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segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A Lenda do Galo de Barcelos


Contexto: O Galo de Barcelos nos dias de hoje


O "Galo de Barcelos" constitui uma das principais tradições mitológicas de Portugal, além de se traduzir num valioso cartão-de-visita do artesanato luso. Como o nome nos indica, o produto conhece as suas raízes históricas no município de Barcelos, localizado no Distrito de Braga. 
São inúmeros os cidadãos portugueses e turistas estrangeiros que não hesitam em adquirir um exemplar, visto que rapidamente se rendem à originalidade e simbolismo do produto.
Sobre o peculiar formato do moderno "Galo de Barcelos", podemos salientar os seguintes traços característicos: o seu corpo preto (com bordas multicoloridas), a sua crista vermelha, os seus corações vermelhos (símbolos do amor; circundados por bolinhas brancas que nos remetem figuradamente para a paz), o trevo de quatro folhas (símbolo da sorte), folhas verdes (que imitam as das oliveiras) e miosótis coloridos (símbolo silvestre). Podem existir casos de exemplares que não assimilem todos estes pormenores artísticos. No entanto, facilmente podemos concluir que, duma forma geral, o pequeno "Galo de Barcelos", confeccionado em barro e com uma essência multicolorida, apresenta a sua cabeça bem erguida e demonstra inclusive um certo ar viril de desafio. Talvez seja esta postura elegante e orgulhosa do galo que logra despertar a curiosidade e o espanto daqueles que, pela primeira vez, se deparam com esta tradição enraizada no Norte de Portugal.





Imagem nº 1 - O "Galo de Barcelos" é um dos produtos mais prestigiantes do artesanato português, transportando consigo uma grande dose de simbolismo, superstição e mitologia.




A Lenda do Galo de Barcelos



Como já tínhamos mencionado, há uma lenda que se encontra associada ao "Galo de Barcelos" e que terá assim justificado a existência deste produto artesanal. Dentro deste contexto, iremos agora proceder à respectiva narração.
Tudo terá começado com a ocorrência dum grave crime que prontamente fez alarmar os habitantes de Barcelos. O criminoso ainda não tinha sido capturado, o que causou perturbação e receio na população local. Num certo dia, apareceu um galego que logo suscitou suspeitas e desconfianças. As autoridades decidiram prendê-lo, ignorando os seus juramentos de inocência e a sua versão de que estava apenas de passagem no âmbito duma peregrinação rumo a Santiago de Compostela, onde tencionava aí cumprir uma promessa. O réu alegava ainda em sua defesa que era um fervoroso devoto do Santo (São Tiago) e que nutria semelhante adoração por São Paulo e Nossa Senhora. Todavia, os seus argumentos foram, num primeiro momento, ignorados.
O homem acabou por ser condenado à forca, mas mesmo assim, procurou confrontar o juiz que o havia sentenciado à pena capital.  Esta sua solicitação acabou por ser viabilizada. Quando o levaram à residência do magistrado, decorria um banquete, onde estavam presentes familiares e amigos do oficial de justiça. O galego reafirmou a sua inocência, e perante a incredulidade dos presentes, apontou para um galo assado que estava sobre a mesa e exclamou:


 "É tão certo eu estar inocente, como certo é esse galo cantar quando me enforcarem!"


Como é natural, irromperam risos e comentários trocistas à mesa. O apelo do condenado não seria, para já, tido em conta pelo juiz que ainda se encontrava convicto da sua decisão. No entanto, e por algum motivo, ninguém tinha ousado tocar no galo. 
Quando o homem estava para ser enforcado, o galo "assado" ergueu-se na mesa e cantou, deixando todos perplexos. Reconhecendo o seu erro, o juiz foi a correr para a forca, onde evitou a tempo a execução, ordenando a libertação imediata do acusado.
O galego foi-se embora em paz, mas voltaria alguns anos mais tarde, para esculpir o Cruzeiro do Senhor do Galo em louvor a Virgem Maria e a São Tiago, monumento que se encontra no Museu Arqueológico de Barcelos. 
Não sabemos se esta lenda popular conhece algum fundo de verdade no que diz respeito a alguns pormenores da sua narração. É lógico que um galo morto jamais cantaria a uma mesa (e daí ser um relato de natureza mitológica!), mas não deixa de ser um elemento curioso o facto do Cruzeiro do Senhor do Galo (talvez datado dos inícios do séc. XVIII) ser um monumento real que se encontra intimamente conotado com a lenda. Por isso, interroga-mo-nos se o galego era uma personagem totalmente ficcional (e assim sendo, a narração seria somente fruto da imaginação popular) ou se a sua existência era afinal real, embora nesta última eventualidade, a história tenha sido moldada ou alterada pelos boatos deturpadores dos habitantes ao longo dos últimos séculos. 
Não obstante, esta lenda não deixa de ser uma das mais fascinantes de Portugal e talvez até da Europa, pois concilia crenças religiosas (efectua menção à célebre e milenar peregrinação que se destinava a Santiago de Compostela), a ineficácia duma justiça que outrora não tinha em conta a presunção de inocência, o clima de insegurança que chegou a marcar as eras mais antigas, a tradição rural da criação de gado/avicultura (e daí o surgimento do "galo")... 
Em jeito de conclusão, o "Galo de Barcelos", como elemento marcante do artesanato e mitologia nacionais, deve ser conservado e valorizado, pois não deixa de ser parte integrante do nosso diversificado património.





Imagem nº 2 - De acordo com a lenda, um peregrino galego terá sido o bode expiatório dum grave crime que teria ocorrido em Barcelos. Segundo a narração mitológica, o canto dum "galo morto e assado" terá impedido ou até interrompido o seu processo de execução.




Imagem nº 3- O Cruzeiro do Senhor do Galo situa-se no Museu Arqueológico de Barcelos. Em termos pictóricos, a escultura exibe um homem (que deveria então corresponder ao mencionado galego) com uma corda amarrada ao pescoço (surge assim retratado o cenário preparatório da forca). Por baixo, está outra figura (crê-se que seja a do apóstolo São Tiago, pelo qual o galego nutria uma especial devoção visto que ia em peregrinação até Compostela) que procura suster as plantas dos pés do homem. Em cima da coluna, encontra-se a Cruz com Cristo crucificado, mas na sua base inferior pode ser observado um galo (o célebre "Galo de Barcelos").




Notas-extra:


1 - A lenda poderá remontar à Era Medieval ou à Idade Moderna, embora não existam dados concretos que permitam identificar, com rigor e precisão, a sua origem cronológica.

2 - O "Galo de Barcelos" atingiu o expoente máximo do seu reconhecimento durante o século XX. Esta peça artesanal do Minho foi promovida pela política cultural e folclórica do Estado Novo. A sua difusão internacional ocorreu, pela primeira vez, em Genebra no âmbito da "Exposição de Arte Popular Portuguesa" realizada em 1935. Um ano mais tarde, esta exposição repete-se em Lisboa, alcançando um tremendo sucesso. Nas décadas de 50 e 60, o Galo de Barcelos transformou-se num símbolo do turismo nacional e ícone da identidade de uma nação. O seu impacto começou a ser cada vez mais evidente. Após a revolução de 1974, o produto adapta-se à nova realidade de um país que oferece ao mundo o privilégio da "Liberdade". Na actualidade, o Galo de Barcelos ainda se configura como um símbolo de identidade nacional que mantém assim o seu elevado impacto turístico. 

3 - A descrição que foi efectuada, na parte inicial do artigo, sobre os traços característicos desta peça artesanal, corresponde aos ditames do seu "fabrico" moderno que se tornou bastante popular pelas mãos de António Ferro (Secretariado de Propaganda Nacional). No entanto, esta não teria sido a confecção original ou primitiva do Galo de Barcelos que chegou a conhecer uma criação artística distinta (embora seguramente não tão conhecida ou divulgada) e que também esteve fortemente conotada com a lenda.

4 - Em termos supersticiosos, conhecemos igualmente casos de pessoas que compram este produto artesanal porque acreditam que o mesmo lhes poderá trazer sorte e felicidade às suas vidas.



Referências Consultadas:

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Joana D' Arc, a heroína que restaurou o orgulho francês



Contexto: A Guerra dos Cem Anos (1337-1453)


No dia 1 de Fevereiro de 1328 faleceria o rei Carlos IV de França que não tinha deixado qualquer herdeiro masculino, mas somente duas filhas para a posterioridade. A lei sálica, que então vigorava no estado francês, excluía as mulheres da sucessão ao trono. Assim sendo, abriu-se um grave problema de sucessão, visto que não era possível uma transferência de poder por linha directa. Três pretendentes surgiriam então para reclamar a coroa francesa:

  • Filipe de Valois - primo direito de Carlos IV e filho do conde Carlos de Valois.
  • Eduardo III (rei de Inglaterra) - filho da princesa Isabel de França e sobrinho de Carlos IV.
  • Filipe de Évreux - neto da rainha consorte francesa Maria de Brabante; Filipe encontrava-se casado com Joana II de Navarra, sendo esta filha do rei Luís X de França. 

Uma assembleia, revestida de poder deliberativo, acabaria por entregar o trono a Filipe de Valois (a partir de então, passaria a ser designado como Filipe VI), alicerçando-se numa interpretação mais alargada da referida lei sálica que, além de não validar o direito das mulheres em matérias de sucessão ao trono, não tolerava sequer qualquer forma de transmissão do poder régio por via feminina. Além disso, os juristas consideravam que era essencial preservar a independência do reino francês.
Filipe de Évreux contentou-se com a coroa de Navarra, mas em contrapartida não só abdicou das suas pretensões ao trono francês como comprometeu-se ainda a apoiar o novo soberano.
Por seu turno, o rei inglês Eduardo III, ainda que a contragosto, parecia ter inicialmente respeitado a decisão, e por isso, reconheceria e prestaria homenagem a Filipe VI na Catedral de Amiens em 1329. Na Idade Média, os ingleses chegaram a manter influência sobre algumas regiões localizadas em França, como por exemplo, a Normandia (embora perdida em 1204, durante o desastroso reinado de João Sem Terra) ou a Aquitânia, e por isso, era natural que, por causa dessas terras, os reis ingleses tivessem de prestar tributo aos homólogos de França numa cerimónia consagrada para o efeito. Na altura, acreditava-se que a aproximação registada em Amiens teria constituído um importante passo diplomático que visaria a normalização do relacionamento entre os titulares de ambas as coroas, mas afinal tudo não passava de uma ilusão. De facto, as intrigas rebentariam, muito em breve, na Flandres e na Aquitânia, duas regiões que eram alvos prioritários de interesse por parte dos reinos de Inglaterra e França. O conde da Flandres, Luís de Nevers (de naturalidade e ascendência presumivelmente francesas), estava a promover uma política anti-inglesa que não foi bem digerida por Eduardo III que respondeu com um embargo sobre as exportações de lã inglesa na Flandres. Por seu turno, o rei francês Filipe VI tencionava confiscar o Ducado da Aquitânia que até então se encontrava sob batuta inglesa. Confrontado com estas rivalidades acérrimas, o monarca inglês Eduardo III colocou de lado a diplomacia para agora reivindicar convictamente o trono francês, alegando que, de acordo com o direito vigente no seu reino (a lei inglesa assumia uma natureza distinta), ele seria o herdeiro legítimo. Por outras palavras, Eduardo defendia que a filha de um rei (isto é, uma princesa) poderia transmitir aos seus herdeiros o direito à coroa.
Evidentemente, nenhuma das partes envolvidas estava disposta a ceder nos argumentos, tornando o diálogo cada vez mais azedo e irremediavelmente minado por interesses territoriais. A guerra parecia ser então inevitável, com a Inglaterra a preparar uma invasão de larga escala ao reino francês.
As hostilidades irromperam oficialmente em 1337. Nos primeiros tempos, os franceses sofrem derrotas atrás de derrotas. No mar, a sua frota é aniquilada nas proximidades do porto de Écluse. Já em terra, os ingleses alcançam uma grande vitória na batalha de Crécy (26 de Agosto de 1346), onde arrasaram um exército francês que era muito superior em termos numéricos. Nesse confronto bélico, a arquearia inglesa foi determinante, tendo "disparado" mais de 72 mil flechas que acabaram por dizimar boa parte da cavalaria francesa (julga-se que cerca de 12 mil franceses terão morrido na batalha). O próprio rei francês Filipe VI saiu ferido dos combates. Como consequência, o porto de Calais seria prontamente tomado pelos ingleses que começavam a criar os seus primeiros domínios no Norte de França.
A ascensão de João II de França não trouxe boas memórias militares para o seu reino que testemunhava uma tremenda devastação de várias das suas regiões. O soberano francês chegou inclusive a ser detido pelos ingleses na batalha de Poitiers (1356). Novas tréguas seriam firmadas em 1360.
A subida de Carlos V de França ao poder representou finalmente uma reacção positiva das forças francesas. O monarca soube restabelecer as finanças, reorganizar o exército e desenvolver a artilharia. A guerra foi reatada em 1369, seguindo-se uma série de vitórias dos franceses no início da década de 70. No entanto, o conflito seria interrompido por mais 35 anos, visto que ambos os estados debruçavam-se, na altura, com sérios problemas internos. 
Findas as tréguas, o conflito voltaria a reacender-se no primeiro quartel do século XV. Em 25 de Outubro de 1415, a França sofre um estrondoso desaire na Batalha de Azincourt, onde a "fina flor da sua cavalaria" foi dizimada (registaram-se entre 7 a 10 mil baixas no lado francês), realçando-se uma vez mais a assombrosa eficácia dos arqueiros ingleses. Motivados pelo sucesso então verificado, os "invasores" voltaram imediatamente à carga, aproveitando o seu novo ascendente para dilatar as suas conquistas numa França que se encontrava afundada em divisões internas.
Mas as más notícias para os franceses não ficaram por aqui. Num contexto de guerra civil, João Sem Medo, titular do poderoso Ducado da Borgonha, é assassinado, em 1419, por presumíveis partidários do delfim Carlos VII, filho do rei francês Carlos VI. O novo duque da Borgonha, Filipe o Bom, sedento de vingança pela morte de seu pai e também seu antecessor, não hesitará em reconhecer Henrique V, o rei de Inglaterra, e seus descendentes como legítimos herdeiros da coroa francesa. Iniciava-se assim uma aliança estratégica entre borgonheses e ingleses que perduraria, com altos e baixos, até 1435. Todavia, o golpe mais duro ocorreu aquando da Convenção de Troyes, em 1420, quando Carlos VI, monarca de França, decidiu, ele mesmo, deserdar o seu filho Carlos VII para nomear o referido rei de Inglaterra - Henrique V e os seus sucessores como herdeiros do reino francês!!! A independência de França estava em vias de ser comprometida. No lado francês, acentuava-se a desunião e a descrença visto que proliferavam os assassinatos, os massacres e as traições. A insegurança, a instabilidade e a desconfiança permanentes hipotecavam qualquer resquício de prosperidade no território arrasado pelo conflito sangrento que já tinha atravessado vários reinados. O destino parecia estar traçado. A França estava a perder o braço-de-ferro.
No entanto, ainda havia uma derradeira esperança! Carlos VII recusava-se em aceitar o acordo bizarro firmado pelo seu pai, e estava disposto a lutar pelos seus direitos. Por outro lado, o destino pregou uma partida inesperada aos ingleses - o seu reputado rei Henrique V morreria em 1422, com 35 anos de idade, deixando como herdeiro Henrique VI, na altura, um bebé com 10 meses de idade (não poderia, por isso, ser sagrado rei com esta idade prematura). O poder foi entregue a um regente - João de Lencastre, Duque de Bedford - que, em abono da verdade, não possuía uma visão nem sequer uma estratégia tão eficaz como aquela que foi patrocinada por Henrique V. Havia, de certa forma, um vazio de poder, isto é, uma oportunidade para o partido francês reagir.
Nos inícios da década de 1420, a França achava-se repartida por três grandes entidades políticas:


  • Regiões submetidas directa ou indirectamente pela Coroa Inglesa (Henrique VI, ainda menor de idade; João de Lencastre, Duque de Bedford e Regente) - Guiana, Champanhe, Maine, Ilha de França, Normandia... Por outras palavras, controlavam, com maior ou menor expressão, o Norte de França, considerada a região mais desenvolvida. Com a preciosa ajuda dos borgonheses, seus novos aliados, dominavam igualmente Paris. No sul de França, a presença dos ingleses era minoritária, resumindo-se apenas à sua influência histórica sobre o Ducado da Aquitânia.
  • Regiões dominadas directa ou indirectamente pela Coroa Francesa (Carlos VII) - Chinon, Orleães, Bourges... Controlavam o centro bem como o sul de França (à excepção da Aquitânia). Contavam com o apoio externo de Castela, Escócia e Sabóia. 
  • Regiões tuteladas directa ou indirectamente pelo Ducado da Borgonha (Filipe, o Bom - sucedeu então em 1419 a João Sem Medo que foi assassinado pelos partidários de Carlos VII). Os borgonheses (ou borguinhões) eram senhores de algumas regiões do Norte e Leste do território francês. Além de desempenharem um papel determinante na cidade de Paris (ao lado dos ingleses, com os quais mantiveram uma aliança entre 1419/1420 e 1435), chegaram também a deter terras prestigiantes junto ao Mar do Norte. Com Filipe ao leme, o ducado da Borgonha chegaria a manter uma enorme influência na Flandres, o que revela bem o prestígio do seu novo líder que, embora não sendo oficialmente um rei, possuía indubitavelmente um poder equivalente. 


Em suma, esta era a conjuntura política, social e geográfica que iria ser apresentada aos olhos da personalidade que nos propusemos então biografar - Joana d'Arc. O cenário era, na altura, adverso e até crítico para o partido francês. Só uma figura carismática poderia cambiar o curso dos acontecimentos.





Mapa nº 1 - No pós-Convenção de Troyes (1420), os ingleses e seus aliados borgonheses dominavam a região Norte de França (incluindo a capital Paris), considerada a mais importante do ponto de vista económico. Por seu turno, os franceses eram senhores de grande parte do Centro e Sul do Território (à excepção da Aquitânia).
Direitos - Wikipédia (Aliesin)





Nascimento e Primeiros anos de Joana d'Arc



Na pequena e até então insignificante aldeia de Domrémy (situada na região da Lorena), vivia uma modesta povoação, leal à coroa francesa, que dependia essencialmente da agricultura e da criação de gado. Jacques d'Arc e Isabeau de Vouthon constituíam um casal de camponeses que lidava diariamente com as tarefas árduas da lavoura. A sua filha mais nova Joana havia nascido neste berço humilde em 1412. Nos seus primeiros anos, revelar-se-ia uma criança robusta, determinada e devota. Apesar de não saber ler nem escrever (o analfabetismo foi um flagelo transversal na Idade Média), Joana meditava várias vezes o "Pai Nosso" e frequentava igualmente a igreja local. Nos campos, brincava com os restantes amigos da aldeia. Como qualquer jovem da época, não tardaria a auxiliar a sua mãe nas tarefas domésticas bem como os seus irmãos no cultivo dos campos. Sempre que lhe era possível, ajudava ainda os mais pobres através de pequenos gestos altruístas ou com palavras de conforto. A criança vivia uma infância feliz visto que a sua presença era acarinhada por aquela comunidade rural. 
No entanto, a acalmia foi comprometida em 1425, aquando da chegada das forças borgonhesas à região. Temendo potenciais abusos, os habitantes de Domrémy tiveram que abandonar as suas terras, refugiando-se em Neufchâteau. Este acontecimento terá deixado uma marca bastante profunda em Joana D'Arc que, na altura, contava com 13 anos de idade. É neste preciso momento que a jovem alega ter ouvido as vozes do arcanjo São Miguel, de Santa Catarina de Alexandria e de Santa Margarida de Antioquia. De acordo com o teor dessas supostas experiências auditivas, os santos incumbiram-na de combater e expulsar os ingleses e de fazer sagrar o delfim Carlos VII em Reims. As vozes "diziam-lhe" ainda que era uma missão confiada por Deus, à qual não poderia desobedecer. Estava afinal em causa a libertação da própria França, mas Joana era apenas, naquele preciso momento, uma rapariga sem qualquer influência na sociedade em que estava inserida! Aliás, as mulheres eram discriminadas na era medieval, sendo consideradas inferiores aos homens, pelo que deveriam ser inteiramente submissas a estes. As capacidades femininas eram desvalorizadas ou até mesmo refutadas, o que tornava mais remota a possibilidade de Joana singrar neste meio adverso.
Independentemente da veracidade ou não das manifestações transcendentais narradas, a verdade é que Joana mudaria radicalmente a sua visão sobre a realidade que girava em seu torno. Ela agora sentia que a sua missão de vida ultrapassava largamente as obrigações familiares, e que tinha de auxiliar, de alguma forma, o seu país a recuperar o orgulho entretanto perdido.
Motivada pelas profecias, não hesita em cortar o cabelo bem curto e utilizar vestes masculinas. Também começa a interessar-se pelos segredos da arte militar. Joana queria mesmo ir em frente, mas para isso tinha de reunir apoios de personalidades influentes do seu tempo, o que não se adivinhava nada fácil dada a sua proveniência social modesta e o seu sexo feminino que seriam motivos mais que suficientes para que fosse rapidamente descredibilizada ou até apelidada de "louca".





Imagem nº 1 - Joana d'Arc escuta a voz do Arcanjo São Miguel que lhe aparece para confiar a missão divina de libertar a França do jugo inglês.
Quadro da autoria de Eugene Thirion (1876).
Gravura retirada de: http://joanadeorleans.blogspot.pt/ 




Uma jovem determinada na sua nova causa



Joana d'Arc sabia que para concretizar os "mandamentos" das referidas vozes necessitava de reunir apoios influentes na facção francesa. Por isso, tentaria, por várias vezes, reunir-se em Vaucouleurs com Robert de Baudricourt, capitão do rei. Apesar da enorme resistência deste, Joana nunca deixou de demonstrar um enorme sentido de perseverança, e acabou mesmo por convencer o capitão a mudar de ideias a 12 de Fevereiro de 1429. O referido oficial régio aceitou escoltá-la e levá-la até Chinon, onde se encontrava o soberano francês Carlos VII. A viagem durou 11 dias. Carlos VII não estava muito interessado em atender às solicitações da jovem porque temia que a sua reputação fosse ainda mais afectada, já que os últimos acontecimentos políticos comprometiam, cada vez mais, o partido francês. No entanto, o soberano admitia abrir uma excepção, desde que Joana o reconhecesse quando estivesse misturado com os restantes homens da sua corte, cenário que efectivamente veio a concretizar-se, até porque a rapariga natural de Domrémy já tinha observado, em algum momento, um retrato do delfim, o que viabilizou a sua oportunidade de dialogar com aquela personalidade.
Diante de Carlos VII, Joana d'Arc apresenta um discurso repleto de convicção e determinação, contando um pouco sobre a sua missão. Ela não hesita em revelar as suas quatro principais previsões diante do delfim: os ingleses levantariam o cerco de Orleães, Carlos VII seria coroado em Reims (como era tradicional entre os reis franceses), a cidade de Paris seria tomada pelo soberano e, por fim, o duque de Orleães seria libertado pelas autoridades inglesas.
Após rigorosos interrogatórios realizados por teólogos da Universidade de Poitiers, um exame para aferir a sua virgindade e uma observação atenta dos seus comportamentos, o representante máximo da linhagem francesa decidiu confiar nesta jovem rapariga de 17 anos e cedeu-lhe um pequeno exército de 5 mil homens (ou de 7 mil soldados, segundo outros autores), incumbindo-a da missão de socorrer Orleães que estava a ser alvo de assédio por parte das tropas inglesas. Nos tempos que corriam, esta acção do soberano constituiria um evidente insólito, já que as mulheres eram catalogadas como inferiores, de acordo com os estereótipos sociais vigentes. Ainda por cima, Joana nunca tinha experimentado a carreira militar, e a sua origem social também não a favorecia. Apesar de não possuirmos elementos concretos, é provável que alguns membros da corte de Carlos VII se mostrassem renitentes com o gesto do seu soberano porque duvidavam das capacidades da jovem que se propunha a libertar a França. Mas subestimavam em demasia Joana, esqueciam-se que ela reunia uma enorme força de vontade e transportava consigo a faceta moralizadora que já não parecia restar nas forças francesas.
Depois de ter convencido o delfim, Joana muniu-se duma bandeira, onde se lia a inscrição "Jesus Maria", e adquiriu uma armadura completa, uma espada e um escudo. Preparava-se assim para o seu primeiro desafio belicista. A distância entre a glória da vitória e o desastre fatal da derrota, ou até entre a veracidade e a falsidade das suas profecias, era afinal ténue. A jovem adolescente sabia que tinha um teste decisivo pela frente que lhe poderia granjear ou não a credibilidade de que tanto necessitava.





Imagem nº 2 - Em Chinon, Joana d'Arc consegue reconhecer Carlos VII, quando este se encontrava misturado com a sua própria corte.




A Defesa Bem Sucedida de Orleães (1429)


Conforme havíamos já mencionado, Carlos VII tinha incumbido uma primeira missão a Joana - libertar Orleães do cerco movido pelos ingleses. Do ponto de vista estratégico, Orleães era uma das urbes mais importantes do território francês, visto que detinha um acesso nevrálgico ao rio Loire.
Os ingleses, na altura, senhores da capital - Paris e de quase todo o norte de França, aperceberam-se da necessidade de controlar a região localizada a sul do Loire que se encontrava sob a tutela do delfim francês. O seu objectivo consistia em dar continuidade ao ascendente militar que se registava desde a vitória estrondosa na batalha de Azincourt travada em 1415.
Dentro deste contexto, as tropas inglesas, lideradas por Thomas Montacute, conde de Salisbury, partiram de Paris com o objectivo de materializar a conquista de Orleães. Pelo caminho, tomaram várias terras: Puiset, Toury, Janville, Meung, Beaugency, Notre Dame de Cléry (saqueada), Sully, Chateauneuf e Jargeau.
Os ingleses iniciaram as operações em torno de Orleães no dia 12 de Outubro de 1428, atacando, desde logo, a fortaleza de Tourelles que resguardava, a sul da referida cidade, a ponte sobre o rio Loire. Através do recurso a técnicas de minagem, os sitiadores acabariam por ser bem sucedidos, embora o seu chefe militar tivesse perecido no momento em que foi atingido por um tiro de canhão que o surpreendeu enquanto avistava ao longe as fortificações francesas. O então falecido conde de Salisbury seria prontamente substituído por William de la Pole, conde de Suffolk.
William ordenou a construção duma linha de fortificações de madeira em torno da cidade, localizadas em grande parte na margem norte do rio. Mesmo assim, as forças inglesas e os seus aliados borgonheses eram numericamente insuficientes para anular, de forma eficaz, o abastecimento da cidade que continuava a ser viabilizado através do fluxo condicionado de mercadorias provenientes do exterior. De facto, os efectivos ingleses não seriam mais de 5 mil, juntando-se a estes cerca de 1500 borgonheses que vieram reforçar as suas hostes.
No entanto, o cenário não deixava de ser igualmente crítico para a comunidade de Orleães que assistia ao gradual apertar do cerco e ao inevitável acentuar das suas próprias carências internas, depositando assim quase todas as suas esperanças na veteranice e lealdade duma guarnição francesa limitada a 500 soldados. O cerco poderia ainda arrastar-se por muito tempo, o que agravaria inequivocamente o estado já preocupante que se começava a testemunhar no interior da urbe.
No dia 12 de Fevereiro de 1429, dá-se a batalha dos Arenques, quando uma primeira força francesa proveniente do exterior, mais concretamente de Blois, tentou interceptar uma caravana carregada de alimentos (sobretudo arenques secos; daí a designação do nome do confronto) que, desta feita, se destinava a assegurar o abastecimento do exército inglês que assediava Orleães. Contudo, os franceses não conseguiram concretizar o assalto com sucesso, visto que seriam prontamente repelidos por um contingente inglês encabeçado por Sir. John Fastolf.
Entretanto, e apesar do ascendente da facção anglo-borgonhesa, acabariam por rebentar fortes divisões no seu seio que deixariam inclusive marcas profundas e que pesariam no desenlace vindouro do conflito. Tudo por causa de ambições e protagonismos desmedidos. Neste âmbito, o Duque da Borgonha (Filipe, o Bom) tinha exigido que a cidade de Orleães lhe fosse entregue, logo que a conquista se materializasse, mas João, duque de Bedford e regente da França pró-inglesa, recusou-se em ceder às suas pretensões. Insatisfeitos com esta decisão, os borgonheses acabariam mesmo por abandonar as suas posições de assédio em Março, deixando por conta própria os cerca de 5 mil ingleses. Logicamente, estes últimos ficariam agora numa posição mais vulnerável.
Nos dias derradeiros de Abril de 1429, Joana entra finalmente em cena, arribando às imediações de Orleães com uma armada de 5 mil homens que se compromete a romper definitivamente com o cerco inglês. O seu contingente consegue iludir as linhas inglesas ao subir o rio Loire através do recurso a barcos, manobra que lhe permitiu entrar assim no interior da cidade para rejúbilo dos seus habitantes. A partir de Orleães, a jovem de 17 anos, organizará uma série de sortidas contra as fortificações inglesas que se localizavam no exterior das muralhas da urbe. Os avanços são significativos, registando-se várias baixas e deserções do lado inglês. A 4 de Maio, os comandantes Dunois e Gilles de Rais tomam a fortaleza de St. Loup. Dois dias mais tarde, a bastilha dos Agostinhos também cairia nas mãos das forças encabeçadas por Joana, Dunois e La Hire. No dia 7 de Maio de 1429, os sitiadores já se cingiam apenas a um número reduzido de posições. Como se não bastasse, nesse mesmo dia são expulsos da fortaleza da margem sul do rio Loire que haviam tomado no início das operações. Nesse mesmo episódio, Joana acabou por sair gravemente ferida, após ter sido atingida por uma flecha inimiga, porém nunca deixou de lutar até que fosse tomada aquela estrutura militar.
Desesperados, os ingleses tentaram forçar os franceses para uma batalha em campo aberto, mas não conseguiram sequer concretizar os seus intentos. Por fim, e na sua última movimentação bélica ocorrida a 8 de Maio, os ingleses optaram por recorrer aos seus habilitados arqueiros de modo a acossar as forças que guardavam as muralhas de Orleães, contudo os efeitos deste derradeiro ataque foram, desta vez, reduzidos e claramente insuficientes para inverter o que parecia ser irreversível - a vitória do "partido francês".
O cerco seria levantado nove dias depois da chegada de Joana d'Arc à cidade. Inspirada pelas alegadas vozes divinas e por algum conhecimento de estratégia militar então assimilado, a jovem tinha alcançado uma vitória moralizadora que já há muitos anos não era sentida pelos franceses, cujo orgulho estava, naqueles tempos, quase ferido de morte. Joana trazia também consigo uma inigualável coragem, uma fé que lhe emprestava convicção para as etapas mais adversas da sua vida.
Graças a este seu prestigiante feito em Orleães, o nome da nova heroína francesa ecoava de cidade em cidade. Muitos começavam a acreditar que ela seria capaz de alcançar a libertação da França do jugo inglês. Estava a nascer uma nova lenda!




Local: Orleães
Data: 12 de Outubro de 1428 – 8 de Maio de 1429
Forças Beligerantes

 France moderne.svg

Reino da França

Royal Arms of England (1399-1603).svg 

Reino de Inglaterra
Comandantes/Generais
Joana D’Arc
Dunois
Gilles de Rais
La Hire
Jean de Boussac
Thomas de Montacute
William de La Pole
John Talbot
William Glasdale
Número de Combatentes
Cerca de 5 000 a 7 000 soldados franceses
(reforços que chegariam mais tarde nos contingentes de Joana d’Arc e ainda doutros comandantes)
Guarnição e ainda alguns cidadãos armados em Orleães.
5 000 soldados ingleses
1 500 efetivos borgonheses
(estes últimos retiraram-se no decurso do cerco)
Baixas Estimadas
2 000
4 000
Resultado: Os franceses conseguem segurar Orleães após um duro cerco que já se arrastava há vários meses. A entrada em cena das forças de Joana d’Arc,  devidamente acompanhada por comandantes experientes, foi decisiva para que os ingleses perdessem o controlo das fortificações e posições que até então detinham no exterior da cidade.  A preservação de Orleães em mãos francesas, abriu o caminho até à cidade nevrálgica de Reims, onde o delfim Carlos VII seria sagrado rei de França.

Tabela nº 1 - As estimativas verificadas em torno do Cerco de Orleães.





Imagem nº 3 - A entrada triunfante de Joana e do seu exército em Orleães (1429).
Quadro da autoria de Jean-Jacques Scherrer





Imagem nº 4 - Joana encorajará as suas tropas a expulsar os ingleses que assediavam Orleães. 
Quadro da autoria de Jules Eugène Lenepveu (1819-1898)




O renascer da França e o declínio de Joana


A França do pós-Orleães apresenta uma identidade rejuvenescida e almeja reavivar de novo a esperança da sua libertação. Depois da importante vitória em Orleães, os franceses, liderados por Joana d'Arc e outros comandantes, serão igualmente bem sucedidos em Jargeau (12 de Junho), Meung (15 de Junho), Beuagency (17 de Junho) e na batalha de Patay (18 de Junho), onde 4 mil ingleses são mortos ou feitos prisioneiros. No dia 10 de Julho de 1429, os franceses entram triunfantemente em Troyes.
O nome de Joana circulava intensamente no mundo rural, o qual se encontrava mais exposto às nefastas consequências do conflito e cujas povoações mesclavam as suas crenças religiosas e emoções com os fortes sentimentos patrióticos. Aquela jovem adolescente trouxe indubitavelmente esperança a todos aqueles que acreditavam num "amanhã melhor".
Aproveitando a nova onda de vitórias, o delfim Carlos VII fez-se sagrar rei em Reims a 17 de Julho de 1429. A sua coroação foi um duro golpe nas aspirações da dupla monarquia inglesa visto que agora a legitimidade do soberano francês dificilmente seria contestada.
Entretanto, as movimentações prosseguiam no terreno, apesar de já se terem encetado algumas sondagens diplomáticas com os borgonheses (até então aliados dos ingleses e que mantinham uma influência determinante sobre a capital Paris). No entanto, os compromissos ainda eram muito frágeis, e como tal, os borgonheses continuariam a ser o braço-direito da coroa inglesa durante os anos seguintes.
Carlos VII conduziu as suas tropas até à região de Île de France (Ilha de França), onde se travaram mesmo algumas escaramuças com os destacamentos ingleses que se achavam estacionados nas proximidades de Paris. Também a capital seria posteriormente visada pelas tropas francesas, mas os borgonheses, fiéis à aliança que ainda mantinham com os ingleses, não descuraram na sua defesa, e conseguiram forçar Carlos VII a enveredar pela retirada a 10 de Setembro de 1429. Pelo que se consta, Joana foi mesmo ferida no confronto com uma flecha inimiga que atingiu a sua coxa.
Apesar dos franceses terem já chegado até Saint-Denis (perto de Paris), a verdade é que o rumo dos acontecimentos começa a trair impiedosamente os projectos de Joana d'Arc. A heróica donzela de Orleães via a sua capacidade de influência junto do rei Carlos VII a esfumar-se aos poucos. O titular da coroa francesa parecia estar mais preocupado com as pesadas dívidas da corte, a ausência de recursos e a vontade de preservar as posições conquistadas. Por outras palavras, Carlos estava disposto a restituir a harmonia no seio da nobreza francesa,  a firmar uma paz definitiva e sólida com os borgonheses (através de pactos acordados) e refazer a sua estrutura familiar. Era uma forma do rei ganhar tempo para assim reforçar as suas possibilidades de sucesso no futuro. Mas esta filosofia do soberano francês não era partilhada por Joana que se sentia agora colocada de parte e que não aceitava o pausar das hostilidades. Contudo, é provável que a jovem não tivesse sido devidamente informada sobre todos os planos e motivações que tinham levado Carlos VII a optar pela via do "pactismo".
Suspeitando da eficácia da palavra dos borgonheses que continuavam a manter negociações paralelas e íntimas com a Inglaterra, Joana acreditava que o único caminho possível passava por esvaziar os argumentos destes no campo de batalha. Em Abril de 1430, consegue derrotar o destacamento borgonhês liderado por Franquet d'Arras (feito prisioneiro e executado poucos dias depois). Um mês depois, em Maio de 1430, Joana tenta libertar a cidade de Compiégne do assédio promovido pelas forças borgonhesas. Mais uma vez, a jovem heroína consegue colocar as suas forças no interior da cidade e planeia a realização dum enfrentamento aberto que decorreria junto a uma ponte localizada no exterior das muralhas. Mas desta vez, nada correrá bem a Joana. A força borgonhesa era numericamente mais forte e imprimia coesão, experiência e habilidade. Quando os franceses saíram da cidade para a afrontar, logo se depararam com uma realidade mais hostil do que aquela que inicialmente faziam prever. Como se não bastasse, um batalhão de ingleses, até então escondido dos olhares franceses, entrou também em cena, emboscando de surpresa os soldados de Joana. Apesar da bravura de "La Pucelle", a batalha estava perdida pois os corpos dos seus homens começavam a amontoar-se no seu redor. Os borgonheses já eram praticamente senhores das operações junto à ponte que assumia um essencial cariz estratégico. A única solução para Joana era tentar a fuga, saída que decerto não lhe agradava, mas que era a única forma de tentar preservar a sua vida. Todavia, nesse momento, o azar voltou a tramar as intenções da jovem que contava agora com cerca de 18 anos de idade. Quando tencionava regressar à cidade de Compiégne, o capitão francês Guillaume de Flavy ordenou prontamente que as portas da urbe fossem fechadas, de forma a evitar que os borgonheses pudessem aproveitar-se da debandada e da confusão para entrarem à força na localidade. O problema é que as portas não se iriam abrir para ninguém que tivesse estado envolvido na batalha, nem sequer seria concedida uma excepção a Joana que obviamente se deparou com essa contrariedade inesperada. A postura de Guillaume seria, mais tarde, encarada como uma "traição", mas naquele momento, a sua decisão não era nada fácil, pois ao abrir as portas para permitir a entrada dos franceses que fugiam da malograda batalha exterior, poderia estar a conceder, em simultâneo, uma grande oportunidade para os perseguidores borgonheses lograrem a penetração na cidade, o que seria catastrófico. O que sabemos é que Joana ficou encurralada por todos os lados. Como era seu apanágio, voltou a pegar na espada para combater até ao fim. No entanto, o sufoco apertou-se de tal modo que Joana acabaria mesmo por se render. As vozes tinham-lhe avisado anteriormente de que poderia vir a ser capturada, pelo que já estaria mentalizada para esse cenário. Mas talvez desconhecesse que esse marco assinalaria o princípio do seu fim.





Imagem nº 5 - A entrada de Joana d'Arc em Reims (1429), aquando das cerimónias da sagração de Carlos VII como rei de França.
Quadro da autoria de Jan Matejko





Imagem nº 6 - A detenção de Joana d'Arc pelas forças borgonhesas no exterior das muralhas de Compiégne (1430)




 Julgamento, Execução e Reabilitação Posterior


Após ter sido detida pelas forças borgonhesas, Joana foi vendida como prisioneira aos ingleses por uma verba a rondar as 10 000 libras. Seria transportada para Rouen (ou Ruão), onde lhe foi instaurado um processo por heresia. É evidente que se tratava dum processo político. Joana era uma mulher de fé, amava a Jesus Cristo e a Maria; não havia nada que pudesse colocar em causa as suas sólidas crenças religiosas. Todavia, os seus feitos militares tinham suscitado o ódio dos ingleses que procuravam agora consubstanciar a sua vingança através dum julgamento que, na prática, não passava duma farsa.
Por seu turno, Carlos VII também não ficaria bem neste capítulo pois nada faria para negociar o  resgate da mulher que esteve por detrás da viragem do rumo da guerra e que lhe viabilizaria a consagração em Reims. Talvez o rei francês tivesse considerado que o espírito bélico radical de Joana já não corresponderia ao perfil que era desejado naquele específico contexto de aproximação diplomática. No entanto, a sua falta de empenho na libertação da jovem foi interpretada como uma tremenda ingratidão.
Pierre Cauchon, bispo de Beauvais, presidiria ao polémico julgamento eclesiástico que conheceu o seu início em 21 de Fevereiro de 1431. Este oficial eclesiástico revelava ser um partidário acérrimo da facção inglesa, e por isso, desde sempre, manifestara a sua ambição de desacreditar e condenar Joana d'Arc. Além de não ser imparcial, o bispo não possuía qualquer jurisdição sobre Rouen, onde se realizaria o julgamento. Contudo, todos os atropelos à legalidade eram permitidos desde que a defesa da jovem heroína saísse severamente prejudicada.
Durante o processo, a virgindade de Joana foi novamente testada, e mais uma vez, se comprovou a "pureza" da jovem, e também acabariam de cair por terra as acusações de feitiçaria que não se alicerçavam em nenhum facto concreto. Mas a recusa permanente de Joana em abandonar os trajes masculinos foi aproveitado ao máximo pela acusação que a procurava inculpar de práticas heréticas. Além do mais, os inquisidores suspeitavam de que as vozes que ela escutava tinham uma origem demoníaca ou que, pior ainda, seriam falsas e não passariam de blasfémia. Entretanto, a saúde da heroína francesa deteriorava-se na prisão (o seu corpo era abalado pela fraqueza), e as más notícias acumulavam-se.  O seu destino parecia estar traçado. A acusação tinha já elementos na sua posse que considerava ser suficientes para condená-la à morte na fogueira por eventuais práticas de heresia. Neste contexto, a execução decorreu publicamente em Rouen, mais concretamente na Praça do Mercado Vermelho a 30 de Maio de 1431. Como se não bastasse, a Inglaterra não permitiu sequer que os restos mortais da donzela fossem enterrados no reino, tendo sido então atirados ao rio Sena.
A morte de Joana, ocorrida aos seus 19 anos de idade, foi chorada por muitos franceses que a admiravam mas que nada puderam fazer para a salvar daquele destino fatídico.
Todavia, a execução pela fogueira de Joana não comprometeu o ascendente francês. Em 1435, Carlos VII assina o Tratado de Arras com Filipe, o Bom - Duque da Borgonha, alcançando uma paz benéfica e firme para ambas as partes e quebrando definitivamente com a aliança que os borgonheses mantinham até então com a Inglaterra. Além disso, os franceses continuavam a contar com o apoio dos armagnacs e escoceses, enquanto os ingleses perdiam cada vez mais influência. No ano seguinte (1436), os franceses recuperam Paris, feito que consolidava os notáveis avanços dos últimos tempos. Em breve, seria também reconquistada quase toda a Normandia, seguindo-se outras vitórias em Rouen (1449), Bergerac (1450), Bordéus e Baiona (1451). A Inglaterra acabaria por perder todas as possessões em território francês, preservando apenas Calais como derradeiro bastião, situação que se arrastou até 1558. A Guerra dos Cem Anos terminaria oficialmente em 1453, e os franceses tinham conseguido expulsar a ameaça inglesa do seu território, mas o cenário de destruição e de insegurança foi um preço elevadíssimo que teve de ser suportado.
Em 7 de Julho de 1456, os comissários pontificais determinaram a invalidade do processo que conduziu à execução de Joana. Na sequência dum inquérito solicitado pela mãe de Joana, os comissários procederam à revisão do julgamento, tendo detectado falhas e inclusive elementos contraditórios e caluniosos na acusação. É certo que esta decisão não traria Joana de volta, mas reabilitava-a aos olhos da Igreja e da época em que vivera. A Santa Sé demarcava-se assim da sentença de Rouen. Este foi o primeiro passo até à sua posterior beatificação, em 1909, pelo Papa Pio X e canonização, em 1920, por Bento XV. O Vaticano reconheceria o seu martírio bem como a enorme devoção que nutria por Jesus Cristo e Nossa Senhora.
Joana estava morta, mas a sua memória e o seu legado ainda hoje permanecem vivos.





Imagem nº 7 - A execução de Joana pela fogueira em Rouen (Ruão) a 30 de Maio de 1431.
Quadro da autoria de Hermann Stilke (1843)





Imagem nº 8 - Estátua equestre de Joana d'Arc em Paris
Escultura da autoria de Emmanuel Frémiet (1874)
Direitos da Foto - Wikipédia (Jastrow)




Joana vista pela Historiografia Actual


Aos olhos dos historiadores contemporâneos, as reais capacidades e impactos belicistas de Joana d'Arc têm motivado uma discussão acesa. Dentro deste contexto, destacamos três interrogações ou hipóteses que costumam centrar a atenção dos investigadores:


  1. Seria Joana uma líder nata com notáveis conhecimentos de estratégia militar que assumiu um papel fulcral no "renascer" e na "libertação" posterior da França? 
  2. Ou será que devemos apenas encarar a biografada como alguém que venceu as contrariedades do seu tempo para se tornar numa líder que, embora albergasse alguns conhecimentos inerentes à arte da guerra, transportou consigo essencialmente a coragem, motivação e estimulação psicológica que até então escasseavam nas forças francesas? 
  3. Ou Joana d'Arc não foi mais do que um "produto potenciado" pelas correntes nacionalistas ou feministas que lhe prestaram um engrandecimento excessivo e desproporcional em relação àquilo que deverá ter sido a realidade dos factos?


Começando pela terceira hipótese, não podemos subestimar a possibilidade de alguns fluxos de pensamento patriótico ou feminista terem cometido exageros no que diz respeito à descrição dos feitos de Joana, atribuindo-lhe demasiados "louros" pelas vitórias que teria então alcançado, até porque houve outros comandantes e tenentes que também chegaram a estar ao seu lado nas batalhas. No entanto, seria extremamente injusto não reconhecer o importante contributo que prestou à sua nação. Talvez Joana não dominasse as técnicas e estratégias militares como um Alexandre, o Grande, um Júlio César ou até um Aníbal, mas a sua presença reavivou a esperança que residia moribunda entre os soldados franceses. Neste âmbito, pensamos que a segunda hipótese é aquela que mais se aproximará dos presumíveis factos que foram testemunhados no terreno.
Quanto às vozes que Joana alegou ter ouvido, a verdade é que nos declaramos incapazes para esclarecer o que terá realmente acontecido. Terão sido profecias verdadeiras com origem divina? Ou antes meras alucinações, desequilíbrios psicológicos ou relatos forjados? Nunca o saberemos! Mas a verdade é que jovem heroína sempre acreditou nestas experiências auditivas, deixando-se levar pelos supostos "mandamentos" de São Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina. A sua fé e determinação inabaláveis levaram-na a atingir façanhas que até então seriam impensáveis para uma mulher na Idade Média. As suas virtudes, heroicidade e o seu martírio seriam determinantes para a posterior beatificação e canonização por parte da Igreja Católica.
De modo a consolidarmos toda esta nossa opinião, decidimos citar um pequeno texto que nos parece ser inteiramente sensato e imparcial sobre o papel e legado de Joana d'Arc (1412-1431).


"Embora a heroína de Orleães tenha lutado de armas na mão, o mito que à volta dela se criou não será devido ao facto de se ter destacado como líder militar. A sua presença foi para os combatentes uma ajuda psicológica importantíssima, devolvendo aos franceses a iniciativa da guerra (...). O impacto da actuação da jovem guerreira constituiu um volte-de-face para as convenções militares que até então predominavam na arte da guerra. Joana d'Arc representava a eficiência, utilizando os meios ao seu alcance e ataques violentos, não dando ao inimigo a possibilidade de se reorganizar. Esta táctica foi mais eficaz (...) e instalou o medo entre as forças inglesas. Perdendo muitos dos seus valores, os cavaleiros nobres franceses passaram a combater de forma diferente da que lhes era habitual, além de verem uma mulher, e não nobre, conseguir o que parecia fora das suas possibilidades"  (Excerto retirado do Livro "Orleães 1429 - Grandes Batalhas da História Universal", Publicação da QuidNovi)





Imagem nº 9 - A personalidade de Joana d'Arc (1412-1431) ainda hoje é estudada pelos historiadores.



Nota-extra: Foram ainda atribuídos pretensos milagres a Joana d'Arc no decurso dos séculos XIX e XX, os quais terão sido determinantes para o reconhecimento máximo da Santa Sé.
Actualmente, Joana d'Arc é a Santa Padroeira de França.



Referências Consultadas: