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domingo, 20 de julho de 2014

Prisciliano de Ávila, Herege ou Mártir?

Prisciliano figura seguramente numa curta lista de personagens históricas ancestrais que ainda hoje são recordadas no Noroeste Peninsular. 
Nascido por volta de 340 d. C. na zona que corresponderia à Galécia (Noroeste da Península Ibérica), pouco se sabe sobre os anos iniciais da sua vida. É provável que desde cedo se procurasse inteirar dos textos sagrados, começando a formular a sua própria interpretação daquilo que deveria ser a prática cristã. 
Em termos religiosos, Prisciliano e seus fiéis seguidores defendiam que:

  • Deus emanou uma série de seres divinos, entre os quais se incluem os anjos e as almas dos homens.
  • O corpo de Cristo era espiritual e tinha apenas a aparência da carne (docetismo); 
  • A matéria foi criada pelo demónio para aprisionar os filhos de Deus. 
  • As três pessoas da Trindade são iguais e eternas.
  • O ascetismo puro era o caminho a seguir, assente na pobreza e humildade.
  • A dança na liturgia, juntando homens e mulheres, deveria ser implementada.
  • Alguns dos apócrifos proibidos eram tolerados.
  • A idolatria de Deuses pagãos deveria ser repudiada, embora a sua doutrina tenha sido acusada mais tarde de misturar práticas pagãs enraizadas na região pouco romanizada onde ele pregava.
  • A existência de dois mundos: um do Bem e outro do Mal.
  • O repúdio da ignorância humana no campo espiritual.
  • Existia uma relação curiosa entre as partes do corpo e os signos do Zodíaco, e entre as almas e os nomes dos patriarcas. A vertente astral está muito presente na visão priscilianista.
  • O papel e contributo de mulheres e escravos (ambos discriminados naqueles tempos), que assistiam às reuniões de leitura, deveriam ser valorizados.


Relativamente à organização da Igreja (tolerada a partir do Édito de Milão promulgado pelo Imperador Constantino no ano de 313 d.C.), Prisciliano condenava as relações próximas desta com o Império Romano, mas também a corrupção, a opulência e a ganância que afectariam já uma boa parte da hierarquia.
As suas pregações iniciam-se em 379, começando a atrair a admiração de várias classes populares do Noroeste Peninsular que se rendiam aos seus ideais. Torna-se bispo de Ávila, por volta dos anos de 381-382. O seu inegável sucesso repercutiu-se num mau estar já que as suas teorias incomodaram vários responsáveis da Igreja. Acabaria por ser rapidamente excomungado, e o imperador romano Graciano, pressionado, estava prestes a ordenar o seu banimento (o mesmo se aplicaria aos seus seguidores).
Em 382, Prisciliano deslocou-se a Roma para se defender das acusações que agora recaíam sobre si, contudo não foi atendido. Mas em Milão, consegue convencer o magister officiorum para que anule o decreto imperial. 
Todavia, a sua situação não ficaria resolvida, até porque Máximo, o novo imperador romano do Ocidente (responsável pelo assassinato de Graciano), estreitou ligações com a Igreja que estava interessada em acabar com os movimentos considerados dissidentes. No concílio de Bordéus, o Priscilianismo (a doutrina de Prisciliano) é considerada uma heresia, e Urbica, uma das suas discípulas, é mesmo lapidada por uma multidão em fúria.
Prisciliano tenta defender-se novamente e ruma, desta feita, a Tréveris (na Germânia Superior), onde estaria a corte imperial de Máximo, contudo é aí acusado da prática de diversos rituais mágicos (danças nocturnas, uso de ervas abortivas e prática da astrologia cabalística). Sujeito a uma tortura impiedosa, o pregador acabou por confessar estas acusações que lhe eram feitas. 
Em 385, foi condenado à morte por decapitação juntamente com vários seguidores seus: Felicíssimo, Armênio, Eucrócia, Latroniano, Aurélio e Asarino. 
Foram os primeiros hereges a serem justiçados pela Igreja Católica através do recurso a uma instituição secular, contudo também é justo mencionar que o Papa Sirício (384-399) e os notáveis Ambrósio de Milão e Martinho de Tours protestaram, em vão, contra a execução.
Prisciliano tinha falecido, mas as suas teorias permaneceriam na região da Galécia, pelo menos, até ao século VI d. C. 
Há autores que suspeitam que os restos mortais de Prisciliano, ainda hoje relembrado com orgulho pelos galegos, estarão na tumba venerada de São Tiago de Compostela (em vez do apóstolo que afinal poderá não jazer aí), embora não existam ainda provas científicas a esse respeito. 




Imagem nº 1 - Retrato de Prisciliano.


Herege ou Mártir?

Não conhecemos a fundo o legado e a vida pormenorizada de Prisciliano, e por isso, alertamos, desde já, que a nossa leitura será, desde logo, condicionada, no sentido em que nos basearemos apenas nos dados que recolhemos a partir da nossa investigação. 
Parece ser, pelo menos, óbvio que este pregador efectuou interpretações teológicas arriscadas, suficientes para serem consideradas como práticas desviantes ao Catolicismo (não confundir com Cristianismo), contudo não é menos verdade de que o seu ideal de pobreza (assente nas práticas primitivas) não terá sido bem acolhido por alguns círculos poderosos da Igreja do século IV.
A sua influência gnosticista não lhe granjeou igualmente muitas simpatias no topo da hierarquia católica. A sua doutrina foi mesmo criticada por Santo Agostinho.
Mesmo assim, não se pode colocar em causa a devoção cristã deste defensor do estilo ascético que, com ênfase e convicção, pregava incessantemente junto das comunidades do Noroeste Peninsular, embora alguns dos seus ensinamentos fossem, no mínimo, dúbios ou polémicos. Por isso mesmo, é notório que a sua condenação à morte esteve longe de ser consensual.
Na nossa visão, embora não seja certo um historiador julgar os acontecimentos, a execução de Prisciliano constituiu um grave erro por duas razões. Em primeiro lugar, porque os ensinamentos de Jesus Cristo jamais aceitariam o derramamento de sangue, e em segundo, a execução de Prisciliano acabou por ter o efeito inverso, já que a sua morte (o primeiro herege a ser condenado) tornou-o ainda mais conhecido bem como as suas ideias que ainda mereceram grande admiração popular nos dois séculos seguintes.




Imagem nº 2 - A Decapitação de Prisciliano em 385.


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