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domingo, 29 de março de 2015

Esmoriz tornou-se vila há 60 anos


Foi no dia 29 de Março de 1955 que Esmoriz alcançou o estatuto de vila, uma data marcante na evolução da localidade. Mas para nos inteirarmos deste passo determinante, é imperioso descrever sucintamente o contexto histórico.
Na primeira metade do século XX, a localidade tinha experimentado um considerável desenvolvimento urbano, demográfico, comercial e industrial. Efectivamente, por volta da década de 1950, a população a residir em Esmoriz superava os 5 mil habitantes, e já contava com algum dinamismo associativo, escolas primárias, uma estação de caminho-de-ferro, uma corporação de bombeiros e um posto de serviços postais. Por outro lado, reivindicava tradições (de âmbito religioso e etnográfico) bastante enraizadas que lhe conferiam uma clara identidade. Também a procura turística em torno da Praia de Esmoriz e da Barrinha (na altura, límpida e cobiçada por portugueses e estrangeiros) atestava a sua avolumada importância.
Dentro deste contexto de favorável crescimento, decorreu a célebre sessão da Junta de Freguesia de Esmoriz no dia 19 de Abril de 1951, onde a partir da qual se solicitará ao Ministro do Interior a elevação da freguesia à categoria de vila. Conforme Aires de Amorim nos relata na sua monumental obra “Esmoriz e a sua História” (p. 467), a intenção não foi muito bem acolhida pela Câmara Municipal de Ovar que, naquela altura exacta, acabaria então por desvalorizar a pretensão então apresentada. A comunidade de Esmoriz lamentou imediatamente a ausência de atenção e colaboração por parte do município ovarense e expressou ainda o seu descontentamento face às limitações de electrificação na freguesia bem como a necessidade (não atendida) de obras urgentes nas escolas da Relva. Todavia, o povo esmorizense, mesmo isolado, não abdicou do seu sonho e “foi à luta”, avançando assim com o seu pedido de elevação a vila e até equacionando a hipótese duma nova integração no concelho de Espinho (Esmoriz pertencera fugazmente a este concelho entre 1926 e 1928). O tremendo esforço canalizado pela Junta de Freguesia de Esmoriz e até pelo padre Manuel Dias da Costa (filho da nossa terra que empreendeu diligências influentes neste dossier) tornaram o sonho possível. 
No dia 29 de Março de 1955, Esmoriz acordava para ser oficialmente vila (através do decreto nº 40.108), momento de progresso que fez rejubilar de orgulho os seus habitantes. Quase quatro décadas depois, em 1993, esta terra de Santa Maria almejaria e alcançaria mesmo o estatuto de cidade, demonstrando que a ascensão prévia a vila constituiu um passo acertado que motivou a continuidade do desenvolvimento económico e social. 




Referências Consultadas:

  • AMORIM, Aires de - Esmoriz e a sua História. Esmoriz: Comissão de Melhoramentos, 1986.

Artigo da minha autoria publicado em: Jornal - A Voz de Esmoriz. Dir. Lília Marques. Edição nº 1116 (26 de Março de 2015). Esmoriz: Comissão de Melhoramentos de Esmoriz, 2015.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Sá de Miranda - o poeta-arauto da Renascença


1 - Uma Vida ao Serviço da Cultura


Francisco Sá de Miranda nasceu em 28 de Agosto de 1481 na cidade de Coimbra. Outros autores apontam a data de nascimento para o ano de 1495. Era filho do cónego Gonçalo Mendes de Sá e duma dama nobre e solteira - Inês de Melo. A sua infância terá sido vivida na casa dos seus avós em Buarcos. 
Sobre a sua formação literária, pouco ou até nada se apurou até hoje. Teófilo Braga sugere que Miranda terá cursado em Coimbra nas escolas menores do Colégio Monasterial de Santa Cruz (aqui era ministrado o ensino das línguas grega e latina, gramática, retórica e humanidades), frequentando depois em 1505 a Universidade de Lisboa, onde completou o curso de Direito ou Leis. Aí terá conseguido estabelecer uma verdadeira amizade com Bernardim Ribeiro, outro intelectual que daria cartas na literatura nacional.
No ano de 1513, e muito graças à sua ascendências nobre, consegue introduzir-se na corte. Conforme nos elucida José Pereira Tavares (outrora reitor do Liceu de Aveiro), Sá de Miranda terá frequentado os serões do Paço, integrando um grupo que reunia os fidalgos e poetas mais conceituados daquela época. Em 1516, já é associado a ele o título prestigiante de doutor - estatuto muito raro naquele período, dado o sufocante analfabetismo que flagelava a população portuguesa. Algumas das suas "poesias miúdas" (cantigas, esparsas e vilancetes) seriam compiladas e publicadas por Garcia de Resende no seu "Cancioneiro Geral", o que vem, desde cedo, atestar o seu talento e criatividade.
Em 1521, deixa Portugal e ruma a Itália. Os motivos que o levam a esta decisão são variados: desgostos amorosos e as intrigas palacianas que terá testemunhado em Portugal, e a vontade de assimilar a nova corrente artística e intelectual que, desde então, iluminava a região itálica. Durante um período de cerca de cinco anos, Sá de Miranda visitará Milão, Veneza, Florença, Roma, Nápoles e Sicília. Obteve vários conhecimentos da língua e literatura italianas, e conviveu com vultos de elevado gabarito daquele tempo (Pietro Bembo, Sannazaro, Ariosto...). Nos templos e palácios que visitara, logo se deparara com as monumentais obras de Rafael e Miguel Ângelo. Em suma, contemplou uma nova expressão cultural humanista que, desde logo, desejou transportar para Portugal, de modo a elevar o pensamento e as manifestações artísticas nacionais para um patamar bastante superior. 
No ano de 1526 (ou 1527), regressa a Portugal, depois da experiência enriquecedora em solo italiano. Volta a estabelecer-se na sua terra natal - Coimbra, onde permaneceu por algum tempo. De novo terá a hipótese de reentrar no ambiente cortesão, visto que a corte portuguesa tinha deixado Lisboa (devido à peste que grassava) para se instalar temporariamente na Cidade do Conhecimento. 
Em termos de obras concretizadas, Sá de Miranda publica a comédia em prosa - "Os Estrangeiros" no ano de 1528. Nos anos seguintes, apresenta a "Fábula do Mondego" (1528-1529) em forma de canção e a écloga "Aleixo" (1531-1532), estes dois últimos lavrados em língua castelhana.
Entretanto, as intrigas e escândalos do Paço reemergem com veemência. De novo, Sá de Miranda sente-se desiludido e, desta feita, abandonará definitivamente a corte. Esta drástica decisão deve-se igualmente a um diferendo que mantinha com uma personalidade, também ela repleta de genialidade e bem cotada nas altas instâncias do reino - Gil Vicente (considerado o "pai do teatro nacional"). Ambos alimentarão uma relação de ódio assente em provocações mútuas, extremadas pelos seus seguidores. A história desta inimizade será longa e repleta de críticas violentas. Gil Vicente não hesitará em omitir os Sás quando descrevia a nobreza de Coimbra aquando do prólogo duma comédia então realizada naquela cidade. Sá de Miranda que se encontrava na plateia sentiu-se desgostoso com a situação. Mas Gil Vicente não se ficará por aqui, chegando ao ponto de na peça "O Clérigo da Beira" representada na corte em 1529, ter proferido a célebre afirmação - "filho de clérigo és, nunca bom feito farás", palavras que aparentam conferir uma potencial alusão a Sá de Miranda. Este último reage, garantindo que iria continuar a lutar pelos seus ideais que poderiam então fazer carreira em Portugal. Todavia, o poeta, desiludido com os derradeiros acontecimentos, optará por rumar ao Minho, deixando as suas origens (bem como as intrigas) para trás.
Inicialmente, estabeleceu-se na Quinta da Penela (actual São Tiago de Arcozelo - Vila Verde) que pertencia à mulher com quem tinha acabado de contrair matrimónio - D. Briolanja de Azevedo, de nobre procedência, e de elevadas virtudes morais. Todavia, esta residência foi apenas temporária, porque através duma mercê, datada algures nos anos compreendidos entre 1533-1535, o casal fixou-se na comenda de Santa Maria das Duas Igrejas (pertencente à Ordem de Cristo, localizada no actual concelho de Vila Verde) que se situava junto ao Rio Neiva, não muito longe da fronteira com a Galiza. Durante quase vinte anos, Sá de Miranda viverá neste novo lugar uma etapa crucial da sua vida a qual corresponderá a uma intensa actividade literária, encontrando-se ainda rodeado pela doce companhia da sua mulher e filhos. No ano de 1538, redigirá a segunda comédia - "Os Vilhalpandos". Até o cardeal-infante D. Henrique (este viria a ser rei, mais tarde - entre 1578-1580, ao suceder a D. Sebastião) ficaria rendido aos seus textos comediantes, solicitando mesmo exemplares das peças para que as mesmas fossem representadas diante da sua presença. Miranda também produzirá novas éclogas e poesia clássica. Por outro lado, doutrinaria ensinamentos àqueles que desejavam inteirar-se do seu conselho intelectual. 
A partir de 1552 passará a viver na casa e quinta da Tapada (freguesia de Fiscal - Amares) que havia adquirido na totalidade. Parece-nos excessivamente optimista e inclusive imprecisa a transcrição presente na edição da obra "Sá de Miranda - Poesias" de José Pereira Tavares, onde no respectivo prefácio é-nos dito que a Quinta da Tapada se tornou no "templo das musas, cujos oráculos e relevações eram escutados com o maior respeito pelos poetas mais distintos da nova geração, templo, centro do qual partiam os exemplos e os impulsos que brevemente determinaram a nova renascença da poesia portuguesa". Por um lado, é certo que, entre 1551 e 1554, o nosso erudito enviará as suas poesias ao Príncipe D. João (filho de D. João III e pai de São Sebastião), tendo este último solicitado, através duma mensagem bastante honrosa, a consulta das mesmas. Também não negamos que Sá de Miranda recebeu nos seus aposentos dois discípulos seus que desejavam materializar a sua reforma cultural - António Ferreira e Diogo Bernardes. Contudo, a verdade é que a nova realidade não será, nem de perto, um mar de rosas. Apesar do empenho e carinho que dedicou ao seu derradeiro lar, Sá de Miranda viveria em constante dor e sofrimento os últimos momentos que o destino lhe reservara. Não alcançaria sequer a tranquilidade e acalmia que tanto desejava para os seus derradeiros suspiros, e por isso, não é de estranhar que a sua arte criativa tenha diminuído vertiginosamente (são pouquíssimos os textos que nos deixa nesta altura). A principal razão para o seu eclipsar prende-se com uma onda de falecimentos que precipitará o poeta para uma saga interminável de desgostos e infelicidades. Em 1553, o seu filho primogénito tomba em Marrocos, no ano seguinte falece o seu estimado Príncipe D. João, e em 1555, é a vez da sua amada esposa perecer. Em 1557, o infante D. Luís (filho de D. Manuel) e o rei D. João III também conhecem o seu próprio fim. Neste contexto lúgubre, Sá de Miranda não suportará tamanhas amarguras, e em 1558, faleceria igualmente, tendo sido sepultado na Igreja de S. Martinho de Carrazedo (Amares). 




2 - Pensamento e Legado de Sá de Miranda



Não restam dúvidas de que Sá de Miranda introduziu a Renascença Literária em Portugal, abrindo então novos horizontes luzidios e promissores. A sua aventura em Itália inspirou-no a encetar uma vasta reforma cultural no seu reino de origem. As formas antigas tinham de ser substituídas, era necessário explorar as inovações artísticas e procurar novos elementos que restaurassem o esplendor artístico. A sua prioridade assentaria na renovação que achava fundamental dos modelos poéticos portugueses, baseando-se preferencialmente nas influências italianas (técnica métrica, a medida nova - o decassílabo, soneto, terceto, canções, elegias...)
Os versos de Sá de Miranda poderiam não ser perfeitos ou da mais elevada classe, mas não hesitarão em entrar em ruptura com a poesia palaciana da Idade Média, iniciando um novo ciclo ou paradigma nesta modalidade. Segundo nos conta José Pereira Tavares, este intelectual humanista demonstrou que "a língua portuguesa é capaz de se elevar até às concepções mais belas do lirismo moderno, como o Soneto e a Canção de Petrarca, os tercetos de Dante, enlaçados em elegias e capítulos segundo o estilo de Bembo, a oitava rima de Policiano, Boccaccio e Ariosto, e as éclogas de Sanazzaro com os seus versos encadeados e variação melódica dos ritmos".
Sá de Miranda introduziu o soneto na nossa literatura, versificando sobre o desengano na vida terrena e as vãs ilusões. Adoptou ainda o terceto, a oitava rima e as éclogas. Também compôs duas canções, de natureza religiosa - Canção a Nossa Senhora e A Festa da Anunciação de Nossa Senhora
No teatro, sobressaiu o que aparentava ser então uma clara rivalidade mantida com Gil Vicente. Este último, considerado o Fundador do Teatro em Portugal, vivia a glória derivada dos seus autos e comédias (tragicomédias), e é natural que os seus seguidores refutassem a novidade que Sá de Miranda, o fecundo escritor, pretendia fazer vingar no teatro nacional. Mesmo assim, este erudito conimbricense introduziu a comédia em prosa (uma clara novidade) e a defesa intransigente de diversos valores morais.
No campo inerente ao "pensamento poético", é necessário ressalvar que Miranda cultivou diversos temas como: o amor (sobretudo numa primeira parte da sua carreira), a contradição entre a razão e a vontade, a melancolia, o desdém pela vulgaridade, a exortação do heroísmo, o elogio da rusticidade em contraste com a vida artificial na cidade e na corte, a crítica da ganância em torno do ouro, a emancipação das letras humanas clássicas, a defesa do ideal da paz...
Em termos gerais, Sá de Miranda foi responsável pela criação duma nova era que atingiria o seu expoente máximo com "Os Lusíadas" de Luís Vaz de Camões, considerado de certo modo seu discípulo, embora ambos nunca se tivessem conhecido pessoalmente. Ainda como exemplo do seu notável legado, poderemos citar o caso concreto do soneto (introduzido em Portugal por Miranda embora a inspiração original pertença obviamente ao italiano Francesco Petrarca), o qual foi cultivado com grande insistência até aos nossos dias. Camões, Bocage, Antero de Quental, Florbela Espanca, Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner não hesitaram em experimentar, com mestria e excelência, esta nova estrutura poética.
De acordo com as palavras de Carolina Michaelis, Miranda foi o segundo poeta português (apenas superado pelo épico autor d'Os Lusíadas) mais lido nos séculos XVII e XVIII, merecendo inclusive inúmeras citações e louvores entusiásticos ("bom Sá", "do grão Sá de Miranda", "do grave e docto Sá"). 


Por fim, decidimos apresentar dois poemas da autoria de Sá de Miranda:




Ó Meus Castelos de Vento

Ó meus castelos de vento 
que em tal cuita me pusestes, 
como me vos desfizestes! 

Armei castelos erguidos, 
esteve a fortuna queda, 
e disse:– Gostos perdidos, 
como is a dar tão grã queda! 
Mas, oh! fraco entendimento! 
em que parte vos pusestes 
que então me não socorrestes? 

Caístes-me tão asinha 
caíram as esperanças; 
isto não foram mudanças, 
mas foram a morte minha. 
Castelos sem fundamento, 
quanto que me prometestes. 
quanto que me falecestes! 




Comigo me Desavim

Comigo me desavim, 
Sou posto em todo perigo; 
Não posso viver comigo 
Nem posso fugir de mim. 

Com dor da gente fugia, 
Antes que esta assi crecesse: 
Agora já fugiria 
De mim, se de mim pudesse. 
Que meo espero ou que fim 
Do vão trabalho que sigo, 
Pois que trago a mim comigo 
Tamanho imigo de mim?




Sá de Miranda




O que outros escreveram a seu respeito:



"Sá de Miranda, verdadeiro pai da nossa poesia, um dos maiores homens do seu século, foi o poeta da razão e da virtude, filosofou com as musas e poetizou com a filosofia. Seu muito saber, sua experiência, seu trato afável, e até a nobreza do seu nascimento lhe deram indisputada celebridade a todos os escritores daquele tempo, dos quais era ouvido, consultado e imitado". (Almeida Garrett)




A alma no céu repousa eternamente,
Cheia do que cá tinha merecido.
O nome voando vai de gente em gente,
Com inveja e amor e espanto ouvido.
O corpo fraco jaz aqui somente,
Da alma à força de idade despedido.
A morte desfaz tudo, mas Miranda
Vivo é no céu, e vivo na terra anda.

(Epitáfio de Pedro de Andrade Caminha sobre Sá de Miranda)




É este o Neiva do nosso Sá de Miranda,
Inda que tam pequeno, tam cantado?
É este o monte que foi às musas dado
Enquanto nele andou quem nos ceos anda?


O claro rio onde chorar me manda
Saudosa lembrança do passado?
O monte, o vale, o bosque, o verde prado
Onde suspira Apolo, Amor se abranda?


Aqui na tenra flor, na pedra dura
Escrevi, ninfas, e no cristal puro
Estes versos que Febo me inspirou


Aqui cantava Sá, daqui seguro,
Livre do mortal peso ao ceo voou:
Pastores: vinde adorar a sepultura!

(Soneto da autoria de Diogo Bernardes, seu "discípulo intelectual")








Legendas das Imagens - A primeira imagem exibe-nos um potencial retrato de Sá de Miranda (Biblioteca Nacional de Portugal) e a segunda remete-nos para um poema deste erudito registado em azulejos na casa do Barreiro (Gemieira - Ponte de Lima).  Ambas as gravuras foram extraídas directamente a partir de: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A1_de_Miranda. A terceira ilustração exibe uma escultura de Sá de Miranda no Parque dos Poetas em Oeiras. A autoria desta escultura é de José Rodrigues, tendo nós retirado a imagem de: http://parquedospoetas.cm-oeiras.pt/?page_id=1288. Por fim, a derradeira gravura apresenta-nos a casa e quinta da Tapada (erguida no século XVI por Francisco Sá de Miranda que aí viveu os seus últimos anos de vida) foi retirada de: http://www.cm-amares.pt/patrimonioconstruido/casadatapada



Referências Consultadas:

segunda-feira, 9 de março de 2015

A Invasão dos Hunos e a sangrenta Batalha dos Campos Cataláunicos


Um Contexto Atribulado


"Vem aí o Flagelo de Deus"! Assim gritavam muitos indivíduos dos aglomerados populacionais ao pressentir a chegada iminente dos hunos, encabeçados pelo seu carismático líder - Átila (406-453). Só de pronunciar este último nome, vários oficiais e combatentes adversários estremecem de pavor! Não era caso para menos!
Sobre as origens dos hunos, ainda hoje subsiste uma enorme controvérsia. Os historiadores suspeitam de que este povo seria inicialmente composto por várias tribos nómadas e pastoris das estepes asiáticas (Ásia Central), não sendo de excluir que as suas raízes correspondessem hoje à região da actual Mongólia. O que se sabe é que nos séculos IV e V entrarão num grande ritmo de expansão, visando primeiro inúmeros territórios do continente asiático, e depois progredindo abruptamente rumo aos domínios europeus.
O terror de cariz apocalíptico que lhes é atribuído pelas demais civilizações confirma as valorosas habilitações militares dos hunos. Eram, sem dúvida, um povo detentor duma vocação caçadora e aguerrida bastante invulgar. A sua ferocidade é total, assentando o pilar da sua força na temível cavalaria (com guerreiros montados que sabiam manejar flechas e arcos) que semeava a morte por infindáveis terras. Quando entram nas zonas que pertencem ao decadente e moribundo Império Romano, fazem-no imediatamente ao ritmo da guerra através de violentas depredações e chacinas. Neste trajecto, também não poupam os demais bárbaros, arrasados e, por conseguinte, empurrados para o interior das fronteiras latinas. Por exemplo, em 370 submetem os Alanos que viviam na Ucrânia. Os visigodos pedem mesmo ajuda às portas do Império Romano. Muitos são os povos germanos que atravessam a fronteira do Reno para escapar à pressão ou aos massacres dos hunos.
Os líderes desta corrente migratória aterradora não hesitavam em participar em qualquer conflito que lhes granjeasse infindáveis recompensas através do saque das terras futuramente conquistadas. Mas Átila queria bem mais do que isto, e por isso, tinha em mente uma meta mais ambiciosa do que os seus predecessores (Rugila e Bleda - este último era irmão de Átila e governou com sua parceria até 445): tornar-se senhor dum novo e vasto império que incorporaria igualmente todos os domínios romanos.
Ao longe já se ouvem os cascos dos cavalos, os gritos apoderam-se das ruelas das urbes, muitos camponeses e artesãos fogem a sete pés, outros batem repetidamente os sinos das torres de modo a alertar a comunidade para o perigo fatal que sobre eles agora recai, os monges entrincheiram-se dentro das longas portas dos cenóbios, as crianças choram de pavor, uma guarnição corajosa prontifica-se à defesa mas é constituída por membros insuficientes que serão facilmente atropelados pelo poderio do inimigo.
Sim, são os hunos que aí vêm para desempenhar a sua trilogia funcional: combater, destruir e saquear! Mas não estão sozinhos: com eles vem Átila, o líder implacável que parece ter sido mesmo associado por alguns cristãos à figura do anti-Cristo narrada no Novo Testamento. O medo era, mais do que nunca, real e não poupava sequer os povos germânicos, inicialmente pagãos ou possuidores da sua própria religião politeísta.





Imagem nº 1 - Átila (406-453 d. C.) foi o soberano mais poderoso dos hunos, e o homem mais temido do século V.
Retirada de: http://www.ancient.eu/image/3047/, (Todos os direitos - Conifer Games).




A invasão ao Ocidente e a Batalha dos Campos Cataláunicos (Chalons)


Átila assumiu a liderança exclusiva do povo huno em 445, aquando do falecimento polémico do seu irmão Bleda (assassinado por Átila num duelo ou terá sido antes vítima de morte natural?) com o qual governava em parceria desde 434. 
Entre 447 e 448, o novo soberano único e incontestável assedia a Europa Oriental, em concreto a região dos Balcãs. Destacamentos romanos são imediatamente varridos pelas forças hunas que acabam de penetrar pela Mésia. O seu avanço chega mesmo a ameaçar a integridade de Constantinopla, cujos esforços de protecção tiveram de ser espremidos ou redobrados até à exaustão. Pelo caminho, os homens de Átila incendeiam aldeias, aniquilam comunidades, degolam donzelas e até monges. Contudo, o líder huno, talvez atraído por um plano mais apelativo, mudou de ideias e pausou as hostilidades, exigindo em troca ao imperador romano do Oriente o pagamento dum tributo anual em ouro além da cedência duma determinada área territorial. Em abono da verdade, estes acordos também eram do agrado dos hunos que assim obteriam receitas significativas para a sua sobrevivência.
No Império Romano do Ocidente, o contexto é de tal forma complexo que Átila sente-se tentado em participar no xadrez geopolítico. As intrigas acumulavam-se e o soberano huno queria também tirar proveitos do ambiente que aí se vislumbrava. O pretexto para tentar legitimar a sua intervenção surgiria muito em breve.
Honória, um princesa romana e irmã do imperador do ocidente - Valentiniano III, foi detida depois de se ter envolvido reprovadamente com um funcionário da corte. Contudo, ela pensou logo em pedir auxílio a alguém que a pudesse libertar, redigindo uma carta para tal fim. E que rival poderia naquele tempo ombrear com o estatuto do seu irmão? Sem dúvida, Átila - o rei mais poderoso e temido entre os bárbaros! O soberano huno nem sequer hesita em programar uma nova campanha. Todavia, interpreta a mensagem de Honória como um pedido "indirecto" de casamento, o que lhe colocava na posição de reivindicar uma fatia generosa do Império através dum eventual dote. Mas Átila quer mais: quer metade do Império Ocidental! E para materializar este objectivo, 300 mil homens (segundo algumas estimativas) estão dispostos a marchar atrás de si para assim reclamarem o que lhes poderia vir a pertencer por direito. Além deste incidente de cariz diplomático, é necessário ter igualmente em conta que havia uma rivalidade feroz entre hunos e visigodos (estes últimos antes de serem expulsos pelos francos e de se fixarem definitivamente na Hispânia, tinham criado um reino no sudoeste da Gália com a capital em Toulouse) e o rei vândalo Genserico parece ter estimulado ainda mais as intrigas entre ambos os povos, atraindo a ira huna sobre aquele povo bárbaro já instalado no ocidente. As desavenças derivadas na sucessão real dos francos (outro povo bárbaro) também podem ter estado na génese da invasão huna. A guerra e a carnificina iriam recomeçar no ano de 451.
Os hunos invadem a região do Vale do Reno, deixando um inenarrável rasto de destruição. Cidades como Reims, Mainz, Estrasburgo e Colónia não foram poupadas aos instintos maquiavélicos. Posteriormente, Átila avançou sobre a Gália, provocando o êxodo imediato da população. Muito em breve, se lançará a caminho de Orleães (Aurelianum). Os hunos não estão sozinhos e são apoiados por aliados nas suas fileiras, mormente ostrogodos, burgúndios, gépidas, rúgios e alguns francos (talvez dissidentes).
Por seu turno, o general latino Flávio Aécio fica incumbido de organizar um poderoso exército de resistência que reunirá romanos, visigodos (com a presença do seu soberano - Teodorico), bretões, saxões, alanos, burgúndios e também um número aceitável de francos. Esta política de alianças reflecte a preocupação de todos estes povos em travar a avalanche huna. Estava em causa o futuro da Europa.
Neste ano atribulado de 451, o comandante romano Flávio Aécio e o rei visigodo Teodorico I surpreendem os hunos quando estes se encontravam a cercar Orleães. A confederação euro-asiática retirou-se para campo aberto de modo a encarar o recém-chegado exército ocidental. Todavia, os próprios sacerdotes hunos (de vocação pagã) começaram a augurar uma derrota estrondosa que estaria reservada aos homens de Átila, presságio que decerto terá contribuído para a desmoralização dos seus combatentes. Mesmo assim, a batalha iria ser longa e cruel, gerando uma mortandade sem limites.
Ambas as facções, estimadas em forças que rondavam entre as 50 e 80 mil unidades, tentam alcançar o cume duma colina que concederia uma clara vantagem posicional. A batalha torna-se extremamente confusa com uma correria desenfreada, mas são os romanos e os visigodos que acabam por atingir aquela inclinação geográfica. A vanguarda do exército huno desorganiza-se e perde qualquer espécie de iniciativa. A disciplina dos soldados romanos e combatentes aliados permitiu segurar uma disposição ofensiva bastante interessante que gradualmente destroçaria as tropas hunas. Átila, o soberano huno, chega mesmo a ficar encurralado no seu acampamento e terá presumivelmente planeado cometer suicídio. Contudo, Flávio Aécio terá permitido que o referido rei e as suas restantes tropas sobreviventes pudessem retirar-se. Não se conhecem bem as motivações de Aécio para a tomada desta decisão, mas não é de descartar que tivesse pensado em Átila como um aliado importante em futuras campanhas, até porque as alianças forjadas com os bárbaros eram pouco credíveis e conheciam uma duração limitada. Se foi este o raciocínio do general romano, então o futuro trataria de desmistificar essa ilusão. Após esta derrota, Átila desaparecerá num ápice e consigo levará quase todo o seu povo para o adormecimento eterno. Só teremos notícias dele apenas para os dois anos posteriores à batalha dos Campos Cataláunicos (ou de Châlons; a qual acabamos então de narrar aqui duma forma geral).
Graças a esta vitória decisiva que anulará consideravelmente a ameaça huna, Aécio conquistou o título honorífico de "o último dos romanos". Há mérito táctico do vencedor que conseguiu salvaguardar, em parte, os rumos da civilização ocidental diante duma corrente migratória belicista e selvática. O confronto foi violento, tendo os romanos falado em "Cadavera vero innumera" o que atesta a carnificina que ceifou as vidas de milhares de combatentes. Nem o próprio rei visigodo Teodorico escapou com vida, apesar da vitória diante dos hunos. Muitos acreditam que esta foi mesmo a maior batalha do Mundo Antigo, porém esta é uma análise subjectiva que poderá ser formulada por qualquer historiador.




Local: Châlons (Batalha dos Campos Cataláunicos)
Data: 451
Forças Beligerantes


Império Romano
Visigodos
Francos
Burgúndios
Bretões
Saxões


Hunos
Ostrogodos
Rúgios
Gépidas
Alanos
Francos (alguns)
Comandantes/Generais
Flávio Aécio (general romano)
      Teodorico (rei dos visigodos)
Átila (rei dos Hunos
Número de Combatentes
Entre 50 000 – 80 000
Entre 50 000 – 80 000
Baixas Estimadas
Indeterminadas mas talvez na ordem dos milhares.
Indeterminadas mas talvez na ordem dos milhares.
Resultado:  A ocupação de pontos estratégicos no terreno, nomeadamente o cume duma colina, favoreceu a coligação de tropas ocidentais lideradas por Flávio Aécio que derrotaram o exército, também ele heterogéneo, encabeçado por Átila. A batalha praticamente fez eclipsar as intenções hunas de impor o seu domínio sobre o Império Romano do Ocidente.

Tabela nº 1 - As estatísticas e os protagonistas da batalha dos Campos Cataláunicos.





Imagem nº 2 - Os hunos lutavam maioritariamente montados a cavalo munidos com arcos e flechas. Acabariam igualmente por adoptar o escudo defensivo.
Retirada de: http://www.illustrationartgallery.com/acatalog/info_EmbletonAtilla.html, (ilustração da autoria de Ron Embleton)




A derradeira campanha huna - o flagelo em Itália


Apesar do prestigiante feito, o comandante romano Flávio Aécio cometera um erro crasso ao permitir a retirada de Átila e dum número ainda considerável de guerreiros hunos que conseguiram sobreviver às incidências da batalha cruel travada no Norte da Gália. Com uma força naturalmente inferior, os hunos invadiram a Itália em 452, arrasando várias terras, incluindo Milão que foi saqueada e incendiada. O soberano huno voltava a exigir a mão da princesa Honória bem como a fatia territorial do Império que achava ser sua por direito. O imperador latino Valentiniano III não sabia o que fazer - o exército romano já não tinha sequer meios naquela altura para proteger a região itálica. A cerca de 200 km de distância de Roma, Átila já se sente tentado pelos tesouros da capital imperial. Terá montado inclusive um acampamento, contudo o líder huno nunca atacou a cidade, uma opção polémica e ainda hoje debatida pelos escolares e investigadores científicos. O que levou então Átila a mudar de ideias? Não queria ele tornar-se senhor do Império Romano? Porque desistira do casamento com Honória?
De acordo com uma lenda (cujo grau de veracidade é discutível), o Papa Leão I teria ido ao encontro de Átila, pedindo clemência ou o fim da ofensiva destrutiva. Segundo esta narrativa, o soberano huno teria sido demovido pelas palavras bem escolhidas por parte do Sumo Pontífice. Se este encontro realmente aconteceu, é ainda hoje uma problemática que permanece como um dos maiores mistérios da História Universal. O que sabemos é que o exército euro-asiático acusava já um desgaste excruciante. A marcha tinha sido longa e penosa com muitos combates travados durante o trajecto. O número de guerreiros nas hostes de Átila diminuía gradualmente. As doenças também infernizaram as hordas hunas, e o acesso aos recursos alimentares era bastante limitado. O cansaço e a ausência de resultados bélicos determinantes terão feito com que Átila abandonasse a campanha em Itália, tentando fazer a inversão de marcha rumo às origens de Leste, mais concretamente ao seu palácio além-Danúbio. Se o Papa Leão teve também influência suficiente para o dissuadir dos seus planos de invasão, nunca o saberemos com a devida certeza absoluta!
No regresso ao Leste, os hunos já orquestravam um novo plano de ataque a Constantinopla porque o novo imperador romano do Oriente - Marciano tinha deixado de pagar o tributo anual de ouro que havia sido acordado no passado. Todavia, a morte surpreendeu Átila que, em 453, pereceu duma hemorragia estomacal no âmbito dos festejos de celebração da sua derradeira boda (contraída com a goda Ildico). Ao longo da vida, Átila teve várias mulheres e sempre privilegiou eventos festivos, dedicando a sua especial cobiça por metais preciosos (por ex: o ouro). Todavia, o seu modus vivendi esfumou-se intempestivamente.
Átila foi enterrado num sarcófago triplo - de ouro, prata e ferro, juntamente com o botim das suas vitórias bélicas. Os que participaram no funeral auto-executaram-se ou trespassaram-se mutuamente, de modo a manter o sigilo total sobre a localização do enterro.
Conforme nos conta Michael Kulinowski, “o império de Átila desmoronou quase imediatamente. Ele tinha vários filhos que lutaram entre si por partes de seu legado. Isso deu aos povos conquistados, como os ostrogodos, a oportunidade para se rebelar. Em uma série de batalhas, os filhos de Átila foram vencidos pelos revoltosos”.






Imagem nº 3 - O encontro entre a delegação papal de Leão I e Átila - o rei dos hunos.
Fresco da autoria de Rafael Sanzio, (1514) no Palácio Pontifício de Roma





Imagem nº 4 - Medalha de Bronze do Renascimento que exibe o retrato de Átila. Pode ler-se na inscrição "Atila, Flagelum Dei"






Imagem nº 5 - Outra representação possível de Átila.
Pintura da autoria de Eugene Ferdinand Victor Delacroix





Mapa nº 1 - Os domínios hunos (marcados a cor lilás) na Europa Oriental durante os séculos IV e V.





Referências Consultadas: