Este site foi criado com o intuito de divulgar os feitos mais marcantes no decurso da história mundial

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Gundesindo, o Conde obreiro

Gundesindo Éris é uma das personagens históricas de outrora, cuja maior parte dos feitos colide com a escassez das informações detectadas nos manuscritos medievais.
Sabemos que terá vivido nos séculos IX ou X, e que era filho de Ero Fernandes (conde de Lugo, senhor de Arões e ainda elemento frequente na corte do rei das Astúrias Afonso III) e de Adosinda. Gundesindo inseria-se no círculo restrito da alta nobreza (é possível que tenha herdado posteriormente o condado de Lugo), e integrava uma família que mantinha um raio de influência interessante na região galega e no norte daquilo que viria a ser mais tarde o reino de Portugal. 
Não sabemos se Gundesindo prestou provas militares no âmbito da Reconquista Cristã (decerto um cenário a não excluir), todavia graças ao seu zelo cristão, promoveu a construção de dois mosteiros importantes na nossa região, de acordo com as informações cedidas pelos eruditos Aires de Amorim e Miguel de Oliveira que elaboraram monografias sobre Esmoriz e Ovar respectivamente.
O Conde Gundesindo e a sua mulher Inderquina Pala fundaram os mosteiros de Sanguedo (na actual Vila da Feira) e de Azevedo em S. Vicente Pereira (Ovar), revelando a sua vocação cristã e inspirados seguramente por uma época em que o fervor religioso era tremendo. O facto da sua filha (Froilo) ter nascido disforme poderá também ter pesado na decisão do casal em fundar tais conventos, porque interpretaram tal ocorrência como fruto dos pecados que haviam cometido (na era medieval, tudo era encarado como um sinal de aprovação ou reprovação divina).
Esta é a história sucinta (mas aquela que é possível fazer) de Gundesindo, que actualmente é recordado com orgulho em Gondesende, lugar sito em Esmoriz que acabou por herdar o seu nome.




Artigo publicado no Jornal A Voz de Esmoriz. Direcção de Lília Marques. Propriedade da Comissão de Melhoramentos de Esmoriz. Edição de 25 de Novembro de 2014. 

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

José Gregório Hernandez, o "médico dos pobres"

José Gregório Hernandez é uma das personalidades venezuelanas mais conhecidas no panorama da história mundial. A capacidade que logrou em conjugar os seus sábios conhecimentos científicos de reputado médico com as acções sociais de altruísmo e caridade proclamados pela religião cristã tornaram o seu percurso de vida deveras singular.
José nasceu no dia 26 de Outubro de 1864 no seio da povoação humilde e tranquila de Isnotú (estado de Trujillo) localizada algures no sopé dos Andes Venezuelanos. Era filho de Benigno Hernandez Manzaneda e Josefa Antónia Cisneros que possuíam uma pequena loja ou armazém. A sua mãe, cristã fervorosa, faleceu quando possuía apenas 8 anos de idade. Por seu turno, o seu pai interessava-se já por medicina herbal, o que fez com que aquela comunidade rústica começasse a ir ao seu encontro para curar algumas enfermidades e sarar feridas. Benigno adquiriu mesmo fama de curador local. Mas esta faculdade acabaria por ser herdada e aperfeiçoada pelo seu filho que mais se evidenciaria na arte de silenciar a dor daqueles que padeciam de diversos e atormentadores sofrimentos. José terá sido ainda o irmão mais velho dum total de seis.
Influenciado por tendência paterna, José Gregório Hernandez alcançaria a sua formação médica na Universidade Central da Venezuela (em 1888), na altura, o melhor estabelecimento de ensino do país. Automaticamente se distinguiu pelas prestigiantes classificações e conduta exemplar, assimilando assim uma vasta cultura enciclopédica. Passou igualmente a dominar um número considerável de idiomas. Além dos livros, apreciava música e até filosofia e teologia.
Este doutor de Medicina rumou depois à Europa, mais concretamente a Paris, para aperfeiçoar os seus conhecimentos, frequentando conceituados laboratórios (nomeadamente os de Charles Robert Richet e Mathias Duval) o que lhe permitiu dotar a sua sabedoria de matérias sobre Medicina Experimental, Bacteriologia, Fisiologia, Patologia e Microbiologia. Teve ainda uma pequena passagem por Berlim que assim lhe permitiu estudar Histologia e Anatomia Patológica.
Quando retornou à Venezuela (1891), foi um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento nacional da Ciência Médica, nomeadamente num sector ainda tão pouco aprofundado como era a micro-biologia. Foi mesmo o principal responsável pela introdução do microscópio na Venezuela, dando a conhecer a sua utilidade e a forma como o mesmo deveria ser instrumentalizado. Terá igualmente trazido de França outros aparelhos que seriam extremamente úteis. Neste seu regresso, e dada a sua avançada e actualizada metodologia, torna-se imediatamente docente da Universidade Central da Venezuela, leccionando as disciplinas de Histologia Normal e Patológica, Fisiologia Experimental e Bacteriologia. A sua formação intelectual era claramente elevada, e mais do que isso, colocou-a ao serviço dum povo. Acabou mesmo por formar uma escola bem-sucedida de investigadores que viriam a imprimir um papel relevante na evolução da Medicina Venezuelana.
José Gregório Hernandez não foi apenas um talentoso médico, professor e investigador científico, de convicções católicas, pelo que ainda conseguiu conciliar a sua faceta de abnegação em prol dum povo que vivia maioritariamente na miséria e que não possuía recursos financeiros para conseguir viabilizar os tratamentos necessários. É efectivamente neste capítulo que testemunharemos a excepcional humanidade de José Gregório. Neste âmbito, cuidará de pacientes ricos e pobres, não fazendo qualquer distinção entre estes, e nunca mencionando se os seus serviços médicos seriam ou não cobrados. Uma tipologia de sacrifício que lhe ocupou ou preencheu bastante os afazeres do seu quotidiano visto que esta personalidade jamais ignoraria qualquer pedido de auxílio, procurando a partir das suas capacidades médicas dar o seu melhor por aqueles que viviam num estado de saúde desesperante.
Jose Gregorio Hernandez (artist Ivan Belsky)Exerceu essencialmente a sua actividade de médico comunitário nos estados andinos de Trujillo, Mérida e Táchira. Sabemos ainda que tratou gratuitamente os pobres, e que até chegava a comprar os medicamentos com o seu próprio dinheiro, só para almejar evidentes melhorias nos seus doentes que tanto estimava.
Além disso, e por volta dos anos de 1908-1909, José aferiu a possibilidade de aderir à vida monástica (inclusive, chegou a tentar, por pouco tempo, a sua sorte num mosteiro da Ordem de São Bruno em La Cartuja de Farneta, em Itália) e até ponderou encetar estudos posteriores no âmbito da teologia, contudo tais planos acabariam por se frustrar devido às suas condições frágeis de saúde. Mesmo assim, aderiu à Ordem Franciscana Secular da Venezuela, prestando assim uma notável admiração pelo legado de São Francisco de Assis que o inspiraria nesta missão de auxiliar os mais desfavorecidos.
Por várias vezes, José trabalhou voluntariamente até avançadas horas da madrugada (abdicando do seu próprio descanso!), enfrentou deslocações penosas e temperaturas adversas, e inclusive arriscou várias vezes a sua vida ao tratar focos contagiantes de doenças que poderiam tirar-lhe a vida num ápice (caso disso foi o medonho surto de Gripe Espanhola que aniquilou várias vidas). E é imperioso sublinhar que jamais concretizaria tais serviços médicos por uma vertente financeira porque efectivamente o seu altruísmo era sincero e inegável. Ele tinha seguido medicina para ajudar o seu povo, sobretudo aqueles que não tinham condições monetárias para efectivar os tratamentos que por tanto ansiavam.
A história desta personalidade cuja erudição era logicamente proporcional à sua benevolência conheceria um desfecho fatídico em Caracas no dia 29 de Junho de 1919. Após ter ouvido a missa matinal na Igreja de La Pastora, dirigiu-se à casa duma senhora que havia sido afectada por uma enfermidade grave. Pelo caminho, decidiu parar para comprar medicamentos numa farmácia, contudo ao sair da mesma, e presumivelmente apenas concentrado nos seus pensamentos profundos, não se apercebeu que se aproximava um carro a circular, pelo que acabou por ser projectado de forma fatal, pois bateria com a cabeça contra um meio-fio de pedra do pavimento. José fecharia assim os olhos para este Mundo ao fim de 54 anos de vida, e a sua morte foi prontamente lamentada por milhares de pessoas que tiveram clara noção da perda dum homem íntegro e honesto.
Nas décadas seguintes, muitos venezuelanos suplicaram pela sua intercessão e houve quem igualmente lhe atribuísse vários milagres. Há inclusive um processo moroso de beatificação em marcha, apesar do Papa João Paulo II o já ter reconhecido com o estatuto de "Venerável", mas no entender de inúmeros sul-americanos, esta distinção não é ainda suficiente, pelo que defendem a sua beatificação e posterior canonização.
José Gregório Hernandez foi um exemplo de homem que soube coadunar as virtudes morais da sua religião com os princípios imprescindíveis da ciência e medicina modernas. A sua passagem, embora fugaz, por este planeta relevou a transmissão dum legado cultural que viria a inspirar multidões nos tempos subsequentes.




Imagens: A primeira imagem apresenta-nos uma escultura de homenagem a José Gregório Hernandez na sua terra natal - Isnotú (estado de Trujillo) e foi então retirada do seguinte endereço electrónico: https://www.panoramio.com/user/914786. A segunda gravura apresenta-nos um retrato sobre a mencionada personalidade no santuário de Isnotú. A mesma é do domínio comum e foi extraída do Wikipédia.
Na terceira ilustração, observamos o médico a rezar, sendo que esta é oriunda do site: http://www.tiwy.com/pais/venezuela/jose_gregorio_hernandez/eng.phtml, (o quadro foi pintado pelo artista Ivan Belsky, e a fotografia é da autoria de Rem Sapojnikov). Por fim, na quarta imagem, encontramos nova pintura de Ivan Belsky que espelha a postura e o traje do doutor. A mesma foi retirada a partir de: https://eccechristianus.wordpress.com/2010/10/13/un-caso-el-doctor-jose-gregorio-hernandez/ (também se encontra uma figura semelhante no site anterior citado).



Referências Consultadas:

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

São Nicolau de Mira - um exemplo de altruísmo

Nicolau de Mira nasceu por volta do ano de 270 d. C. na Ásia Menor, mais concretamente na localidade de Patara (actual Turquia, embora outrora integrante dos domínios e da herança da Grécia Antiga). Presumivelmente, seria filho de nobres com consideráveis recursos económicos.
Desde cedo, isto é, no decurso da sua juventude, Nicolau evidenciara um claro fervor religioso, praticando jejuns voluntários, e desprezando, em simultâneo, os divertimentos e a luxúria material. Frequentava ainda com elevada regularidade os espaços presumivelmente clandestinos de culto cristão.
A sua singular generosidade ficou registada na História, visto que Nicolau de Mira, ao ser proveniente duma família com elevadas posses, começou a praticar actos de caridade que visavam os mais necessitados. Dentro deste contexto, e através dum pretenso anonimato, assegurava doações de moedas de ouro, roupas e alimentos aos pobres e às viúvas. O nosso biografado nutriria ainda uma especial afeição pelas crianças, envolvendo as prendas dedicadas a estas em sacos que eram depois despejados por si pelas chaminés das casas seleccionadas (isto de acordo com as narrações lendárias), durante a noite. Estes gestos solidários eternizariam o nome de São Nicolau enquanto símbolo mundial do altruísmo e da fraternidade, e por isso, o seu nome acabaria por ser naturalmente associado à época natalícia.  
É certo que não podemos adiantar uma descrição detalhada sobre as suas vivências porque estas se localizam numa era que, embora extensa, nos deixou ínfimos registos escritos, além da sua história se encontrar irremediavelmente conotada com narrações lendárias. 
Sabemos que, em data incerta, foi consagrado bispo de Mira (moderna Turquia) e desenvolveu ainda algum apostolado na Palestina e no Egipto. Todavia, foi detido aquando das perseguições ordenadas pelo imperador Diocleciano, mas a mudança ocorrida com o Édito de Milão do imperador Constantino em 313 d. C., permitiu finalmente a liberdade de culto aos cristãos, pelo que Nicolau terá prosseguido com a sua missão pastoral sem ser incomodado.
No ano de 325 d. C., terá participado no Primeiro Concílio de Niceia, o qual abordaria várias questões doutrinais, essenciais para a afirmação da Igreja Cristã no início dum período em que passaria a gozar de liberdade e tolerância totais. Foi nesse mesmo concílio que se condenou o arianismo (esta filosofia baseava-se na doutrina do presbítero Ário, o qual não via Jesus Cristo como um ser divino, mas antes como um instrumento de Deus sem carácter eterno ou transcendental) e se aplicaram algumas regras morais destinadas ao clero. Mas sobre a actuação concreta de Nicolau neste concílio não conseguimos apurar muitos pormenores, embora se acredite que tenha repudiado igualmente o arianismo, abraçado o Cristianismo Ortodoxo e ainda assinado o Credo de Niceia.
De acordo com outras narrações, São Nicolau terá igualmente participado em vários debates internos com os líderes eclesiásticos mais influentes do seu tempo, e reza a história, de que uma vez, perdeu as estribeiras, e se levantou do seu lugar, esbofeteando um dos seus antagonistas. Este episódio, se é que efectivamente aconteceu como alguns tendem a inferir, terá feito com que o seu estatuto fosse, embora temporariamente, abalado no seio das instâncias clericais.
Mesmo assim, o bispo de Mira nunca desistiu de ajudar os mais necessitados, e a sua popularidade social continuava a ser considerável. Por exemplo, há uma lenda que nos conta a história de um pai que não tinha dinheiro para constituir o dote das suas três filhas e assegurar os seus respectivos casamentos além do seu inevitável sustento, e que estava então decidido a enviá-las para a prostituição, contudo Nicolau, ao inteirar-se daquela situação desesperante, encheu três sacos com moedas de ouro para assim assegurar a pureza daquelas e evitar aquele destino fatídico. Noutra instância, Nicolau conseguiu evitar que três generais fossem executados, após uma condenação injusta.
É pois verosímil que este bispo generoso tivesse conquistado várias gentes do Oriente para a Igreja Cristã, desviando-as da adoração pagã. As suas práticas credíveis e sinceras devem ter sido suficientes para atrair a admiração de multidões. Além do mais, foi-lhe atribuído a fama de taumaturgo ou milagreiro. Aliás, a sua popularidade actual ainda se encontra nos píncaros em diversas regiões do globo.
Desconhece-se o ano e o local do seu falecimento (326, 342, 343, 350 ou 352? Mira?), todavia sabe-se que o seu túmulo seria alvo de culto nos tempos posteriores. Em 1087, o mesmo terá sido trasladado à força por marinheiros e soldados italianos que trouxeram os seus restos mortais para Bari, onde foi acolhido de forma triunfal por parte da população. Este marco fará com que o seu culto atinja igualmente um nível de veneração bastante elevado no panorama europeu.
Assim sendo, o carismático São Nicolau, além de ser padroeiro das terras de Mira e Bari, também o é da Rússia, Grécia e Noruega. É ainda o padroeiro das crianças, moças solteiras, marinheiros, cativos e lojistas.
O seu nome foi ainda associado, de forma directa, às comemorações do nascimento de Jesus Cristo, sendo personificado pela figura do Pai Natal. Mas Nicolau jamais utilizou as vestes avermelhadas que hoje estão na moda nem nunca demonstrou qualquer sede de protagonismo (muitos dos seus actos de caridade eram concretizados de forma discreta e anónima), era sim um homem de convicções e que em nome de Deus, e tirando proveito do seu estatuto social afortunado (recebera uma herança abastada dos seus pais, e depois ainda alcançou o cargo prestigiante de bispo), transmitiu grandes gestos de compaixão e solidariedade às crianças e aos pobres.



Imagens: Na primeira imagem, encontramos um retrato de São Nicolau que foi retirado a partir do seguinte site: http://www.tvimaculada.org.br/sao-nicolau-sagrado-bispo-de-mira/. Já a segunda gravura ilustra a intervenção crucial de São Nicolau que evitou a execução de três inocentes; a mesma é da autoria de Iliá Repin e encontra-se datada para o ano de 1889.


Notas-extra:


1- Apesar de não se conhecer ao certo o ano do seu falecimento (terá ocorrido algures no século IV), paradoxalmente adianta-se que São Nicolau de Mira teria falecido no dia 6 de Dezembro, pelo que este dia corresponde à sua festa litúrgica. Ressalvamos ainda a sua inclusão nos ritos natalícios do dia 25 de Dezembro, o que atesta a sua enorme popularidade entre os cristãos. Em Bari, o dia 9 de Maio reveste-se de semelhante importância, porque foi o dia designado para comemorar a trasladação das relíquias e restos mortais do Santo provenientes de Mira.

2- Há fontes que equacionam a possibilidade de São Nicolau ter afinal agredido Ário, defensor do Arianismo (visão que colocava em causa a divindade de Cristo). Este gesto isolado de Nicolau de Mira, a ter realmente acontecido, talvez seja justificado pela excessiva intensidade das discussões teológicas. De qualquer das formas, esta história sobre uma potencial reacção mais intempestiva por parte de Nicolau de Mira (seja contra quem fosse!) carece ainda duma base solidamente fundamentada. Aliás, as informações existentes sobre a sua vida pecam por ser irremediavelmente escassas e nem sempre as mais credíveis. Mesmo assim, procuramos aqui fazer um esboço sobre a sua história de vida. 



Referências Consultadas:

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A pureza da "Santa" Maria Adelaide (Arcozelo)

Há vidas que vêm a este mundo que se equiparam a astros fugazes, repletos de luminosidade, que semeiam um impacto bastante produtivo nos povos. A vida de D. Maria Adelaide de São José e Sousa Gama foi um desses exemplos excepcionais, privilegiando minuciosamente a atenção dos mais carenciados.
Maria Adelaide nasceu em 1835 no Norte de Portugal. Alguns autores situam o seu nascimento no Porto, outros em Lamego. Desconhecem-se os nomes dos seus pais. Sabe-se que na sua juventude frequentou um colégio portuense onde iniciaria a aprendizagem básica.
Depois desta etapa inicial (difícil de detalhar devido aos parcos elementos biográficos conhecidos), veremos D. Maria Adelaide a professar no Convento Corpus Christi de Vila Nova de Gaia, sendo que a sua entrada se terá devido aos conhecimentos que havia adquirido na vertente musical, pois iria substituir a recém-falecida organista conventual. Todavia, foi precisamente nessa fase da sua vida que a saúde lhe começou a pregar as primeiras partidas, causando-lhe sérios dissabores. Maria Adelaide possuía um estado físico frágil ou vulnerável, e julga-se que terá então contraído tuberculose, motivada talvez pela humidade das instalações (o convento ficava à beira-rio) e pela rígida austeridade e confinamento monásticos. A situação deve ter sido grave ao ponto de Maria Adelaide acabar forçosamente por se retirar daquele lugar.
Retornou pois ao Porto, onde viveria no largo do Moinho de Vento, mas o seu estado permanecia crítico e inalterável, pelo que os médicos aconselharam-na a procurar uma zona marítima mais calma, onde fossem abundantes pinheiros e eucaliptos.
Em Maio de 1876, chegará então a Arcozelo, a sua última morada. O seu estado de saúde apresentou entretanto algumas melhorias, embora não decisivas ao ponto de se curar ou refortalecer na totalidade. Efectivamente, o clima daquela terra era agradável, e desde logo, conseguiu ainda alcançar o necessário entrosamento com as gentes que ali viviam.
Naquela povoação rural, Maria Adelaide dedicava-se a fazer rendas e a confeccionar pastéis, e com as receitas das vendas, pagava as suas despesas de vida, e em simultâneo, ajudava muitas pessoas carenciadas. A tradição ressalva que Adelaide nutriria igualmente uma enorme carinho pelas crianças, oferecendo-lhes diariamente pães, doces, roupas, além de as catequizar nos caminhos da fé cristã. Reconciliou casais desavindos que se deixavam enredar pelas exasperantes discussões. O seu altruísmo e voluntariado gratuitos eram uma realidade - quando alguém solicitava urgentemente o seu auxílio, ela nunca se recusava em ir ao encontro dos mais necessitados ou desesperados. Foi uma questão de muito pouco tempo até ser adorada pelo povo de Arcozelo que ficaria rendido à sua infindável bondade. Todavia, quer-nos parecer que, embora os seus feitos fossem evidentemente louváveis e lhe tivessem granjeado imediatamente popularidade, Maria Adelaide não lograva ainda nestes anos finais de vida do pedestal de santidade (atribuído pela comunidade), porque ainda lhe faltava a tal condição alegadamente milagrosa que pudesse atestar definitivamente a sua pureza ímpar. Como veremos, a sua fama popular de santidade só viria a acontecer algumas décadas depois da sua partida deste mundo.
Maria Adelaide faleceria a 4 de Setembro de 1885, com apenas 50 anos - embora estes repletos dum amor incondicional pela vida humana. Julga-se que terá sido vítima de tísica, situação agravada por uma forte constipação. Dentro deste contexto, foi sepultada no cemitério de Arcozelo, e o seu rosto inalterável bem como o seu inseparável segredo de preservação carnal certamente se teriam eclipsado, de forma discreta, na escuridão eterna propiciada pelas paredes do túmulo que a cobriam, não tivesse sido o caixão forçosamente retirado por causa duma venda posterior da campa onde repousava o seu cadáver. Ao que parece o jazigo tinha caído nas mãos da Junta de Freguesia de Arcozelo que o vendera a um casal que residiria no lugar de Vila Chã, o qual estaria interessado em fazer uso familiar do mesmo. Esta acção é talvez compreensível se tivermos em conta que Maria Adelaide, apesar da boa imagem deixada, começara gradualmente a cair no esquecimento desde o seu falecimento em 1885, e é evidente que o seu estatuto popular só se afirmará com tremendo ímpeto a partir das incidências posteriores que narraremos já de seguida.
No âmbito da trasladação, o seu caixão foi aberto em 23 de Fevereiro de 1916, e para o espanto daqueles que estavam encarregues de tal ofício, o seu corpo encontrava-se incorrupto, tendo já passado mais de 30 anos do seu falecimento. As roupas estavam ainda minimamente intactas e emanavam, segundo a tradição, um acentuado aroma a rosas. Todavia, talvez ainda neste preciso momento, os responsáveis pelas acções de trasladação não saberiam exactamente quem seria aquela senhora (que cairia, desde 1885, numa espécie de semi-esquecimento por parte da geração seguinte), cuja carne aparentava estar viva, ironizando a morte e desafiando os dogmas da ciência.
Ao terem conhecimento do sucedido, os membros da Junta de Freguesia determinam ordens para que o corpo seja coberto com carboneto em pedra, além de ser regado com ácido nítrico, para que os restos mortais fossem depois depositados numa vala comum, sem que ninguém soubesse deste singular acontecimento. Coincidência ou não, esta história acontece nos tempos da Primeira República (1910-1926), regime imbuído duma filosofia anti-clericalista.
A história teria sido seguramente abafada, não fosse o dever de sigilo ignorado pelos trabalhadores que, surpreendidos pelo facto, começaram a fazer comentários que rapidamente se espalharam pelas comunidades de Arcozelo e das localidades vizinhas.
Milagre, clamaram os aldeãos! No dia 27 de Fevereiro de 1916, o povo uniu-se para desenterrar definitivamente aquela senhora agora revestida de santidade - Maria Adelaide, o seu intacto corpo foi lavado e, dentro de uma capela, vestiram-lhe novas roupas e colocaram-na numa urna, estando exposta a todos que a partir de então procurassem a sua intercessão para as suas necessidades espirituais. A 17 de Maio de 1924, a Santa foi trasladada para a actual capela, continuando a ser adorada pelos crentes.
Mesmo assim, a sua urna não deixou de ser alvo de atentados e roubos ao longo dos anos. O caso mais grave registou-se em 25 de Maio de 1983, quando um homem entrou na capela e recorreu a uma marreta para desfazer o lugar de repouso da "santa", tendo esta ficado com um aspecto facial disforme. Antes, em 4 de Novembro de 1924, uma explosão (cuja autoria nunca foi apurada) na capela causou sérios estragos, embora a urna tivesse ficado intacta.
Actualmente, o seu repouso é visitado anualmente por milhares de crentes (portugueses de diversas regiões e até estrangeiros) que a veneram incondicionalmente, que lhe fazem e cumprem promessas e que aguardam, com esperança, que Maria Adelaide concretize os milagres e curas solicitados por um povo que se deixou enraizar pelos ensinamentos de amor de Jesus Cristo.
Talvez, de modo surpreendente, a Igreja Católica não a reconhece oficialmente nem como beata ou santa, apesar da sua vida de simplicidade e compaixão pelos outros, isto além, de lhe serem atribuídos vários milagres no post-mortem (por exemplo: há relatos de curas formidáveis de quem procurou a sua intercessão junto ao seu corpo incorrupto). A sua urna, centrada numa ornamentada capela que herdou o seu nome, constitui uma fonte de esperança para os crentes cristãos que a visitam, procurando inspirar-se no seu modelo de vida.




Imagem nº 1 - A Capela de Santa Maria Adelaide, onde repousa a Santinha de Arcozelo. Ao seu lado, existe um museu dedicado a Maria Adelaide.
Foto da autoria de Carlos Luís Cruz in Wikipedia
( http://pt.wikipedia.org/wiki/Santa_Maria_Adelaide)





Imagem nº 2 - O vulto de Santa Maria Adelaide algo desfigurado após ter sido alvo da fúria dum visitante indesejado que, com um martelo, violou o seu descanso em 1983.





Imagem nº 3 - A devoção é enorme em torno da sua urna. A santa em carne encontra-se exposta numa urna com tampa de vidro, exibida sobre um pedestal de mármore.
Foto de Lisa Soares (Global Imagens) in Jornal de Notícias




Imagem nº 4 - Estátua de Santa Maria Adelaide na freguesia de São Miguel de Arcozelo.




Referências Consultadas:


domingo, 14 de dezembro de 2014

O Beato Gil e o Pacto de Fausto

Na Idade Média Portuguesa, tivemos notícia duma personalidade cujo percurso de vida pautou-se por uma originalidade e capacidade intelectual ímpares. Num período em que o flagelo do analfabetismo não poupava a maior parte esmagadora da população, Frei Gil distinguiu-se pela sua panóplia de conhecimentos, fruto duma educação madura que lhe permitiu ser dotado dum raciocínio invulgar para a época em que viveu. Além de ser frade dominicano, o nosso biografado foi ainda médico, teólogo e pregador, o que confere indubitavelmente um leque de valências que o individualizaram no século XIII, e o projectariam até no além-fronteiras. Aqui retrataremos a história dum homem com um percurso de vida deveras original.
Gil Rodrigues de Valladares nasceria em Vouzela, entre 1184/1185-1190, no seio duma pequena povoação rústica. Todavia, era filho dum nobre reputado - Rui (ou Rodrigo) Pais de Valadares, um homem com crédito suficiente para integrar o Conselho de Fidalgos do rei D. Sancho I e que era ainda mordomo-mor deste último soberano. Era ainda alcaide da cidade de Coimbra. A sua mãe teria sido Dona Maria Gil Feijó, segunda mulher do citado fidalgo. É muito provável que Gil tivesse alguns irmãos (talvez três!), mas pouco ou nada se sabe sobre eles.
Sabemos pois que, ao pertencer a uma família com consideráveis posses, foi-lhe permitida a possibilidade de estudar num dos núcleos culturais mais valorados da Península Ibérica. Dentro deste contexto, realizaria a sua formação religiosa e intelectual no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Além dos ensinamentos de teologia, terá igualmente estudado aí conteúdos inerentes à Medicina e Humanidades (aqui denotara interesse pela Filosofia). A sua bagagem cultural seria ainda posteriormente complementada através da passagem por Paris, alcançando o aperfeiçoamento dos seus conhecimentos no sector da Medicina, área na qual se formaria, tratando com razoável eficácia os pacientes que lhe eram destinados. 
Aliada à sua inclinação para as ciências profanas, começaram a irromper narrações lendárias, ainda nos séculos XIII-XIV, que o associariam mesmo ao sector das magias ocultas, as quais teria alegadamente estudado no decurso da sua juventude. Certamente que nos é impossível precisar o grau de veracidade deste mito assaz popularizado, contudo é nosso dever relatá-lo pois o mesmo, além de ser original, constitui parte assídua nas descrições biográficas elaboradas sobre o beato Gil. 
De acordo com um autor anónimo contemporâneo, Gil terá sido abordado por um estranho, no decurso da sua viagem desde Coimbra até Paris, onde aquilataria o seu intelecto. De forma veemente e com um diálogo persuasor, essa figura sinistra desejava ensinar-lhe secretamente a arte da magia em Toledo, embora exigisse que o nosso biografado oferecesse a sua alma ao Diabo, processo que seria materializado através dum pacto de sangue. A lenda diz-nos que teria residido alguns anos em Toledo (7 anos, segundo o que é popularmente narrado, embora nos pareça demasiado tempo, se é que realmente há algum fundo de verdade neste mito) e que os conhecimentos de magia adquiridos lhe teriam sido extremamente úteis em Paris, onde evidenciara capacidades suficientes para alcançar o grau de Doutor em Medicina. Neste período, terá realizado algumas curas notáveis que foram facilmente qualificadas de milagres, o que automaticamente lhe granjeou prestígio. A narração conheceria entretanto novos capítulos. Gil começou a sentir-se atormentado pelo pacto que fizera, e terá sido acometido por visões, nas quais lhe surgia um cavaleiro gigantesco que, com uma espada desembainhada, o ameaçava de morte, caso não alterasse a sua postura ímpia. Não sabemos até onde se situaria a influência do vector metafísico e supersticioso na vida desta personalidade medieval, pelo que é impossível determinar a veracidade desta narrativa.
Influenciado ou não por esta história, a verdade é que Gil, após a sua passagem bem-sucedida por França, começa a dedicar-se à causa religiosa, deixando para trás uma juventude intelectualmente irreverente. Em momento incerto da década de 1220, toma o hábito dominicano e professa em Palencia, mas acabará posteriormente por regressar a Portugal, onde se estabelecerá num convento da Ordem em Santarém. O monge seguirá agora uma vida de meditação e penitência, enveredando pela ruptura face a um passado mais imprudente e ousado. De acordo com a narração lendária, teria sido neste momento que, após várias e árduas intercessões, a Virgem Maria teria finalmente actuado em seu auxílio, restituindo-lhe a cédula que havia anteriormente assinado para se fidelizar a Satanás. Com o documento na mão, Frei Gil libertara-se assim do jugo demoníaco que o atormentava. Mais uma vez, remetemos estes elementos para o carácter especulativo, visto que a história de vida deste dominicano encontra-se impregnada de inúmeras lendas e superstições.
De acordo com a tradição, Gil terá igualmente demonstrado os seus dotes de pregador, convencendo muitos jovens e até professores a abraçar a causa dominicana. Graças à sua notoriedade, foi designado prior provincial da Ordem na Espanha em 1233 (alegadamente permaneceu nesse lugar até 1259), e participou em Capítulos realizados em Burgos e Bolonha. À frente deste reputado cargo, promoveu a observância religiosa, a pregação, a fundação de novos conventos e a conversão de judeus e muçulmanos que viviam na Península Ibérica. Efectivamente, fora um homem letrado que se dedicara aos votos de extrema humildade, pobreza e meditação, e ao qual viria a ser ainda reconhecido o dom de palavra, confortando todos aqueles que o rodeavam.
De acordo com os investigadores, Gil deixou-nos ainda obras literárias ou escritos - "Vidas de Fr. Fernando Pires e de Fernando de Jesus", "Livro de Naturas" e uma colaboração parcial na elaboração do livro "Vidas dos Irmãos".
Frei Gil faleceria em Santarém no dia 14 de Maio de 1265. A sua sepultura atrairia muitos peregrinos ao longo dos séculos vindouros que procuravam a sua intercessão no outro mundo. De repente, a comunidade começou a venerá-lo como um santo (é tratado mesmo com este epíteto por alguns historiadores), mas a verdade é que Gil só fora beatificado por Bento XIV em 9 de Maio de 1748, não alcançando até então o nível superior de canonização.
É actualmente o padroeiro da vila de Vouzela em Portugal.




Imagem nº 1 - Estatueta do Frei Dominicano Gil de Vouzela.
Retirada do Wikipédia (Foto: Gabriel Silva)




Imagem nº 2 - Frei Gil a conceder esmolas aos mais carenciados.
Quadro do século XV (autor flamengo?) retirado do Wikipédia




Referências Consultadas:



Nota extra - A designação "Pacto de Fausto" foi inventada mais tarde, radicando as suas origens no mago alemão Johannes Georg Faust (1480-1540), pelo que o título deste artigo, embora referente a uma personalidade portuguesa dos séculos XII-XIII, aplicou, desde já, essa denominação posterior, embora veiculada na actualidade.