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quarta-feira, 16 de julho de 2014

Papisa Joana: Realidade ou Ficção Lendária?

Um dos temas mais controversos inerentes à história da Igreja Católica está relacionado com a suspeita de que uma mulher, através dum disfarce masculino quase perfeito, teria iludido tudo e todos, conseguindo sentar-se no Trono de São Pedro. De forma a avaliar o grau de veracidade desta história é necessário conhecer a narração lendária, os argumentos favoráveis e oponentes, e depois sim optaremos por equacionar a versão que nos parece a mais correcta.


1- A Narração Lendária

Sobre a Papisa Joana, é necessário referir que pode ser encontrada mais do que uma versão sobre a sua suposta existência, sendo que alguns autores argumentam que ela poderia ter vivido no século IX ou XI (este último é mais improvável dado que estaríamos no auge da Reforma Gregoriana conhecida por procurar moralizar o clero, e devolver maior transparência à Igreja).
Optaremos pois por basear a sua alegada vivência no romance histórico, intitulado "A Papisa Joana" da autoria de Donna Woolfolk Cross (mais tarde a sua obra inspirou a criação dum filme), o qual concentra a principal versão biográfica desta personagem. Elogiamos a autora pela capacidade de recriar o cenário histórico daqueles tempos mais obscuros que assentava em várias realidades: a superioridade do homem sobre a mulher (esta última era propriedade do seu marido e deveria ser completamente submissa, não tinha acesso à cultura e devia dedicar-se aos afazeres domésticos; para além disso, era perfeitamente aceitável que um marido espancasse a sua esposa), os jogos de poder na política e até na hierarquia clerical, o calvário dos leprosos que eram discriminados, as gritantes desigualdades sociais, os casamentos tradicionalmente arranjados pelas famílias, a curta esperança média de vida, os métodos medicinais aplicados na altura, a mentalidade altamente supersticiosa das comunidades, a intromissão do Império Sacro-Romano Germânico nas questões da Santa Sé, os ataques implacáveis dos normandos no Norte da Europa e o avanço dos sarracenos a sul (já tinham iniciado a conquista da Sicília a partir de 827) e para além disso, exibe uma caracterização das personalidades, muitas delas reais, neste precioso contexto.
Exposto isto, passaremos agora a mencionar os poucos e igualmente falíveis dados sobre esta presumível personalidade, utilizando a versão da autora supracitada, cujos acontecimentos decorrem no século IX, era mais adoptada pelos seus defensores para tentar situar a papisa.
Joana seria originária de Ingelheim, na região de Mainz (actual Alemanha). Filha de pai inglês, começaria, desde cedo, a demonstrar talento para a leitura e escrita, aprendendo as Sagradas Escrituras e outros textos de Teologia, para além de evidenciar conhecimento de obras clássicas (romanas e gregas) que irradiavam saberes filosóficos. Para além disso, começou igualmente a interessar-se pela "medicina" medieval. Teria entrado num Mosteiro (Donna Woolfolk coloca-a no célebre Cenóbio de Fulda) com a identidade falsa de João Anglicus, em virtude da ascendência inglesa de seu pai. Utilizara roupas masculinas e tirava ainda proveito da sua fisionomia que ostentava traços masculinos. 
Através dos seus sábios conhecimentos, dirige-se para Roma e começa a conquistar a simpatia dos Papas da altura (Sérgio II e Leão IV). Durante todo este tempo, Joana teria mantido uma relação intensa com um nobre influente de seu nome Geraldo (outras versões afirmam que ela se teria envolvido antes com um monge). 
A sua influência aumentou bastante ao ponto de ser eleita como novo sumo pontífice após a morte de Leão IV que, no entender de alguns estudiosos, não teria ocorrido em 17 de Julho de 855 (como é oficialmente aceite), mas sim antes em 853. De acordo com Donna Woolfolk, embora a autora esteja provavelmente a exercer a sua magnífica imaginação criativa, o novo Papa João VIII (ou Papisa Joana) teria procurado reabilitar o antigo aqueduto de Marcião, criar uma escola para a formação de mulheres (o que terá gerado indignação nos sectores mais conservadores), moralizar o clero, combatendo os vícios nefastos, e combater a pobreza em Roma. É necessário voltar a sublinhar que estes últimos dados sobre este suposto pontificado podem ser perfeitamente fruto da divagação da autora, e por isso, desprovidos de qualquer base científica.
O alegado pontificado de Joana teria conhecido uma duração de cerca de 2 anos (até 855), altura em que cai o seu disfarce. Grávida, embora as largas vestes papais disfarçassem esse estado, entraria num doloroso trabalho de parto, do qual saiu um nado morto. A população terá ficado indignada, não se sabendo se Joana morreu das dores do parto em si (o que era bastante frequente na altura) perante o espanto dos cardeais que clamavam por milagre e demais clérigos que a rodeavam, ou se foi posteriormente apedrejada pela comunidade revoltada até à morte. 
Seria sucedida pelo Papa Bento III.
A lenda da Papisa Joana revela-nos o carácter determinado e erudito duma mulher que ousou contornar as limitações daquela era, visto que nunca lidou bem coma a ideia medieval duma senhora enquanto instrumento para garantir as gerações posteriores e as tarefas domésticas, procurando assim atingir o topo, camuflando o seu verdadeiro sexo. Quantas mulheres não se sentiram assim naqueles tempos, questionando a ausência de direitos?


Imagem nº 1 - Retrato da Papisa Joana (853-855???).




Imagem nº 2 - A Papisa Joana entra em trabalho de parto no decurso da procissão pública. (Gravura do século XV).



2- Argumentos Favoráveis à sua existência


  • Tremenda escassez de registos para o obscuro século IX, o que torna minimamente compreensível a inexistência de qualquer menção ao seu nome.
  • Suspeita de que a Igreja Católica teria possivelmente, na altura, destruído ou removido os registos inerentes ao pontificado de Joana, já que este tinha sido considerado aberrante e embaraçoso.
  • A aceitação da história por parte de muitas pessoas, nomeadamente clérigos com altas responsabilidades na hierarquia (há quem refira que houve papas que acreditaram na existência da Papisa Joana), ao longo das Idades Média e Moderna.
  • A existência de vários documentos que fazem referência à Papisa. O primeiro parece surgir apenas no século XIII, enquanto os outros começam a ser mais frequentes a partir dos séculos XV-XVI.
  • O aparecimento do exame da cadeira para se determinar a masculinidade do Papa eleito, de forma a evitar escândalos que poderiam assemelhar-se ao de Joana.
  • Mudança do trajecto da Via Sacra de forma a não atravessar a Via Giovanni, suposto lugar onde dizem que Joana teria dado à luz.
  • O Papa João XXI (o português Pedro Hispano) não teria aceitado a designação de João XX (não existe qualquer sumo pontífice com esta designação) reconhecendo assim a existência da Papisa Joana como Papa João VIII.
  • Desconfiança de que a data da morte do Papa Leão IV teria ocorrido em 853 (e não em 855, como é oficialmente definido), sendo que Bento III só teria acesso ao trono de São Pedro em 855. Assim, existira um hiato de dois anos que permitiria assim o mandato pontifício de Joana.


Imagem nº 3 - A controversa cadeira pontifícia: alguns autores suspeitam que se realizaria aí um exame de masculinidade.



3 - Argumentos contra o seu suposto pontificado


  • Os documentos que referem o pontificado de Joana são bem posteriores à data dos factos. Não existe nenhum manuscrito do século IX que lhe faça referência.
  • A lenda terá sido inventada e utilizada pelos ortodoxos e protestantes com o intuito de descredibilizar a Igreja Católica.
  • Ausência de provas arqueológicas que comprovem as vivências desta alegada personalidade.
  • Entrave temporal para o pontificado de Joana que dificilmente se poderia situar entre os de Leão IV e Bento III, que imediatamente terá sucedido ao seu antecessor.
  • Uma moeda de 855 representando os nomes do Papa Bento e do Imperador Lotário, e um decreto do mesmo sumo pontífice que confirma os privilégios do Mosteiro de Corbie, reforçam a ideia de que o Papa nesse ano seria já Bento III.
  • A Igreja alega que a "célebre cadeira com buraco" apresentava uma beleza peculiar e que no passado fora talvez utilizada como sanita ou até para banhos, mas nunca com a finalidade de examinar a masculinidade do novo Papa.
  • As comunidades eram altamente supersticiosas e ignorantes, estando assim "talhadas" para inventar e divulgar boatos e lendas até à exaustão.
  • O Papa João XXI tomou esta designação porque apenas suspeitava que tinham existido dois Papas com a designação de João XIV.



4- Conclusões a retirar:

Não é fácil abordar um período tão recuado como o século IX que se revelou infértil no campo da escrita, visto que a iliteracia era esmagadora nas populações da Alta Idade Média. Por isso, é evidente que nunca poderemos apresentar certezas da existência ou inexistência da Papisa Joana, todavia podemos elaborar um raciocínio e formular a nossa própria opinião.
Evidentemente, parece-nos que a tese do mito dispõe dos melhores argumentos. Não há qualquer documento que mencione Joana no século IX, aliás nem sequer os inimigos do poder pontifício denunciaram semelhante escândalo. Poderia efectivamente haver um interesse da Igreja daquele tempo em apagar os registos deste suposto pontificado, dada a humilhação verificada, mas esse argumento, embora com algum peso, não torna muito mais convincente a teoria da existência da Papisa Joana. De facto, poderia ter "sobrevivido" até aos dias de hoje qualquer documento disperso nos arquivos clericais ou civis que fizesse referência à Papisa no período exacto em que ela viveu. O problema é que nem podemos provar a existência desta personalidade: desde a jovem Joana, passando pelo seu disfarce enquanto monge João Anglicus, e alcançando a dignidade pontifícia enquanto Papa João VIII ou Papisa Joana. E de acordo com o método científico, a história faz-se com os documentos das respectivas eras.
O argumento da polémica cadeira pontifícia é muito discutível pois ainda se discute a sua real funcionalidade. Aqui talvez não seja de todo impossível aceitar que a Igreja se decidiu precaver de que a lenda, tão divulgada na Baixa Idade Média e na Era Moderna e até aceite por altas figuras da hierarquia católica, não se transformaria em realidade. 
Parece-nos mais credível que nestas épocas, a lenda tenha sido utilizada pelos inimigos da Igreja de forma a reduzi-la ao descrédito. Para além disso, o espírito crítico das comunidades era diminuto, visto que a superstição e os boatos eram o prato de cada dia (estes até contribuíram para influenciar várias condenações judiciais naqueles tempos mais recuados).
Em suma, aceitamos com maior probabilidade (embora nunca declarando a certeza total do nosso raciocínio, até porque não sabemos as informações que os manuscritos omissos do Arquivo Secreto do Vaticano poderão guardar a este respeito) que nunca terá existido uma Papisa Joana. 
Por isso, é provável que a origem da lenda remonte à mera tradição do pensamento popular ou senão poderá ter-se baseado na história duma mulher que penetrou na hierarquia católica, fingindo ser homem, embora nunca atingindo o mais alto posto da Cristandade (esta última parte poderia ter sido completamente deturpada para dar mais ênfase ao acontecimento). A título de exemplo, é conhecido o caso de Santa Hildegunda que adoptou o nome de José e tornou-se "irmão" da Abadia de Schonau no século XII, disfarce que manteve por vários anos até ser descoberta. E decerto que deverá ter sido imitada por outras mulheres que, com coragem e vocação, não quiseram seguir a via do casamento, para terem acesso à cultura e desempenhar cargos de nomeada, numa época em que eram discriminadas por causa do pecado de Eva e quando se pensava que as suas almas não possuíam inteligência e eram altamente pecaminosas. 



Imagem nº 4 - A Lenda da Papisa Joana ecoou durante vários séculos até chegar à actualidade, tornando-se num dos maiores mitos de todos os tempos.
Quadro: Wikipédia (Gravura do Século XVI presente na Biblioteca Nacional de França)



Imagem nº 5 - Outra imagem com a suposta Papisa Joana a dar a luz o seu nado morto perante a surpresa dos clérigos que a rodeavam.
Quadro: Wikipédia (o autor é Jakob Kallenberg - séc. XVI).



Referências Consultadas:

  • BOUREAU, Alain - The Myth of Pope Joan. University of Chicago Press, 2001.
  • CRAIG, Rustici - The Afterlife of Pope Joan: Deploying the Popess Legend in Early Modern England. University of Michigan, 2006.
  • CROSS, Dona Woolfolk - A Papisa Joana. 12ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000

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