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segunda-feira, 13 de julho de 2015

Em Nome da Ganância e da Traição: O Desvio da Quarta Cruzada (1202-1204)


Contexto

A 15 de Julho de 1099, Godofredo de Bulhão conseguiria tomar a Cidade Santa de Jerusalém, coroando com inequívoco sucesso a Primeira Cruzada (1095-1102) que produziria então a formação de quatro estados latinos - Edessa, Antioquia, Jerusalém e Tripoli. Uma caminhada atribulada repleta de combates e visões míticas que abriram os portões da glória aos combatentes cristãos, cujo prestígio ficou, em abono da verdade, manchado pelos massacres hediondos que perpetraram aquando das suas mais notáveis conquistas.
Apesar da desunião e até da mediocridade que vigorava inicialmente entre os grandes líderes do Mundo Muçulmano, a verdade é que o aparecimento de vultos conceituados como Zenghi, Nureddin e Saladino ajudou a inverter o rumo dos acontecimentos. Em 1144, Edessa cai nas mãos de Zenghi - era o primeiro estado cruzado a cair nas mãos do Islão. O seu filho Nureddin anulará a desorganizada reacção cristã expressa na malograda Segunda Cruzada (1147-1149), unificando posteriormente a Síria ao tomar Damasco em 1154. Mas será Saladino, até então seu vassalo e que depois se rebelara contra a sua autoridade (quando se tornou senhor do Egipto), que granjeará inúmeras conquistas e feitos em 1187, recuperando Jerusalém a 2 de Outubro, isto depois de ter vergado o maior exército cristão do Levante na batalha de Hattin travada a 4 de Julho. 
A Terceira Cruzada (1189-1192), encabeçada essencialmente pelo rei de Inglaterra - Ricardo Coração de Leão, viabilizará a recuperação de alguns domínios entretanto perdidos (como por exemplo: São João de Acre) e a sobrevivência dos já limitados "bastiões" cristãos levantinos por mais um século, mas não materializará uma nova reconquista da Cidade Santa que permanecerá assim sob o controlo aiúbida.
Dentro deste contexto, a vontade de recuperar Jerusalém era enorme entre os cristãos. O Papa Inocêncio III (1198-1216), um dos pontífices mais prestigiantes da Idade Média e portador de uma sólida formação teológica e canónica, estava determinado em concretizar este ambicioso objectivo e, por isso, promoveria o fenómeno cruzadístico de forma ímpar. Ele planearia previamente a Quarta Cruzada (1202-1204) e ainda a Quinta Cruzada (1217-1221), embora não tivesse assistido ao desenrolar desta última. Além destas duas expedições que rumaram ao Oriente, pregou igualmente a Cruzada Albigense destinada a combater a heresia do catarismo no sul de França.
A prosperidade e a paz tinham voltado à Ásia Menor, depois da finalização da Terceira Cruzada e da assinatura do Tratado de Jaffa (1192). As trocas comerciais entre cristãos e muçulmanos tinham incrementado, o que favorecia a economia de todos os estados envolvidos. Esse período de tolerância religiosa e progresso económico parecia estar agora ameaçado ao fim de 10 anos decorridos. O sonho incessante de restaurar os tempos áureos da Primeira Cruzada comandava as intenções pontifícias, e para isso havia que preparar novas expedições militares que consubstanciassem na prática todo este programa ideológico.
Apesar do clima de aparente acalmia, há a destacar a perda de Jaffa para as forças muçulmanas em 1197, um enclave estratégico que havia sido segurado por Ricardo Coração de Leão, cinco anos antes, em 1192. Todavia, em 1204, os cristãos voltariam a recuperar esta praça, no âmbito de novas tréguas firmadas e da tolerância aiúbida então manifestada. Mas até se viabilizar essa devolução, pode-se afirmar que a perda temporária de Jaffa (um episódio ainda que isolado), durante aqueles 6 ou 7 anos, foi motivo suficiente para fazer soar o alarme na estrutura pontifícia.
Também em 1197, ocorre a morte de Henrique de Champagne (caiu duma janela do seu palácio em Acre), rei de Jerusalém, acontecimento que abriu algum suspense no que diz respeito ao futuro dos interesses cristãos na Palestina.
Apesar destas notícias pouco animadoras, merece o nosso apontamento - o feito excepcional (embora também isolado) de um grupo de cruzados alemães que se apoderou da cidade de Beirut, contudo estes guerreiros da fé cristã não hesitariam em regressar à sua nação, logo que tiveram conhecimento da morte do imperador germânico Henrique VI que tinha feito anteriormente o seu próprio voto de cruzada (o qual ficaria então sem efeito). Contudo, esta era apenas uma gota no Oceano. A era do pós-Hattin favoreceria, cada vez mais, a unificação do Islão, além de motivar o decréscimo gradual da influência latina no Levante.
A conjuntura na Terra Santa revelava-se estável e próspera no plano comercial, porém o rumo político não era promissor. Assim sendo, a preparação da Quarta Cruzada começava a ser colocada em prática para contrariar o declínio dos ainda sobreviventes estados cruzados, mas o potencial envolvimento de intervenientes incompatíveis com o projecto constituía uma ameaça séria que poderia mesmo comprometer a essência da expedição. A Santa Sé não se terá apercebido a tempo deste perigo, e acabará inclusive por perder a supervisão sobre a campanha que tinha então promovido.





Imagem nº 1 - Inocêncio III almejava restaurar a glória cristã no Levante, ambicionando a recuperação da Cidade Santa que se encontrava nas mãos dos aiúbidas desde 1187.
Fresco que representa o Papa Inocêncio III no mosteiro beneditino de Subiaco




A Preparação da Campanha


O Papa Inocêncio III impulsionaria a pregação da cruzada que se concentrou essencialmente no reino da França (pelo menos, foi aí mais visível) e no Sacro Império Romano-Germânico. Desta vez, a nova realidade não favorecerá a participação de reis, os quais estariam ainda ocupados nos conflitos ocidentais. Neste ponto em concreto, é ainda provável que o papado desejasse assumir o controlo total deste novo movimento de modo a fazer prevalecer o seu poder universal ou primazia apostólica. A empresa deveria ser então encabeçada por alguns membros da alta nobreza que acabariam por aderir à causa, imitando assim um cenário que, por exemplo, já se tinha verificado no decurso da Primeira Cruzada. Sem grandes surpresas, surgiriam com veemência os nomes dos influentes condes Teobaldo de Champagne e Balduíno da Flandres que poderiam vir a assumir um papel relevante na condução desta campanha belicista.
O alvo teórico da Quarta Cruzada já estava determinado - o Egipto, centro nevrálgico do regime aiúbida. Se a cidade do Cairo e as restantes terras "faraónicas" caíssem nas mãos cristãs, a tão desejada Cidade Santa de Jerusalém ficaria praticamente à mercê dos cruzados que assim não teriam motivos para temer qualquer contra-ataque ou retaliação militar por parte dos sucessores de Saladino, pois estes seriam assim derrotados ou aniquilados previamente. Este raciocínio parecia fazer todo o sentido do ponto de vista geo-estratégico, mas em simultâneo, tornaria a expedição bastante ousada e exigente. 
A problemática dos recursos financeiros destinados a subsidiar todo este projecto belicista causava ainda maior apreensão. O Sumo Pontífice, embora presumivelmente empenhado na causa, não poderia contar com o apoio dos tesouros reais (como já tínhamos afirmado, nenhum soberano ocidental aderiu à Quarta Cruzada) e, por isso, decretou um imposto de cruzada que incidia em 2,5% sobre as rendas do clero, mas a sua aceitação bem como a respectiva recolha não parecem ter decorrido da forma mais proveitosa. Durante esta altura, as atenções começam igualmente a virar-se para uma personalidade - Enrico Dandolo, o poderoso e abastado doge de Veneza. Curiosamente, Enrico estava já na casa dos 90 anos, era na realidade cego, mas possuía ainda uma capacidade mental e física bastante invejáveis. Além disso, a sua ambição e ganância eram desmedidas. A Santa Sé julgou ver nesta personalidade um aliado de peso para a sua campanha, um erro do qual se arrependeria amarguradamente para sempre.
De acordo com o historiador Carlos de Ayala Martínez, o doge veneziano Enrico Dandolo comprometeu-se a ministrar as embarcações e os mantimentos necessários à expedição que deveria ser composta por 30 mil homens (cavaleiros, escudeiros e peões). Em contrapartida, os cruzados teriam de pagar a soma total de 85 mil marcos de prata e de ceder metade dos territórios conquistados a Veneza. Naquele preciso momento, muitos acreditaram que o acordo até parecia ser bastante favorável às duas partes e que poderia assim resolver alguns dos entraves da campanha. Mas tudo não passava afinal duma miragem: as dificuldades voltariam a ressurgir muito em breve e o tratado tornar-se-ia bastante lesivo para a facção cruzada.
A morte de Teobaldo de Champagne em Março de 1201 acrescentou mais indefinição à preparação do movimento, visto que aquele conde francês seria o preferido da Santa Sé para desempenhar a liderança máxima da nova cruzada. Como seu substituto, foi escolhido o margrave ou marquês italiano Bonifácio de Montferrat (irmão de Guilherme e de Conrado, personalidades que tinham contraído matrimónio com rainhas titulares do reino de Jerusalém) que revelava uma conexão guibelina com a casa germânica dos Staufen, o que deixava sérias reservas à entidade papal. Segundo Hans Eberhard Mayer, Bonifácio de Montferrat, apesar de reivindicar a seu favor a tradição oriental da sua família, parecia ter ocultado, desde cedo, a sua intenção de combater em solo grego, onde sonhava um dia exercer o seu domínio sobre Tessalónica.
Na Primavera de 1202, o exército cruzado, estacionado em Veneza, tenciona rumar já ao Oriente, mas o doge veneziano trava, naquele momento, as aspirações dos peregrinos e exige imediatamente o pagamento da verba acordada para o transporte das forças cristãs por via marítima. Surpreendentemente (ou não!), os cruzados não conseguirão reunir sequer a soma necessária para saldar a quantia estabelecida no contrato celebrado. Como veremos, a explicação para esta insolvência é simples. O prazo estipulado para a partida da expedição estava fixado para o mês de Abril de 1202. Nessa mesma data, muitos cruzados franceses (provençais e borgonheses) decidiram embarcar em Marselha por questões óbvias de proximidade geográfica. Pelas mesmas razões, outros fizeram-no na cidade flamenga de Bruges. O problema sério ocorreu em Veneza, pois aí só convergiriam 11 ou 12 mil homens que logicamente não conseguiriam pagar o preço (os tais 85 mil marcos de prata) que supostamente deveria ser saldado por uma multidão de 30 mil cruzados. Mesmo assim, lograram reunir, com muito esforço, cerca de 51 mil marcos de prata. Contudo, continuavam a faltar 34 mil marcos para satisfazer as exigências de Veneza. O seu doge não demonstrava qualquer sensibilidade ou compreensão pelo facto de estarem ali menos cruzados do que o previsto, mantendo-se inflexível quanto à soma pretendida. No entanto, Enrico Dandolo, repleto de malícia, dará luz verde à expedição, mas só se os cruzados entrarem no seu jogo frívolo que assentava em abomináveis chantagens e esquemas gananciosos. Enrico poderia estar cego (na dupla acepção da palavra) de ambição mas sabia mais do que ninguém que tinha agora os cruzados na sua mão. Neste âmbito, o doge de Veneza só deixará os cruzados tirar proveito das suas embarcações, desde que estes, na sua primeira operação atacassem a localidade de Zara, outrora um enclave veneziano que estava agora incorporado no reino cristão da Hungria. Os lucros obtidos num potencial saque daquela cidade poderiam ressarcir as derradeiras exigências monetárias do doge.
Abria-se assim um precedente apavorante, onde Enrico deixava bem claro que tinha em mente a estratégia de usar os cruzados para almejar as suas próprias metas políticas e demais caprichos pessoais. Devido a inúmeros câmbios acidentais, a Quarta Cruzada ganhará um cariz económico incontornável. A natureza religiosa será mesmo absorvida pelos vastos interesses da República Veneziana. 





Imagem nº 2 - Enrico Dandolo (1107?-1205), o doge de Veneza, assumirá uma acção determinante no desvio da Cruzada.




O Primeiro Alvo: Zara (1202)


Zara (actual Zadar - Croácia) situava-se na costa da Dalmácia, então banhada pelo Mar Adriático. No passado, chegara a ser pertença dos venezianos, mas em 1183 (ou 1186?) a cidade rebelou-se contra esta república italiana, colocando-se sob a protecção do Papado e do reino cristão da Hungria. Situação que decerto não foi bem digerida por Veneza. Além disso, os venezianos suspeitavam que Zara constituía um abrigo para muitos piratas que comprometiam os seus interesses comerciais naquele mar. Também a expectativa de obter valiosos despojos de guerra (pela via do saque ou da depredação) pesava nas aspirações dos aderentes. Tinha chegado o momento da retaliação.
Após ouvirem a proposta de Enrico Dandolo, alguns cruzados que tencionavam a todo o custo combater na Terra Santa prontamente se recusaram a tomar parte numa acção bélica que seria agora canalizada especificamente contra uma terra cristã. Todavia, e apesar das enérgicas ameaças de excomunhão por parte do Papa Inocêncio III, a verdade é que a maior parte dos combatentes aceitou as exigências infames do doge veneziano e alinhou então nos seus maliciosos ardis. Neste preciso momento, achamos pertinente ressalvar que muitos peregrinos estiveram dispostos a participar no ataque a Zara, com a esperança de que a anulação da dívida seria certa e imediata, o que lhes permitiria liquidez financeira para posteriormente navegar e desembarcar no Egipto ou noutro ponto do Levante, onde travariam as batalhas glorificantes que moldavam o seu imaginário. Contudo, o rumo dos acontecimentos não seria tão linear como supostamente previam.
A partida das forças cruzadas e venezianas ocorre em Outubro de 1202, deixando para trás a cidade de Veneza. O desembarque em torno do porto de Zara dá-se a 10 de Novembro de 1202, quebrando as correntes protectoras ou encadeamento defensivo daquela estrutura portuária. A frota de 50 ou 60 navios de guerra transportava cerca de 20 mil homens (entre cruzados e venezianos) que assediariam assim aquela praça. Com recurso a modernos engenhos e estratagemas de cerco, os cruzados tiraram proveito da superioridade técnica para assim alcançar avanços graduais diante duma guarnição magiar esforçada mas de composição insuficiente para suportar as investidas dum exército oponente que se encontrava bem constituído e equipado militarmente. De nada valeram as tentativas dos cidadãos de Zara que, do alto dos muros, erguiam bandeiras com cruzes a tentar demonstrar que aquela era uma cidade cristã. Pouco se apurou mais sobre este empreendimento militar em concreto. De acordo com a maior parte dos historiadores (Carlos de Ayala Martínez, Migail Zaborov, Hans Eberhard Mayer), a cidade cairia nas mãos cruzadas a 24 de Novembro de 1202. Outros autores (embora em evidente minoria, podemos citar o caso de Tony Jaques) sugerem o dia 15 de Novembro como o da conquista por parte dos cruzados. Independentemente das cronologias propostas, podemos concluir que o cerco de Zara foi apenas uma questão de dias, com os sucessivos assaltos aos muros a viabilizarem muito em breve a vitória dos sitiadores. A população procurou defender-se com valentia nas ruas, combatendo de modo desigual com espadas, flechas e lanças, mas os cavaleiros cruzados e soldados venezianos impuseram naturalmente o seu controlo militar sob a urbe. Nem as igrejas foram poupadas ao saque! Zara seria assim devolvida à República de Veneza, sem glória e honra.
Ao ter conhecimento do sucedido, o Papa Inocêncio III excomungou todos os membros da expedição, evidenciando o seu pesar pelo "sangue irmão" derramado pelos cruzados que estavam proibidos de participar em acções de agressão contra terras cristãs. O episódio assumiu ainda contornos mais gravosos porque o rei da Hungria - Emerico, senhor daquela terra saqueada, estava inclusive disposto a participar numa cruzada, caso a conjuntura assim o permitisse.
Pouco tempo depois, o sumo pontífice levantou a excomunhão aos cruzados franceses e germânicos, mas a manteve em relação aos venezianos, encarados como mentores do actual trajecto da expedição. É provável que Inocêncio III ainda quisesse salvar a Cruzada, tentando a inversão do rumo dos acontecimentos, e por isso, terá recuado parcialmente, no sentido de chamar os peregrinos à razão, os quais deveriam ser imediatamente transportados para combater os muçulmanos na Terra Santa. Mas o pior ainda estava afinal por vir, pois Bizâncio sempre constituíra uma meta aliciante para os proeminentes líderes da expedição.




Local: Zara (actual Zadar - Croácia)
Data: De 10 a 24 de Novembro (ou 15 de Novembro) de 1202
Forças Beligerantes

 Cross templars.svg
Cruzados e República de Veneza

Reino Cristão da Hungria
Comandantes/Generais
Enrico Dandolo
Bonifácio de Montferrat
Nomes não apurados
Número de Combatentes
20 mil soldados
(10 mil cruzados, 10 mil venezianos)
Estatística desconhecida
(Talvez guarnição inferior a 5 mil homens)
Baixas Estimadas
Estatística desconhecida, embora se especule que tenham sido reduzidas.
Estatística desconhecida, contudo houve um número considerável de mortes e ainda de refugiados que abandonaram a cidade.
Resultado: Cruzados e Venezianos apoderam-se e saqueiam a cidade cristã de Zara, após um breve cerco. O Papa Inocêncio III reagiu com fúria, excomungando todos os membros da expedição.

Tabela nº 1 - As estatísticas inerentes à conquista de Zara (1202).






Imagem nº 3 - A conquista de Zara, terra cristã incorporada no reino da Hungria, por parte dos cruzados e venezianos, foi um episódio que terá irritado a Santa Sé que prontamente excomungou os intervenientes.
Quadro da autoria de Andrea Vicentino (1539-1614)






Porquê Bizâncio?


No decurso da triunfante Primeira Cruzada (1095-1102), os atritos iniciais entre os peregrinos ocidentais e os bizantinos ocorreram aquando da tomada de Niceia (os gregos apoderaram-se discretamente da cidade sem dar conhecimento aos cruzados que desejavam saquear a praça que até então estava nas mãos dos turcos) e do posterior cerco de Antioquia (consta-se que um exército de 20 000 homens liderado pelo imperador Aleixo Comneno se dirigia em direcção àquela urbe para auxiliar os cruzados que estavam desesperados e suplicavam por auxílio militar, contudo devido à desinformação que se tinha espalhado em torno do confronto, os bizantinos optaram, a meio do caminho, por fazer marcha atrás, deixando os francos por sua conta). Na malograda Segunda Cruzada (1147-1149; movimento liderado pelos soberanos Luís VII de França e Conrado III da Germânia), os bizantinos foram mesmo responsabilizados pelos fracassos da expedição (esta fraquejou estrondosamente no cerco posto em torno de Damasco), tendo sido estes acusados de traição e de terem conspirado com os turcos. Os ódios e as desconfianças em relação ao Império Bizantino aumentavam...
A autonomia das tradições culturais gregas, além dos seus irresistíveis tesouros e da sua magnificente dimensão artística, motivaram sempre a inveja e a cobiça de diversos povos inimigos ao longo dos tempos. Constantinopla, a "Nova Roma" fundada pelo imperador romano Constantino I em 330 d. C., tornou-se numa das cidades mais preponderantes ou até prestigiadas da Idade Média. A capital do Império Bizantino, localizada na região do Bósforo, assumia um papel fundamental na rede de rotas comerciais estabelecidas no Oriente (aliás, Bizâncio tinha acesso privilegiado ao Mar Negro e Mar Mediterrâneo). O império desfrutava claramente da transacção de produtos de luxo, da abundante circulação monetária e de uma moeda estável durante séculos. No âmbito religioso, a Igreja Ortodoxa tinha reforçado a sua independência desde os tempos do Grande Cisma do Oriente (1054), mantendo assim sérias divisões ou querelas em relação à Igreja Católica de Roma.
Em jeito de síntese, temos, por um lado, um historial já imbuído de cepticismo dos cruzados face à pertinência ou relativa eficácia das alianças forjadas com os bizantinos, enquanto que, por outro, o fulgor cultural e comercial bizantino tornavam o Império e a sua capital apetecíveis aos olhos das personalidades mais poderosas daquele tempo.
Todavia, para a equação ficar completa, era ainda necessário compreender os motivos que poderiam levar Veneza, a república que se tornou monitorizadora da campanha, a atacar aquela região. Se no final do século XI as relações entre aquela cidade-estado italiana e o império bizantino eram bastante promissoras (em 1082, foi mesmo assinado um tratado que conferia privilégios comerciais excepcionais a Veneza), a situação muda drasticamente de figura a partir de meados do século XII com uma aproximação dos venezianos ao inimigo mortal de Bizâncio - o reino normando da Sicília. Este câmbio materializa-se quando o basileu ou imperador grego Manuel Comneno decidiu programar uma ofensiva contra esta ilha, cuja posição estratégica era bastante sensível no âmbito comercial. Logicamente, os venezianos não hesitarão em colocar-se do lado dos normandos de modo a proteger os seus interesses instalados no Mar Adriático que poderiam assim ficar comprometidos com uma eventual hegemonia bizantina naquela região. No cômputo diplomático, a discórdia entre as duas nações começa a assumir tons ousados. Em breve, as autoridades de Bizâncio firmarão acordos vantajosos com as cidades italianas rivais de Veneza: Génova, Pisa e Amalfi. Todavia, o episódio mais negro aconteceu em 1171, quando o mesmo imperador Manuel Comneno lançou uma perseguição geral contra os venezianos, acusados de terem destruído a colónia ou bairro genovês de Constantinopla. Só na capital foram detidos 10 mil venezianos que testemunharam ainda a confiscação dos seus bens. Mas a história não ficaria ainda por aqui.. Em 1182, rebentará uma forte reacção nacionalista no Império Bizantino que causará uma matança cruel e indiscriminada contra habitantes estrangeiros, com sangue veneziano e também de outras nações latinas a ser derramado em nome da xenofobia. No ano de 1185, e em jeito de retaliação, o rei normando Guilherme II da Sicília atacou e saqueou violentamente Tessalónica, uma das principais cidades do Império Bizantino. Nem a Terceira Cruzada (1189-1192) logrou sequer atenuar as rivalidades entre o Ocidente e Bizâncio que se mantinham bem patentes. Afinal, todos estes antecedentes cimentavam terreno para uma escandalosa, mas não impossível, cruzada contra os "cismáticos gregos".
Enrico Dandolo alcançaria o estatuto de doge veneziano em 1192 e ambicionava restaurar, no patamar mais faustoso, a presença comercial e os inestimáveis privilégios da sua república no Império Bizantino, de modo a extrair volumosos dividendos económicos. Não estaria sozinho nesta causa - Bonifácio de Montferrat, que viria a ser então o principal chefe deste movimento cruzado, também tinha pretensões em solo helénico, e não hesitaria em exercer o papel de elo decisivo destinado a convencer os peregrinos a aceitarem as propostas desviantes daquele doge sedento de poder. Neste ponto, e apesar destas intenções individuais prévias que nos parecem evidentes, manifestamos as nossas dúvidas se estas ambições ocultas acompanharam, desde o início, os planos destes dois responsáveis principais pela cruzada, ou se foram apenas reavivadas à posteriori com a sucessão de acontecimentos pontuais que favoreceram a sua concretização.
Como já tínhamos inferido anteriormente, a meta teórica da Quarta Cruzada seria o Egipto, mas nos "bastidores" já se propalava o rumor de que emissários venezianos se tinham reunido recentemente com al-Adil, sultão aiúbida e senhor daquela região, firmando talvez um pacto de não-agressão e reforçando assim os seus interesses comerciais em território "faraónico". Suspeitava-se que Veneza não quereria atacar aquele estado muçulmano, porque aí tinha estabelecido relações prósperas no sector económico. A potencial veracidade em torno deste boato não nos surpreende - Enrico Dandolo sempre soube manejar habilmente os interesses da sua República.
Os dados estavam lançados. A ideia duma campanha contra o Império Bizantino consubstanciava-se gradualmente, mas faltava ainda um vértice essencial - o pretexto minimamente legítimo (pelo menos, aos olhos dos chefes supremos da Quarta Cruzada) ou o referido "acidente pontual" para uma intervenção bélica que pudesse justificar um novo e mais polémico desvio depois do ataque anterior direccionado a Zara. Sem essa circunstância maior, poderia ter ficado sem efeito a hipótese duma ofensiva aos domínios gregos. Contudo, as intrigas palacianas explodiriam em Constantinopla, viabilizando a ingerência estrangeira no império até então orgulhoso da sua língua e da sua identidade.





Imagem nº 4 - Constantinopla, capital do Império Bizantino, foi uma das cidades mais deslumbrantes e opulentas da Idade Média. 




O Pretexto


Isaac II Ângelo reinava em Constantinopla desde 1185. Tratava-se dum imperador que tinha fomentado várias expedições bélicas, nomeadamente contra os búlgaros. Todavia, os elevados impostos que programou para suportar o esforço de guerra bizantino granjearam-lhe impopularidade. Além disso, as suas façanhas militares tinham sido pouco relevantes. Dez anos depois (1195), o seu irmão mais velho Aleixo Ângelo aproveitou a sua ausência durante uma caçada, para se auto-proclamar como novo imperador (agora designado como Aleixo III Ângelo), conseguindo obter a lealdade imediata do exército. Isaac foi detido e cegado em Constantinopla. O golpe de estado parecia ter decorrido duma forma eficaz e tudo parecia estar controlado. Mas Aleixo IV Ângelo, filho do imperador deposto Isaac II Ângelo, tinha conseguido fugir das masmorras em 1201, sem nunca abdicar da luta pelos seus direitos. Ele estava disposto a ceder a todas as exigências para reaver o trono a seu pai, o qual lhe pertenceria também por herança. Dentro deste contexto, e depois doutras consultas ou embaixadas que saíram frustradas, Aleixo IV não hesitará em sondar os líderes cruzados, nomeadamente Bonifácio de Montferrat. Desesperado e sedento de vingança, o filho do imperador destronado está disposto a tudo para obter auxílio militar - promete que cederá 10 mil soldados bizantinos para a Cruzada na Terra Santa, uma enorme soma de dinheiro destinada a saldar as dívidas dos cruzados, assegura ainda que irá restabelecer todos os privilégios e benesses comerciais requeridas por Veneza no seio do Império, e demonstra igual disponibilidade em tentar a submissão da Igreja Ortodoxa à autoridade do Papa. Esta proposta era totalmente aliciante para os ocidentais, e por isso, foi logo aceite pelos cruzados e venezianos que se aprontaram para uma primeira intervenção em 1203. É possível que o imperador germânico Filipe da Suábia (mantinha relações tensas com o Papado) tivesse apoiado sigilosamente estas negociações. Aliás, a irmã de Aleixo IV Ângelo era esposa do poderoso soberano alemão que desejava solidificar a sua influência no interior do seu território.
De um modo geral, o actual governante Aleixo III Ângelo foi imediatamente rotulado pelos ocidentais como um tirano que tinha chegado ao poder por via da usurpação ilegítima do trono, e por isso, o cenário de deposição parecia constituir uma causa justa. Contudo, os guerreiros da fé cristã ignoravam claramente que Aleixo III era bem mais popular em Constantinopla do que Isaac II e seu filho fugitivo Aleixo IV.
Não havia nada a fazer, pois a decisão já estava tomada. O apelo de Aleixo IV tinha sido levado a sério, e os responsáveis máximos da cruzada aceitaram intervir militarmente, depois de terem conhecimento das condições irrecusáveis da nova parceria firmada.
Neste contexto explosivo, regista-se novamente a deserção de mais um número indeterminado de cruzados que não se reviam no rumo da empresa, mas a verdade é que, ainda assim, muitos permaneceram, aliciados por uma eventual recompensa económica e com a esperança de que Constantinopla seria apenas mais uma paragem antes de finalmente desembarcarem no Egipto ou na Terra Santa. Os responsáveis venezianos e Bonifácio de Montferrat tinham conseguido convencer muitos dos guerreiros cristãos a permanecer naquele "compromisso" que assumia, cada vez mais, um cariz político e económico, e não a faceta religiosa que se reivindicava como elo fulcral em qualquer cruzada.
No Verão de 1203, os cruzados iniciaram a primeira ofensiva contra Constantinopla. Desde logo, conquistaram o subúrbio de Gálata e romperam novamente com a cadeia ou corrente protectora que impedia a entrada no "Corno de Ouro".  No dia 17 de Julho, atacam a capital bizantina por terra e por mar, mas aí enfrentam a resistência heróica da guarda varegue (ou varega), composta por ingleses e dinamarqueses. Todavia, Aleixo III, talvez temendo pela sua segurança e pela inequívoca valia do inimigo, fugiu imediatamente da cidade, e assim o trono acabaria por ser devolvido a Isaac II Ângelo, mas como este se encontrava cego, a governação passaria essencialmente para as mãos do seu filho Aleixo IV.
No entanto, a liderança destes dois co-imperadores estava destinada ao fracasso, findando tragicamente a curto prazo. Em primeiro lugar, Aleixo IV não tinha meios financeiros suficientes para honrar os compromissos que tinha assumido com os venezianos e cruzados (o tesouro imperial reunia quantias limitadas naquela altura exacta), perdendo gradualmente a protecção e o apoio da facção latina. Neste cenário comprometedor que ganhava proporções de isolamento, o povo de Constantinopla não perdoava a intimidade de Aleixo IV e de seu pai para com os ocidentais. No mês de Janeiro de 1204, dá-se um novo levantamento nacionalista na capital bizantina, e as vidas dos dois co-imperadores acabariam por ser ceifadas.
O novo imperador aclamado popularmente é Aleixo V Ducas Murtzouphlos (até então fora um funcionário imperial ou protovestiário), o qual está disposto a enveredar por uma política anti-latina e cortar com qualquer tipo de relacionamento ou fidelização com os cruzados e venezianos.
Este derradeiro episódio provocou a ira dos líderes ocidentais que agora julgavam ter o motivo perfeito para concretizar um objectivo ambicioso - apoderar-se do antigo Império Romano do Oriente e reiniciar aí uma nova era. Contudo, estavam seguramente a pensar nos seus interesses pessoais ou privados, omitindo o seu dever de proteger a integridade da Cristandade.





Imagem nº 5 - Aleixo IV em negociações entabuladas com os cruzados, de modo a viabilizar a recuperação do trono imperial.





Imagem nº 6 - O primeiro ataque dos Cruzados a Constantinopla ocorreu no Verão de 1203, e fez com que Aleixo III (visto pelos ocidentais como um usurpador) tivesse fugido da capital bizantina, o que permitiu o retorno imediato de Isaac II e de seu filho Aleixo IV ao centro do poder. Todavia, a  co-governação de ambos seria apenas temporária.
Iluminura e Manuscrito da obra de Geoffreoy de Villehardouin, principal cronista da Quarta Cruzada




A Conquista e o Saque de Constantinopla


Aleixo V Ducas tem a clara noção de que a sua entrada em cena perturba radicalmente as pretensões dos venezianos e cruzados que se encontravam até então concentrados nos extra-muros e até nas periferias da capital. Esperando uma reacção violenta da parte destes, o novo imperador bizantino ordena o reforço urgente das defesas de Constantinopla, nomeadamente das suas muralhas e torres. Apesar da bravura que tentou imprimir nos seus soldados e militantes voluntários, o recém-aclamado imperador sabia perfeitamente que iria enfrentar um adversário superior que detinha mecanismos suficientes para intentar a conquista daquela afamada urbe. Além do mais, Bizâncio tinha acabado de testemunhar profundas divisões internas que abalaram as suas estruturas centrais, o que então materializava uma conjuntura impregnada de debilidade ou fragilidade que favorecia irremediavelmente as intenções dos invasores.
Constantinopla era, naquele momento, uma sombra dos seus tempos áureos, uma presa acessível que despertava a cobiça dos seus acérrimos detractores.
Na primeira semana de Abril de 1204, regista-se o primeiro ataque dos ocidentais aos muros da capital. A 12 de Abril, os cruzados conseguem aniquilar a resistência da guarnição e sobem triunfantemente às muralhas. Nos três dias seguintes (até 15 de Abril), os guerreiros latinos produzirão um dos episódios mais execráveis da História da Cristandade - o Saque de Constantinopla, episódio tenebroso em que a matança assumiu proporções assinaláveis - cristãos que matavam cristãos, tesouros de valor incalculável que foram pilhados pelos cruzados (muitos bens ou objectos de cariz cultural, até então insubstituíveis, desapareceram para sempre; outros conheceram, ao menos, a "sorte" de terem sido trasladados à força para algumas terras do Ocidente, o que permitiu a sua preservação), mulheres violadas sem misericórdia, gritos que ecoavam em vão pelas ruas da capital transformadas agora em "rios de sangue"!!! A ganância desmedida estimulara toda aquela barbárie. Veneza tinha conseguido apoderar-se duma fenomenal Quádriga do século VI a. C. (ou IV a. C., segundo outras leituras) que ainda hoje decora a sua fachada de São Marcos. Os caçadores de relíquias não olhavam a meios para procurar um enriquecimento sujo. Até mesmo alguns eclesiásticos que seguiam na expedição para salvaguardar as necessidades "espirituais" dos peregrinos, demonstraram um descaramento inolvidável, traindo os verdadeiros valores cristãos que deveriam professar. Como mero exemplo destes actos embaraçosos, temos o caso do abade Martin de Pairis que terá ameaçado de morte um sacerdote grego da Igreja de Pantócrator, o qual teve mesmo de abdicar dum valioso e impressionante relicário. Não parece ter sido o único furto ou acto de latrocínio cometido pelo abade francês que, através da sua robustez física, ainda logrou juntar mais outras peças de arte sacra (nomeadamente relíquias de 28 santos masculinos e 8 femininos). É-nos praticamente impossível avançar com uma estimativa concreta para os danos humanos e materiais sofridos durante aqueles três dias infernais. Milhares de pessoas terão certamente morrido, outras terão conseguido fugir ou encontraram modo de serem poupadas; e não subsistem dúvidas de que o rasto de destruição tinha tornado Constantinopla numa urbe vulgar.
Após a conquista da cidade e a consequente fuga de Aleixo V Ducas (rumou à Trácia), os cruzados  e venezianos não hesitaram em apoderar-se de outras regiões à volta. O novo Império será dividido ou partilhado metodicamente, e com enorme sangue frio à mistura, pelos próprios invasores. De acordo com Hans Eberhard Mayer, o rendimento total obtido a partir do saque brutal em Constantinopla poderá ter ascendido aos 900 000 marcos de prata, sendo que 500 000 foram parar às mãos dos venezianos (a dívida dos cruzados já estaria assim mais do que saldada, contudo o Império Bizantino foi, mesmo assim, o último ponto de campanha da Quarta Cruzada, esfumando-se a hipótese duma aventura no Egipto ou na Terra Santa!!!). A escolha do novo imperador, que deveria inaugurar uma dinastia latina, iria recair sobre o conde Balduíno da Flandres, o qual até então se encontrava parcialmente na sombra da liderança da expedição. O novo imperador, coroado a 16 de Maio na Catedral de Santa Sofia, teria direito a um quarto do império, mormente às regiões da Trácia, do Noroeste da Ásia Menor, e às ilhas de Lesbos, Quíos e Samos. Dos restantes três quartos, uma metade foi concedida a Veneza e a outra aos cruzados. Os venezianos voltaram a assumir protagonismo comercial na região, reforçando a sua posição nos mares Adriático, Jónico e Mediterrâneo. Apoderaram-se de portos da costa ocidental de Peloponeso e das ilhas Jónias (ou Jónicas), e também acabariam por assegurar controlo sobre Creta (comprada a Bonifácio de Montferrat).
Por seu turno, Bonifácio de Montferrat tornou-se soberano do reino de Tessalónica (o mais importante estado vassalo do novo Império Latino) que compreendia as regiões da Tessália e da Macedónia, e que submeteria, na sua área de influência, o Principado de Acaia (ou Moreia) e o Ducado de Atenas.
O Império da România, como seria designado, estava então estabelecido pelos ocidentais porém contava com a rivalidade acérrima de três poderosos estados - o Despotado de Épiro, e os Impérios de Niceia (este considerado como o mais influente) e de Trebizonda que seriam representados por sucessores da velha aristocracia bizantina que se encontravam determinados em recuperar os territórios perdidos e eliminar a ingerência estrangeira. Em termos práticos, a fragmentação política era total na região e, graças a esta conjuntura atribulada, as guerras internas travadas entre latinos e gregos constituíram uma realidade inevitável nos próximos anos. Nem o novo imperador Balduíno nem o enérgico Bonifácio de Montferrat escapariam a um final terrível que lhes seria traçado muito em breve. Ambos acabaram mesmo por sofrer na pele a ira dos guerreiros búlgaros que serviam ao temível Caloian, soberano que ficou curiosamente conhecido pelo epíteto de "Matador de Romanos". O primeiro morreria em 1205, depois de ter sido capturado na batalha de Adrianópolis, enquanto que o segundo seria vítima duma emboscada ocorrida em 1207.
Henrique da Flandres, irmão mais novo de Balduíno e segundo imperador latino de Constantinopla entre os anos de 1205 e 1216, ainda somaria algumas vitórias diante de bizantinos e búlgaros, as quais foram, pelo menos, importantes para a preservação dos domínios latinos por mais algum tempo. No entanto, os gregos nunca abandonaram a sua causa e orgulhosos das suas raízes e tradições, conseguiriam avanços decisivos nas décadas seguintes, recuperando gradualmente as terras até então perdidas para os ocidentais e seus aliados. Neste âmbito, não será de estranhar a entrada triunfante de Miguel VIII Paleólogo em Constantinopla no ano de 1261, restaurando a identidade do Império Bizantino e encerrando a era latina que havia durado mais de meio século. Todavia, a herança devastadora desse período belicista impediria que Bizâncio voltasse a assumir a grandeza de outrora, e o seu fim ocorreria em 1453, quase dois séculos depois, com o sultão turco Maomé II a apoderar-se da capital Constantinopla. Outra consequência da Quarta Cruzada foi, sem dúvida, o extremar de ódios e desconfianças entre ocidentais e gregos, o que hipotecou durante séculos o diálogo entre as Igrejas Romana e Ortodoxa.
De um modo geral, os resultados a breve, médio ou até longo prazo revelaram-se inequivocamente desastrosos, comprometendo os interesses cristãos na frente oriental.




Local: Constantinopla (Capital do Império Bizantino)
Data: Desde a primeira semana de Abril até 12 de Abril de 1204 (o cerco)
12 de Abril até 15 de Abril de 1204 (o saque)
Forças Beligerantes

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Cruzados e República de Veneza

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Império Bizantino
Comandantes/Generais
Enrico Dandolo
Bonifácio de Montferrat
Aleixo V Ducas
Número de Combatentes
20 mil soldados
(10 mil cruzados, 10 mil venezianos)
15 mil soldados/voluntários
Baixas Estimadas
Estatística desconhecida, embora se especule que as baixas tivessem sido reduzidas.
Estatística desconhecida, contudo houve um número elevado de mortes, sobretudo durante o saque infernal de três dias.
Resultado: Cruzados e Venezianos apoderam-se da capital bizantina - Constantinopla. Seguiu-se um saque inenarrável que culminou com o desaparecimento de muitos tesouros que até então decoravam aquela opulenta cidade. No âmbito político, nasceria o Império Latino (ou a România) que perduraria até 1261. O até então Império Bizantino cairia em desgraça e, apesar da sua reunificação posterior, a verdade é que jamais regressaria aos seus tempos áureos.


Tabela nº 2 - Esquematização das informações recolhidas sobre a conquista de Constantinopla pelos cruzados em 1204.





Imagem nº 7 - O ataque derradeiro dos Cruzados a Constantinopla em Abril de 1204
Imagem retirada de: https://deadliestblogpage.wordpress.com/page/9/





Imagem nº 8 - O sangue derramado cobria as ruas da capital bizantina, durante o saque ocorrido entre os dias 12 e 15 de Abril de 1204.






Imagem nº 9 - O triunfo do doge veneziano Enrico Dandolo (exibido simbolicamente na proa do seu navio) sobre Aleixo V Ducas Murtzouphlos (este montado a cavalo).
Quadro de Gustave Doré  (1832-1883)






Imagem nº 10 - "Os Cavalos de São Marcos" - Quádriga que decora actualmente a fachada da Catedral de São Marcos em Veneza. Estas quatro estátuas foram atribuídas ao escultor grego Lisipo (embora subsistam ainda dúvidas quanto à sua cronologia e seu autor), e durante séculos, ornamentaram o Hipódromo de Constantinopla, mas o rumo desviante da Quarta Cruzada (1202-1204) permitiu, através do saque da capital bizantina, a trasladação desta estrutura monumental para Veneza.




Teorias do Desvio:


Muitos dos investigadores que se debruçaram sobre o trajecto da Quarta Cruzada propuseram teorias ou hipóteses que tendessem a explicar o desvio desta expedição que, em termos teóricos, deveria dirigir-se ao Egipto, mas que, na realidade dos factos, acabou por pairar no Império Bizantino, após um saque precedente em Zara. 
Entre a comunidade académica, e citando a abordagem de Carlos de Ayala Martínez, subsistem as duas teorias seguintes:

  • A Teoria do Azar  - De acordo com esta proposta, o desvio da Cruzada deveu-se somente a acontecimentos pontuais de importância suficiente para cambiar acidentalmente a rota prevista. Terão sido as circunstâncias produzidas (a limitação dos recursos financeiros dos cruzados, a exploração ardilosa e inflexível da parte dos venezianos, além do oportuno aparecimento dum pretendente ao trono de Bizâncio) que determinaram a mudança dos planos previamente delineados. A crónica de Geoffreoy de Villehardouin (principal fonte da Quarta Cruzada) não nos oferece elementos flagrantes que comprovem uma conspiração prévia, narrando os sucessivos acontecimentos sem levantar grandes suspeitas a esse respeito. Esta é a teoria que reúne mais consenso entre os historiadores, e que conta assim com a aprovação dos especialistas Jonathan Riley-Smith e Carlos de Ayala Martínez.
  • A Teoria da Traição ou do Complot - Segundo esta tese bem mais polémica, terá existido, desde o início, uma preparação prévia e sigilosa do desvio. Assim sendo, o ataque ao Império Bizantino teria sido calculado de forma deliberada com a antecedência necessária. Aqui o dedo é essencialmente apontado ao maquiavélico doge veneziano Enrico Dandolo que, enquanto encetava conversações com os cruzados, terá alegadamente enviado emissários numa missão secreta destinada a selar um pacto de não-agressão com as autoridades aiúbidas do Egipto (o objectivo inicial da Quarta Cruzada), de modo a proteger os interesses comerciais da sua república italiana naquele território. Por outro lado, as relações bastante tensas entre Veneza e Bizâncio constituíam um forte motivo para a planificação duma empresa bélica. Nestas suspeitas de conspiração, nem a imagem do Papa Inocêncio III sai ilesa. Apesar da excomunhão decretada aquando do ataque a Zara (o que parece ter irritado verdadeiramente a Santa Sé), a verdade é que o Sumo Pontífice encheu os cruzados de felicitações quando teve conhecimento da queda de Constantinopla, embora lhe tivesse sido ocultada inicialmente a história do saque sangrento que se sucedera na urbe. Recorde-se que o Papado sempre priorizara a união das Igrejas Romana e Ortodoxa, embora recorrendo até então a diligências diplomáticas. Inocêncio III também é criticado por não ter assumido a dívida dos cruzados (os referidos 34 mil marcos de prata que faltavam para garantir o seu transporte rumo ao Egipto e à Terra Santa), o que poderia ter travado as manobras pouco transparentes e demais chantagens de Enrico Dandolo. Esta interpretação historiográfica reúne menos "adeptos", embora seja ainda assim defendida por Mas-Latrie, Hopf e Mijail Zaborov.

Pelas leituras que até então efectuamos, não nos é nada fácil tomar uma posição concreta que possa esclarecer inequivocamente o percurso atípico da Quarta Cruzada. Por um lado, não duvidamos de que a sucessão de determinados acontecimentos foi decisiva para o desvio da rota cruzadística, mas por outro lado, é igualmente impensável ignorar a má fé e os interesses ocultos do doge veneziano que nos remetem assim para uma clara traição de quem estaria pouco interessado em rumar a terras faraónicas e enfrentar o centro nevrálgico do poder aiúbida. Quanto à eventual cumplicidade do Papa Inocêncio III neste rumo surpreendente, é muito difícil retirar conclusões seguras. No nosso entendimento, denotamos alguma negligência da Santa Sé em não ter conseguido saldar as dívidas dos cruzados (não teria o tesouro papal a capacidade necessária para liquidar a dívida dos cruzados? não poderiam ter sido utilizados outros trunfos negociais, nomeadamente privilégios especiais, que convencessem os responsáveis venezianos a assumir o compromisso de transporte dos cruzados até ao Egipto?), problema que acabou mesmo por desvirtuar a identidade e os objectivos daquela expedição que ganhou contornos de "Cruzada Comercial". Mas exceptuando a inércia papal nesse ponto em particular, a verdade é que não perduram dados suficientes que atestem cabalmente o envolvimento claro e indiscutível da Santa Sé num complot contra Constantinopla que estivesse acordado ou arquitectado desde o início. 
Em jeito de conclusão, acreditamos que os citados acontecimentos pontuais, o envolvimento premeditado e malicioso dos representantes da República de Veneza e a consequente perda do controlo por parte da Santa Sé sobre a expedição justificaram a transformação da Cruzada numa expedição que apenas beneficiou escandalosamente os interesses políticos e económicos venezianos.





Mapa nº 1 - A Rota da Quarta Cruzada, também designada de "Cruzada Comercial".






Mapa nº 2 - O Império Latino (criado em 1204) contava com a rivalidade do Despotado de Épiro e Impérios de Niceia e Trebizonda. Seria extinto em 1261 aquando da restauração da unidade bizantina.
Retirada do Wikipédia e Natural Earth
(https://en.wikipedia.org/wiki/Latin_Empire)




Notas-extra:


1- No ano de 2004 comemoraram-se 800 anos do Saque de Constantinopla (1204), marco que fez com que o Papa João Paulo II expressasse a sua dor e o profundo desgosto pelo episódio que foi considerado como um dos mais tenebrosos da Idade Média. Esta declaração insere-se igualmente no âmbito da visita de Bartolomeu, Patriarca ecuménico de Istambul (antiga Constantinopla), ao Vaticano.

2- Relativamente à participação portuguesa neste conflito, há dois nomes que ousamos destacar - Fernando Afonso (ou Afonso de Portugal, filho ilegítimo de D. Afonso Henriques), Grão-mestre da Ordem do Hospital (1202-1206), e Paio Galvão, bispo-cardeal de Albano e legado papal. O primeiro terá participado, de algum modo e a partir da sua posição privilegiada, na Quarta Cruzada (1202-1204), intervindo directamente no conflito (por exemplo: com a sua presença ou com o envio de destacamentos de hospitalários) ou, pelo menos, mantendo uma relação privilegiada com os líderes da expedição. O segundo (alguns autores poderão defender a sua ascendência leonesa sob o nome de Pelayo Gaitán, embora existam também muitos historiadores que acreditam que ele seria natural de Guimarães) foi enviado a Constantinopla numa embaixada pontifícia, entre 1213 e 1215, para tentar a submissão da Igreja Ortodoxa aos desígnios da Igreja Romana, mas não foi bem sucedido na capital oficialmente "latina" que era ainda habitada, em grande parte, por uma população grega que não queria abdicar das suas convicções e dos seus direitos. No entanto, o silêncio das fontes deste período não nos permite esclarecer muitas das potenciais realidades que terão envolvido o fenómeno da Quarta Cruzada.




Referências Consultadas: