas, e daí surgiram as encomiendas (criadas pelos espanhóis para explorar um grupo ou comunidade de indígenas) e mitas (sistema de origem inca que consistia na exploração de homens no trabalho das minas) que foram "testemunhas" dos mais diversos abusos. Os índios eram forçados a serviços manuais inenarráveis, sendo que muitos, não habituados ao trabalho pesado, acabariam por perder as forças e tombariam lamentavelmente. 
O processo de colonização espanhola terá sido o mais polémico de todos, com muitos investigadores a atribuírem a destruição ou chacina de comunidades indígenas pela força das armas ou pela exploração sistemática da mão-de-obra. Em simultâneo, decorria um processo de aculturação que esteve longe de ser harmonioso e pacifico. A mensagem cristã não foi só espalhada pela oratória ou catequização pacífica (à imagem daquilo que sempre fora preconizado por Jesus Cristo), mas também pelo sangue, ódio e violência dos novos conquistadores. De acordo com o poeta chileno Pablo Neruda, "a espada, a cruz e a fome iam dizimando a família selvagem"





Imagem nº 1 - A colonização espanhola pautou-se por vários horrores e atrocidades contra os índios nativos das Américas.
Quadro da autoria de Theodor de Bry (1528-1598)




Apesar de alguns sectores clericais da altura se terem mostrado parcialmente coniventes com as transgressões infames praticadas, a verdade é que a defesa dos direitos e da integridade dos indígenas seria corajosamente concretizada por alguns missionários ou freires que não hesitaram em colocar a sua carreira em risco para afrontar os poderosos interesses até então instalados. No caso espanhol, temos de citar o legado incontornável do frade dominicano Bartolomé de Las Casas que denunciou várias atrocidades contra os índios das Américas, e no panorama da colonização portuguesa, não poderíamos deixar de mencionar a herança imaterial do padre jesuíta António Vieira. Mas ambos foram precedidos nesta causa humanitária por um homem sobre o qual pouco sabemos da sua história de vida, mas cuja oratória se evidenciaria luminosa e memorável neste "palco histórico".
António de Montesinos era um freire espanhol da Ordem de São Domingos que possivelmente antes de ingressar na congregação teria frequentado os seus estudos na Universidade de Salamanca. Em 1510, é um dos primeiros quatro dominicanos que têm a oportunidade de arribar ao novo continente. Os membros desta ordem pautavam-se pela sua vocação reformista, e claro que demonstraram total pavor com o panorama que se lhes deparou nas Caraíbas. Foi precisamente na ilha La Española (actualmente ilha de São Domingos que abrange o Haiti e a República Dominicana) que testemunharam o lado mais negro do processo de colonização que estava em curso. A população nativa estava em vias de desaparecer. Todos os líderes dos gentios haviam sido mortos, e os demais sobreviventes eram utilizados como escravos, além de serem tratados sem dignidade. Diego Colombo, filho de Cristóvão Colombo, autorizava inclusive raides que visassem a captura de índios para aqueles fins desumanos. Estes pereciam na miséria, muitos deles vítimas de novas doenças que até então desconheciam e que foram, embora sem premeditação, introduzidas pelos europeus. Os colonizadores ignoravam esta realidade medonha, concentrando apenas o seu interesse nas riquezas abundantes que as novas terras lhes poderiam proporcionar.
As estimativas modernas não deixam de validar toda esta conjuntura negra. De acordo com dados fornecidos por Martin Dreher, dos 300 mil índios que viviam na ilha La Española em 1492 (ano da chegada de Cristóvão Colombo), só restavam 60 mil em 1508. Era necessário que alguém tivesse o arrojo e a ousadia suficientes para repudiar este ciclo infernal, mesmo que essa pessoa usufruísse dum estatuto até então modesto ou pouco influente. Esse momento iria chegar...
No dia 21 de Dezembro de 1511, o freire António de Montesinos subiu ao púlpito para pregar o célebre "Sermão do Advento" naquela referida ilha, e cujo conteúdo surpreenderia oficiais, conquistadores e colonos espanhóis que se encontravam na assistência e que não esperavam ser o alvo principal do discurso que havia sido previamente preparado e acordado pelos restantes missionários dominicanos da ilha. Parte do conteúdo dessa pregação inolvidável é apresentada em seguida, e revela-nos ainda o carácter dum homem que não tolerou a omissão ou o silêncio contagiante dos factos horrendos que tinham de ser denunciados publicamente.



"Para lhes dar a conhecer eu subi aqui, eu que sou a voz de Cristo, no deserto desta ilha; e, portanto, convém que com atenção (...), com todo o vosso coração e com todos os vossos sentidos, a ouçais; a qual será a mais nova que nunca ouvistes, a mais áspera e dura e a mais espantosa e perigosa que jamais pensastes ouvir. Esta voz vos diz que todos estais em pecado mortal e nele viveis e morrereis, pela crueldade e tirania que usais para com estas gentes inocentes. Dizei - Com que direito e com que justiça tendes em tão cruel e horrível servidão estes índios? Com que autoridade têm feito tão detestáveis guerras a estas gentes que estavam nas suas terras mansas e pacíficas, donde tão infinitas delas, com a morte e estragos nunca ouvidos tereis consumido? Como os mantendes tão oprimidos e cansados, sem dar-lhes de comer nem curá-los das suas enfermidades que, dos excessivos trabalhos que lhes dais, incorrem e morrem e, para melhor dizer, os matais para extrair e adquirir ouro em cada dia? E que cuidado têm de quem os doutrine e conheçam a seu Deus e Criador, sejam baptizados, ouçam missa, observem os feriados e os domingos? Estes não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Isto não o entendeis? Isto não o sentis? Como estais dormentes numa intensa profundidade dum sonho tão letárgico? Tende por certo que no estado em que estais, não vos podereis salvar tal como os mouros ou turcos que carecem e não querem a fé de Jesus Cristo".



António de Montesinos
21 de Dezembro de 1511





Imagem nº 2 - Estátua de António de Montesinos localizada na actual República Dominicana.
Escultura do mexicano Antonio Castellanos
Retirada de: http://iniciativas.dominicos.org (Também presente no Wikipédia, autor da foto: Wilmer)




A reacção não se fez esperar. Descontentes e indignados, os colonos espanhóis exigiram aos dominicanos a punição imediata, ou pelo menos, a retratação pública de António de Montesinos. Contudo, os membros da ordem (eram já 15 ao todo os que ali estavam) não cederam às ameaças, afirmando que António tinha pregado em nome deles todos. 
No Domingo seguinte (28 de Dezembro de 1511), o mesmo freire subiu ao púlpito. Devido à semana agitada, os colonos esperavam que os dominicanos reconsiderassem a sua posição e renegassem o discurso anterior. Contudo, mais uma vez acabariam por ser surpreendidos. Na sua homilia, António de Montesinos não só reafirmou novamente o que havia sido dito previamente, como deixou bem claro que ele e os seus companheiros dominicanos se recusavam a ouvir as confissões dos colonos escravistas, os quais não eram mais do que salteadores de estradas.
As queixas e pressões contra estes missionários avolumaram-se repentinamente, e solicitava-se a sua expulsão da ilha de La Española. Ao que apuramos, os dominicanos foram, pelo menos, proibidos de predicar sobre aquele assunto.
Na própria metrópole (Espanha), produziu-se um intenso debate sobre a natureza ética da colonização em curso nas regiões ameríndias. O dominicano António de Montesinos regressou a Espanha e teve a oportunidade de relatar junto do rei D. Fernando tudo aquilo que conseguiu apurar na sua primeira missão pelo Novo Mundo. O soberano espanhol terá ficado horrorizado com os detalhes que lhe foram transmitidos, e convocou imediatamente um grupo de teólogos e juristas para tomarem uma posição sobre esta problemática. Como resultado das reuniões protagonizadas por estes especialistas, saíram as Leis de Burgos de 1512 que conferiram alguns direitos básicos aos indígenas (nomeadamente ao nível da protecção teórica da sua integridade física, por exemplo: eram proibidos os maus-tratos), embora aquelas tivessem acabado por legalizar a prática das encomiendas. A aplicação dos regulamentos considerados favoráveis aos índios esteve longe de ser uma realidade verificada no terreno até porque o seu controlo ou fiscalização assentavam em bases medíocres. A distância entre a metrópole e as suas colónias no Novo Mundo era alimentada por um extenso Oceano Atlântico, o que dificultava ainda mais a introdução ou observação daquelas regras.
Em 1513, e já de regresso ao Novo Continente, António de Montesinos tentou resolver, sem sucesso, um diferendo em Chiribichi (Venezuela), onde o colonizador Gomez de Ribera tinha capturado o cacique local (Alonso - tinha sido baptizado poucos anos antes), a sua mulher e alguns membros da tribo que entraram "ingenuamente" (foram induzidos numa errónea cortesia) num barco espanhol que os destinaria à escravatura. Dois dominicanos foram deixados para trás juntamente com os nativos enraivecidos pelo acontecimento. Aqueles missionários acabaram por ser tomados como reféns e seriam mesmo mortos, porque Alonso e os seus companheiros jamais seriam devolvidos às suas origens. Apesar dos seus esforços incansáveis, António de Montesinos não conseguiria salvar os seus colegas nem evitar o destino negro daqueles indígenas capturados.
Nos anos situados entre 1526 e 1528, o nosso biografado volta a desempenhar algumas missões nas regiões actuais da Carolina do Sul e da Venezuela, embora não encontremos menções pormenorizadas sobre os resultados verificados. Também terá passado em algum momento por Porto Rico, onde projectou a construção dum novo convento.
Acredita-se que terá morrido (martirizado?) por volta do ano de 1545, contudo desconhecem-se pormenores exactos sobre os momentos derradeiros da sua vida.
O seu legado em prol da defesa dos índios inspiraria muitos dos futuros missionários e abriria definitivamente os olhos para uma matéria até então ocultada ou excluída da análise dos novos ocupantes do continente americano. Bartolomé de Las Casas, um encomendero até então pouco conhecido, ouviu o sermão virtuoso de António de Montesinos em 1511, e inspirado pela sua revelação, libertou-se dos escravos que tinha ao seu dispor e abraçou também ele, com total emotividade e abnegação, a defesa dos direitos dos indígenas.
O caminho seria ainda bastante longo (com mais recuos do que progressos nos primeiros tempos), mas a primeira pedra da fraternidade - essa já estava lançada.





Imagem nº 3 - Memorial na Venezuela em honra do freire dominicano António de Montesinos (também designado como Anton de Montesino).





Imagem nº 4 - Bartolomé de Las Casas (sentado e em estado reflectivo) recorda o sermão inspirador do dominicano António de Montesinos que teve a oportunidade de ouvir e que o faria mudar a sua perspectiva sobre os gentios. Também Bartolomé ingressaria na Ordem Domincana para proteger os direitos dos índios.
Retrato da autoria de Francis De Blas




Referências Consultadas:


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