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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Saladino e a batalha de Hattin (1187)


Um pouco sobre a vida de Saladino até 1187


Saladino (ou Ṣalāḥ ad-Dīn Yūsuf ibn Ayyūb) é actualmente catalogado pela historiografia mundial como um dos soberanos mais bem sucedidos de sempre no plano político e militar. Considerado meritoriamente como o "Campeão do Islão", esta personalidade continuaria a guerra santa já iniciada por Zengi e Nur ad-Din (este último seu senhor, com o qual no final manterá uma relação mais fria/azeda).
Pouco se sabe sobre os primeiros anos de vida de Saladino. Supõe-se que teria nascido em 1138, talvez em Tikrit, no seio duma família curda. De resto, só voltamos a encontrar menção clara à sua intervenção nas campanhas do Egipto de forma a defender os interesses zengidas e servindo a Nur ad-Din (emir de Damasco e de Alepo, e como tal, senhor da Síria) contra as invasões do rei Amalrico I de Jerusalém, o qual, entre 1163 e 1169, enviou forças cruzadas para tomar aquele território faraónico. Neste palco, Saladino e o seu tio Shirkuh evidenciaram-se pela sua destreza, frustrando as intenções expansionistas dos cristãos. Como a dinastia fatímida do Egipto se encontrava em evidente decadência, a morte do último califa - al-Adid em 1171, permitiu a ascensão de Saladino (já era vizir desde 1169) que se tornaria sultão do Egipto oficialmente (via coroação) em 1174 (embora o seu domínio já fosse evidente a partir de 1171). Neste processo de afirmação, Nur ad-Din não tolerou que o seu antigo vassalo Saladino tivesse tomado o poder sem o seu consentimento, e a relação final entre ambos será marcada por vários desentendimentos.
Com o falecimento de Nur ad-Din em 1174, foi só uma questão de tempo até Saladino aproveitar novo vazio de poder, e tornar-se senhor de Damasco (ainda em 1174) e de Alepo (mais tarde, em 1183), conquistando gradualmente a Síria e unificando-a ao Egipto, criando assim o Império Aiúbida (este albergava ainda grande parte do Norte da Mesopotâmia).
Saladino havia conseguido reunir um extenso território sob o seu domínio, o que lhe permitiria finalmente dispor de grandiosos exércitos capazes de derrubar qualquer inimigo.
Muçulmano convicto (vertente sunita), o sultão tem a ambição de expulsar os cristãos do Levante. Em 1177, lança uma primeira invasão mas não é bem sucedido sendo travado então pelo jovem rei leproso de Jerusalém - Balduíno IV (ver artigo anterior). Os conflitos perdurarão nos anos seguintes (sem avanços decisivos) até ao assentamento de tréguas. Mas novos acontecimentos fariam despoletar um novo conflito - o rei Guido de Lusignan que ascendeu ao trono na Cidade Santa após o falecimento precoce de Balduíno V, não consegue ser consensual entre os barões cristãos nem impor a sua autoridade sobre os seus vassalos, e o caso mais grave, prender-se-à mesmo com Reinaldo de Châtillon, senhor da Transjordânia e ex-príncipe de Antioquia, cuja constante rebeldia e desrespeito contínuo pelos acordos firmados com os muçulmanos irritaram profundamente Saladino que assim adoptaria este pretexto para programar uma nova invasão ao reino cristão de Jerusalém - dez anos depois do fracasso de Montgisard. A este ponto voltaremos mais à frente com uma descrição detalhada dos acontecimentos.



Saladin The Great Saladin by amoxes

Imagem nº 1 - Saladino apodera-se do Egipto e da Síria, tornando-se no soberano muçulmano mais poderoso do seu tempo.




Perfil de Saladino


As crónicas medievais muçulmanas traçam a imagem dum sultão cavaleiresco que respeitava demasiado os seus inimigos, e que não hesitava em elogiar as suas capacidades e façanhas no campo de batalha. Não será pois estranha a admiração que Saladino viria a nutrir pela bravura evidenciada por Ricardo Coração de Leão, rei de Inglaterra, no decurso da Terceira Cruzada.
Além do modelo de excelência de soberano que imprimia, Saladino era caracterizado como um homem piedoso e generoso. De acordo com o seu biógrafo Bahaeddin (ou Bahā' al-Dīn; 1145-1234), antes de falecer, o tesouro real estaria vazio, visto que o sultão havia investido todo o dinheiro na caridade, auxiliando assim os mais carenciados.
É evidente que as fontes árabes, com a sua parcial conotação, tendem a exagerar nas virtudes veiculadas a Saladino, todavia o seu nome circulou pela Europa, tendo sido igualmente respeitado, de certa forma, pela Cristandade.
O sultão revelou ainda uma genialidade política e militar. Só assim podemos perceber como é que Saladino se tornou senhor do Egipto, da Síria e, mais tarde, de Jerusalém e doutras terras. Soube manusear estrategicamente os seus interesses ou objectivos nas mais diversas áreas de actuação. Por exemplo, se procedeu inicialmente a uma conduta agressiva contra a temível Ordem dos Assassinos, a verdade é que as ameaças sérias desta fizeram-no ponderar bastante, acabando por recuar nas hostilidades contra aquela organização perigosa. Assim, evitou que a sua vida fosse colocada desnecessariamente em risco por causa dum atrito com uma sociedade secreta implacável.
Em suma, o sultão soube pois ler e interpretar os sinais do seu tempo.




Imagem nº 2 - As descrições sobre Saladino nas crónicas muçulmanas apresentam-nos um soberano que revelou vários comportamentos de tolerância e generosidade.




O contexto da Batalha de Hattin: as desavenças do reino cristão de Jerusalém


As mortes de Balduíno IV (em 1185) e de Balduíno V (em 1186) abriram as portas do poder a Guido de Lusignan, casado com Sibila (irmã de Balduíno IV, e curiosamente mãe de Balduíno V que nascera do seu primeiro casamento). Guido, de naturalidade francesa, era um homem que demonstrava algum ímpeto na vertente militar, contudo não dispunha de visão política nem de autoridade incontestável, visto que a sua ascensão não fora consensual.
Nesta década de 1180, começaram a perfilar-se dois partidos no seio dos interesses cristãos do Levante, assim designados pelo historiador medievalista Carlos de Ayala Martínez:


  • O Partido dos Barões Nativos - Os elementos deste grupo defendiam a necessidade de manter boas relações com o Império Bizantino (mesmo que fossem cristãos orientais) e de pactuar, sempre que fora aconselhável, com os muçulmanos. Neste partido moderado, estavam incluídos: Raimundo III (conde de Tripoli, senhor da Galileia e ex-regente de Jerusalém), Guilherme de Tiro (o arcebispo e antigo tutor de Balduíno IV), o clã dos Ibelin e Roger des Moulins (Grão-Mestre da Ordem do Hospital) além dos restantes membros desta ordem religiosa-militar. 
  • O Partido da Corte - Os membros deste grupo começaram a instalar os seus ideais na corte já no reinado de Balduíno IV. De acordo com estes, não era aceitável qualquer forma de entendimento com o Islão, aliás tal seria visto como uma traição. Não aceitavam igualmente colaborar com o Império Bizantino, talvez por desconfianças passadas face a este, e porque os despojos conquistados em potenciais vitórias deveriam possibilitar aos cruzados todas as benesses económicas, pelo que não digeriam bem a hipótese de partilharem a recompensa com Bizâncio. Neste sector, destacamos Joscelino III de Edessa, Reinaldo de Châtillon (antigo príncipe de Antioquia e senhor da Transjordânia), Heráclio (arcebispo de Cesareia e posteriormente, patriarca de Jerusalém) e Gerard Ridefort (Grão-Mestre da Ordem dos Templários que se tornará declarado inimigo de Raimundo - conde de Tripoli). O próprio rei Guido acabará por pender para esta facção mais radical e belicista.

Estes dois grupos começaram a acusar-se mutuamente, fazendo da intriga um elemento permanente. Todavia, o pior viria a acontecer quando as tréguas recentemente firmadas com Saladino foram rompidas duma forma inacreditável. 
Reinaldo de Châtillon, de naturalidade francesa, era um barão que já se encontrava há décadas no Levante. Tinha integrado a fracassada Segunda Cruzada (1147-1149). Destacou-se imediatamente no plano político, tornando-se Príncipe de Antioquia desde 1153 até 1160. Neste último ano, foi capturado pelos muçulmanos, tendo ficado 16 anos no cativeiro em Alepo sob a atenção de Nur ad-Din. Depois de libertado, Reinaldo não tinha ainda deixado de lado o seu fanatismo, não conseguindo assimilar qualquer conjuntura de paz ou tréguas com os muçulmanos. Pelo que as tréguas firmadas não foram respeitadas por este barão que voltara, depois de preso na Síria, a exercer uma influência decisiva nos estados cristãos do Levante. Todavia, Reinaldo não imaginava que estava a cavar a sua própria sepultura e a hipotecar a sobrevivência da Terra Santa nas mãos dos cristãos.
Efectivamente, veremos este barão francês a promover razias contra o tráfico caravaneiro que circulava desde o Cairo até Damasco, ora matando ora saqueando. Supervisiona ainda ataques contra peregrinos que rumavam às duas cidades santas do Islamismo: Meca e Medina. Julga-se que ainda terá arquitectado violentas incursões no Mar Vermelho. Estes actos de pirataria que pareciam deliciar Reinaldo, o seu mentor, irritaram profundamente Saladino que exigiu explicações imediatas ao rei de Jerusalém  Guido. Este sem autoridade política para colocar na ordem o seu vassalo, não impede que as tréguas sejam oficialmente violadas. 
É evidente que Saladino nunca escondera a intenção de invadir as possessões cristãs e de recuperar Jerusalém para o Islão, mas a verdade é que a acção frequente e impune de Reinaldo de Châtillon havia sido a gota de água, ou melhor, o pretexto final, para desencadear uma operação de grande envergadura.





Imagem nº 3 - Guido (ou Guy) de Lusignan, rei de Jerusalém desde 1186, não consegue impor a sua autoridade, nem terminar com as intrigas entre os barões cristãos.
Quadro da autoria de François-Édouard Picot em 1843




A Batalha de Hattin (1187)


Saladino recolocou em prática os seus planos expansionistas. O desastre de Montgisard (1177) já fazia parte do passado. O reino cristão de Jerusalém estava mais fraccionado e debilitado pelas disputas internas. O regime aiúbida começou então a encetar propaganda em torno do ideal de jihad. Curiosamente, Saladino mantinha boas relações com Raimundo III, conde de Tripoli e senhor da Galileia,  com o qual firmou uma trégua para que a integridade territorial deste não fosse violada, o que não viria a suceder-se devido a várias incidências que acabariam por ocorrer.
O sultão pede autorização a Raimundo para que as suas forças pudessem atravessar Tiberíades (a Galileia pertencia ao senhorio do actual titular do condado de Tripoli), prometendo que não inquietaria as povoações instaladas na região, solicitação que foi aceite pelo conde cristão. Todavia, as ordens militares (templários e hospitalários) representadas pelos seus grão-mestres então instalados numa fortaleza das cercanias, não apreciaram, de modo algum, o gesto ousado de Raimundo, pelo que foram logo ao encontro da armada inimiga, formulando um plano de ataque. Todavia, a força conjugada pelos referidos hospitalários e templários não passava da ordem das centenas, pelo que foi trucidada na batalha de Cresson (perto de Nazaré; este conflito bélico foi travado no dia 1 de Maio de 1187), por um contingente aiúbida que integrava 7 mil ginetes. Apenas 3 cavaleiros cristãos lograram escapar com vida, incluindo o próprio Gerard de Ridefort, Grão-mestre dos Templários, embora este tivesse saído com sérios ferimentos. A mesma sorte não teve o Grão-mestre dos Hospitalários, Roger des Moulins, que pereceu em combate, tal como quase todos os outros freires que se engajaram nesta batalha desproporcionalmente inglória. Após esta incidência, as críticas ao posicionamento até então adoptado por Raimundo foram renovadas e acentuadas. Muitos não lhe perdoavam a cumplicidade que mantinha com Saladino, censurando o seu mais recente comportamento de alheamento, visto que o conde não partira com os seus cavaleiros em socorro das forças que viriam a ser esmagadas na batalha desigual de Cresson. Acusado de traição e de envolvimento numa conspiração com Saladino, e até alvo de ameaças de excomunhão por parte do patriarca, Raimundo, talvez de consciência pesada, pediu autorização ao sultão para que pudesse combater contra a sua armada (expirando assim a trégua firmada), o que Saladino, compreendendo a difícil posição do barão, nobremente deferiu.




Imagem nº 4 - Os destacamentos templários e hospitalários foram arrasados na Batalha de Cresson (1 de Maio de 1187). O grão-mestre templário Gerard de Ridefort foi excessivamente impetuoso e insistiu num ataque inglório contra um exército bastante superior em termos numéricos. Por uma unha negra, conseguiu escapar com vida, e se tal o fez, foi muito graças ao marechal do Templo - James de Mailly (ou Jakelin de Mailly) e ao grão-mestre hospitalário Roger des Moulins que morreram heróicamente em combate, abrindo espaço à retirada penosa de Gerard. Depois da batalha, as culpas foram curiosamente atribuídas a Raimundo, conde de Tripoli, o qual, de consciência pesada, quebrou a trégua com Saladino.



Após esta primeira vitória moralizadora (e encarada como um claro prenúncio dum futuro promissor) nas proximidades de Tiberíades, o sultão muçulmano acabaria por lograr reunir uma força poderosa de 30 mil homens, entre os quais 12 mil cavaleiros. Encabeçava pois um projecto militar deveras ambicioso. O primeiro objectivo, dado o rompimento forçado da trégua com o conde de Tripoli, passaria pela conquista formal de Tiberíades, processo que já se encontrava visivelmente em marcha.
Por sua vez, Guido de Lusignan, soberano de Jerusalém, começou a preparar a defesa do reino cristão, e não se pode dizer que tenha sido mal sucedido neste primeiro capítulo destinado a agregar o maior número de combatentes para a sua causa. Com a ajuda do conde Raimundo de Tripoli (houve pois uma recente aproximação entre ambos, dados os acontecimentos dos últimos meses), Guido conseguiu reunir um total de 20 mil homens, entre os quais, podemos destacar 1 200 cavaleiros, 4 mil turcópolos (cavalaria ligeira mercenária integrada por cristãos e muçulmanos nativos) e 14 mil peões (aqui também se incluíram membros do campesinato mobilizado) e ainda alguns elementos das ordens militares. Apesar da relativa inferioridade numérica, as tropas cristãs confiavam o seu sucesso na preparação das suas hostes e nas suas armas que acreditavam ser mais sofisticadas. Além disso, era o maior exército cristão que alguma vez um rei de Jerusalém havia conseguido reunir na Terra Santa.
No dia 1 de Julho de 1187, Saladino já é praticamente senhor de Tiberíades (só o castelo e a cidadela resistem ainda), que era considerada a capital do senhorio da Galileia, pertencente então, como já havíamos referido, aos domínios de Raimundo, conde de Tripoli.
Esta provocação bélica constituiu o principal motivo que desencadeou a marcha do rei de Jerusalém e das suas forças que rumaram assim em direcção às posições do invasor, mesmo com a renitência de Raimundo, o qual senhor da terra ocupada, recomendou que aquele não era o momento ideal para ir ao encontro do sultão, recordando que o calor sufocante do Verão Galileu iria desgastar totalmente o exército durante o percurso penoso que lhe estaria reservado, mesmo que este viesse a durar apenas um punhado de horas. O conde de Tripoli alegava ainda que a sua mulher poderia ainda segurar o castelo de Tiberíades, que ainda não havia caído em mãos muçulmanas, pelo que o mais aconselhável era manter uma importante posição defensiva em Sephoria. Todavia, Raimundo não foi levado a sério e foi inclusive acusado pelos seus detractores de demonstrar novamente uma postura cobarde. Reinaldo de Châtillon, esse mesmo - o responsável pelo fim das tréguas e acérrimo defensor da visão belicista, utilizou toda a sua pressão e agressividade para que o rei Guido fosse imediatamente a correr em direcção ao inimigo. Além disso, Reinaldo contou com o apoio dos templários para convencer o soberano cristão. A facção belicista, mais uma vez, levaria a melhor sobre os barões mais moderados que não tiveram outra hipótese senão acompanhar toda aquela marcha imprudente.
No dia 3 de Julho, o exército cruzado deixou então Sephoria, onde estava estacionado, e partiu em direcção às linhas inimigas, e alcançaria, ao fim de algumas horas, uma planície rochosa em Hattin, onde não havia qualquer fonte de água. Os cristãos, sedentos e cansados devido à marcha pautada pelo clima tremendamente exigente e pela travessia por terrenos totalmente áridos, decidiram acampar mesmo ali, mas no dia 4 de Julho, são imediatamente cercados pelas forças de Saladino. Estas começam a atear fogos em redor das posições cristãs, gerando uma cortina de fumo asfixiante no acampamento cruzado. Além disso, cortam qualquer tentativa de abastecimento de água às forças agora sitiadas. De seguida, os francos serão visados pela saraivada de flechas, estas lançadas, de forma contínua, por arqueiros muçulmanos montados. Muitos cruzados tombam nesse preciso momento, outros tentam desertar (mas só poucos conseguem escapar) e ainda houve aqueles que, em número considerável (sobretudo peões), subiram ao cume da colina, sem que tivessem recebido qualquer ordem superior nesse sentido. Aliás, o rei Guido ordena para que eles desçam e constituam uma formação em bloco para avançar em direcção às tropas muçulmanas, mas nem neste momento decisivo, a presumível autoridade do soberano de Jerusalém é atendida, porque os infantes recusam-se a descer do topo da colina, onde talvez se sentiriam mais protegidos das flechas inimigas, mas não era menos verdade que aí não tinham qualquer acesso à essencial água.
Entretanto, 2 mil cavaleiros cristãos, acompanhados por outros homens de armas, tomam uma primeira acção concreta, conseguindo efectuar uma carga finalmente bem sucedida que faz com que os arqueiros muçulmanos montados recuassem, embora este procedimento militar não tivesse sido suficiente para romper o cerco rígido arquitectado pelos muçulmanos. Após esta carga, outras se seguiriam desesperadamente. Os cruzados sedentos queriam a todo custo, romper as linhas árabes e alcançar o Lago de Tiberíades, de forma a conseguirem finalmente molharem os seus lábios quase "moribundos". Estas tentativas prolongaram-se pelo dia inteiro. É certo que estas cargas, efectuadas com bravura, e mesmo sem o apoio de grande parte da infantaria (refugiada no topo da colina), geraram certamente baixas no lado muçulmano, mas só poucos grupos de cruzados (onde por exemplo, se integrava o Conde de Tripoli - Raimundo III) conseguiram furar o cerco e aceder aos víveres de que tanto necessitavam, mas não se atreveram pois a regressar para tentar inverter uma batalha quase perdida. Também houve alguns cruzados que conseguiram pôr-se em fuga graças ao ar mais fresco da noite (contrastando com o dia tórrido) e à sua inseparável escuridão que debilitava a visibilidade do exército muçulmano que procurava controlar as operações, e que até ver o fizera, com o mínimo de sucesso, seguindo assim as ordens claras de seu conceituado líder - Saladino.
De madrugada, a batalha recomeçara, mas os cruzados estavam exaustos e praticamente perto de colapsar devido à enorme sede que sentiam. O Bispo de Acre é um dos que tenta animar os seus soldados, ergue a Vera Cruz sob a sua cabeça, de forma a liderar uma nova carga. O fracasso voltou a acompanhar a iniciativa, e desta feita, nem o corajoso bispo conseguiria escapar à morte, além daquela venerada relíquia sagrada para os cristãos ter caído nas mãos dos muçulmanos. É provável que este episódio tivesse desmoralizado definitivamente as forças cristãs. O rei Guido acabou depois por se render, juntamente com outros barões e um número considerável de soldados que não conseguiram fugir.
As baixas do lado cristão terão alcançado os 17 mil, entre mortos e capturados, e além do Bispo de Acre, morto na batalha, também Reinaldo de Châtillon foi executado (via decapitação) por Saladino que não perdoou os seus actos odiosos de pirataria, motivo pelo qual a trégua anterior tinha sido quebrada. O rei Guido de Jerusalém foi poupado e tratado duma forma digna enquanto cativo (por exemplo, quando fora detido, Saladino mandou-lhe trazer imediatamente água fresca para saciar a sua gritante sede), porque o sultão aiúbida defendia o seguinte lema: "os verdadeiros reis não se matam uns aos outros". O mesmo aconteceu com outros barões cruzados aprisionados que detinham algum prestígio e que acompanhavam o soberano cristão. Outros cavaleiros tiveram ainda a sua vida poupada, embora a sua sorte dependesse do seu nível social (uns foram libertados mais tarde, outros, com menos sorte, vieram a ser transaccionados como escravos). O pior destino ficou reservado aos cavaleiros templários (excepto ao seu grão-mestre Gerard de Ridefort que foi poupado), hospitalários (estas duas ordens militares "fanáticas" daquele tempo eram vistas como verdadeiras ameaças ao Islão) e turcópolos (estes encarados como mercenários que haviam traído ou vendido as suas próprias convicções) foram sumariamente executados. No lado muçulmano, não temos conhecimento duma estimativa de baixas concretas, mas cremos, embora sem base científica, que o número não seria tão expressivo, mas também este não seria praticamente nulo porque houve lugar a combates violentos durante mais de um dia, pelo que aceitamos que o número de baixas do lado aiúbida tivesse sido inferior (talvez não muito inferior) a 5 mil, entre mortos e feridos com alguma gravidade.
O que é certo é que Saladino conquistaria a principal vitória da sua carreira militar. Acabava de destroçar um exército cristão de grande envergadura, o que lhe abriria caminho para a conquista futura de novas terras, dado que o rei de Jerusalém estava agora preso em Damasco (para onde foi cambiado) e que já não existia outro exército cristão na Terra Santa capaz de o enfrentar. A vitória em Hattin deveu-se, em muito, à astúcia militar de Saladino que, conhecendo bem o terreno em que se movia, soube ainda avaliar as fragilidades do adversário que se tinha submetido a uma marcha penosa, e o sultão soube jogar com o clima atormentador e o estado de carência do inimigo a seu favor, vencendo-o pela escassez de víveres, sobretudo pela sede.
Hattin seria uma das batalhas que mudaria o curso da História, e o seu vencedor - Saladino seria eternizado mundialmente pelo feito.



Local: Hattin, perto de Tiberíades
Data: 4 de Julho 1187
Forças Beligerantes

 
Reino Cristão de Jerusalém
Ordens militares

 
Império Aiúbida
Comandantes/Generais
Rei Guido de Jerusalém (PG)
Gerard de Ridefort (PG)
Reinaldo de Châtillon †
Raimundo III de Tripoli
Balian de Ibelin
Saladino
Al-Adil
Número de Combatentes
20 000
30 000
Baixas Estimadas
17 000 (entre mortos e capturados)
Não muito elevadas (talvez inferiores a 5 000)
Resultado:  Depois duma marcha penosa até  às proximidades de Tiberíades, com um clima que revelou ser um dos seus principais inimigos, os cruzados são cercados em Hattin, e massacrados pelas tropas de Saladino, cuja astúcia militar foi determinante. A derrota em Hattin originaria a queda em breve de Jerusalém e de muitas outras praças cristãs.
PG = Prisioneiro de Guerra

Tabela nº 1 - As estatísticas inerentes à batalha de Hattin.



Imagem nº 5 - A marcha penosa dos cruzados no Verão escaldante da Galileia degastou fisicamente as forças cristãs que perderam todos os seus argumentos militares aquando do confronto decisivo em Hattin, perto de Tiberíades.
Ilustração dum manuscrito medieval (in Wikipédia)




Imagem nº 6 - As forças cruzadas tentaram resistir em vão ao poderoso exército de Saladino, cuja genialidade militar seria decisiva para o triunfo muçulmano. As flechas dos arqueiros aiúbidas causaram uma evidente mortandade no lado cristão.





Imagem nº 7 - A rendição cristã em Hattin. Os dois reis (Saladino e Guido) conversam no desfecho da batalha.
Quadro da autoria de Said Tahsine (1904-1985)





Imagem nº 8 - A decapitação de Reinaldo de Châtillon às mãos do sultão Saladino.
Iluminura do século XV (in Wikipédia)




A Queda de Jerusalém


Nos dois meses que se seguiram à batalha de Hattin, Saladino e os seus emires não param de conquistar novas terras: Acre, Nablus, Sidon, Beirut, Ascalona, Gaza, Napsula, Haifa, Nazaré, Belém, Jaffa, Beirute, Jbail... Praticamente ninguém se atrevia a fazer frente ao novo sultão que começava a tornar-se num verdadeiro herói para o Mundo muçulmano. Os estados cruzados encontravam-se consequentemente, cada vez mais, diminuídos e desmembrados. Mas o pior ainda estava para vir: Saladino desejava tomar a Cidade Santa, a terceira terra mais importante para o Islamismo depois de Meca e Medina. É provável que os imãs o tivessem pressionado bastante na ambição de recuperar Jerusalém.
Saladino começa por enviar uma mensagem aos habitantes da Cidade Santa de forma a que estes procedam à rendição pacífica daquela, estando disposto a deixá-los partir acompanhados com os respectivos bens móveis que detinham, bem como não hesita em respeitar a integridade dos lugares cristãos aí sitos. A resposta dos francos é negativa. Mesmo desprovidos do seu rei (Guido encontrava-se em cativeiro) e do seu exército (aniquilado em Hattin), os cristãos estão dispostos a tentar a sua sorte e resistir. A defesa será assegurada por Balian de Ibelin, senhor de Ramleh, um barão valente e respeitado que havia conseguido escapar da batalha de Hattin. O capítulo mais recente da sua história é curioso. Ele havia acordado com Saladino uma licença que lhe permitiria trazer a sua mulher que estava em Jerusalém e que só passaria uma noite naquela cidade. Todavia, mal entrou na Cidade Santa, muitos habitantes consultaram-no e até suplicaram para que ele dirigisse a defesa contra o futuro assédio muçulmano. Pressionado, Balian solicitou a Saladino autorização para que pudesse zelar pela protecção de Jerusalém, ao que o sultão consentiu, desligando-o de qualquer compromisso. Segundo Amin Maalouf, Saladino ao ver Balian demasiado atarefado em organizar a defesa de Jerusalém, proporcionou uma escolta à sua mulher para que esta fosse conduzida para um lugar seguro. Um gesto magnânimo do sultão.
Saladino e o seu poderoso exército promovem um duro cerco a Jerusalém que se inicia em 20 de Setembro de 1187. Trata-se duma batalha desigual. As muralhas são sólidas, mas a verdade é que os defensores cristãos, embora esforçados, limitavam-se a um punhado de cavaleiros e algumas centenas de burgueses recrutados de urgência e sem qualquer experiência militar. No dia 29 de Setembro, os sapadores muçulmanos conseguem abrir uma brecha no norte da fortificação, e a qualquer instante, preparam o assalto final. Por seu turno, Balian consciencializa-se que a batalha está definitivamente perdida, pelo que solicita um salvo-conduto para todos os habitantes de Jerusalém. Saladino não se mostra inicialmente bastante receptivo, estando disposto a tomar a cidade pela força, depois dos francos terem recusado a proposta primitiva de rendição pacífica. Todavia, Balian soube jogar no campo diplomático, ameaçando destruir o Rochedo Sagrado, a mesquita al-Aqsa e muitos outros lugares islâmicos, além de estar disposto a mandar executar os cinco mil prisioneiros muçulmanos que estavam em cativeiro na Cidade Santa: era isto que aconteceria se a recente proposta cristã de rendição pacífica não fosse firmada.
Saladino, ao saber das intenções deste barão cristão, ponderou e acabou por viabilizar a rendição junto dos seus conselheiros, os quais, preocupados com a situação financeira do Império Aiúbida (grande parte do tesouro estatal tinha sido canalizado para as campanhas militares), exigiram que cada cristão, enquanto refém virtual, pagasse o seu próprio resgate. Cada homem pagaria 10 dinares pela sua liberdade, cada mulher 5, e as crianças 1 dinar. O próprio sultão, o seu irmão al-Adil e o barão cristão Balian de Ibelin comprometeram-se em investir alguns milhares de dinares, de forma a salvar muitos civis pobres que não tinham condições para pagar a sua saída livre. É claro que, para azar dos seus tesoureiros, o próprio Saladino deixou ainda sair centenas de cristãos (pessoas idosas, mulheres enviuvadas, órfãos...) sem pagar qualquer tipo de resgate, demonstrando mais uma vez a sua generosidade e tolerância. Mesmo assim, nem todos os cidadãos foram resgatados, pelo que houve ainda um número considerável de habitantes que, sem condições económicas e sem serem abrangidos pela solidariedade dos mais poderosos, seguiram a sua vida na escravidão.
Àqueles que lograram sair com os seus bens móveis, Saladino teve o cuidado de garantir a sua protecção, concedendo ordens a alguns dos seus destacamentos para que os escoltassem até ao destino, de forma a evitar que estes pudessem ser emboscados ao longo do trajecto. Além disso, impediu que alguns fanáticos ousassem destruir a Igreja do Santo Sepulcro na Cidade Santa, demonstrando ainda uma visão tolerante em relação a futuras peregrinações cristãs.
A entrada triunfante das forças lideradas por Saladino em Jerusalém, no dia 2 de Outubro de 1187, foi festejada exaustivamente pelo Mundo Muçulmano. A popularidade de Saladino tinha alcançado o seu clímax. Era pois o herói incontestável do Islão. Todavia, o ano de ouro de 1187 estava prestes a findar, e a reacção cristã, proveniente dos reinos europeus, era inevitável, pelo que os anos vindouros se avizinhavam como tremendamente exigentes.




Imagem nº 9 - Saladino estava imparável. As conquistas sucediam-se freneticamente após a batalha de Hattin, e muitos dos bastiões francos no Levante estavam agora em perigo.
Retirada de: 




Nota adicional - Não concluímos neste artigo a biografia de Saladino que acabaria por falecer em 1193. Todavia, os detalhes da restante vida serão traçados de certa forma nos próximos dois artigos que ainda iremos elaborar e que se prendem com a reacção cristã face a estes feitos militares de Saladino.


Referências Consultadas:

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Balduíno IV, o jovem rei leproso de Jerusalém


Um Contexto Atribulado


A Segunda Cruzada (1147-1149) conduzida pelos reis Luís VII de França e Conrado III do Império Sacro Romano Germânico havia sido um fracasso completo, com um cerco que satiricamente só durou praticamente uma semana em torno de Damasco. A descoordenação foi tremenda até ao ponto da expedição não ter procurado sequer punir Zengi, o atabeg de Mossul e Alepo responsável pela queda do condado cristão de Edessa em 1144, motivo pelo qual se pregou a Segunda Cruzada. Desde então, o espírito de jihad começou a crescer. Depois de Zengi, veio seu filho Nur ad-Din, mas também em breve, surgiria Saladino, um dos sultões mais bem sucedidos de sempre na História do Islão. A situação dos estados cristãos do Levante/Palestina já era bem distinta daquela em que se evidenciaram grandes nomes da estratégia militar como Godofredo de Bulhão, Balduíno I, Boemundo de Taranto, Raimundo de St. Gilles, entre outros responsáveis pela criação e expansão dos domínios latinos no Oriente. A realidade a partir de meados e da segunda metade do século XII, remete-nos para as intrigas internas na luta pelo poder em Jerusalém. Os barões divergiam constantemente, a ideia de estabilidade correspondia a um cenário meramente virtual. O ascendente estava agora do lado da facção muçulmana. A última vitória cristã (a qual constituiu um momento isolado) de digno registo tinha acontecido no reinado de Balduíno III que, em 1153, tomou a cidade portuária de Ascalona, empreendimento militar em que também terá participado o templário português D. Gualdim Pais. Mas depois os desaires acentuaram-se com Amalrico I que promoveu algumas invasões ao Egipto (1163-1169) sem lograr uma única conquista determinante, apesar da destruição e dos saques que terão ocorrido. Aliás, seria neste palco de guerra que Saladino começou a dar as suas primeiras grandes provas juntamente com o seu tio Shirkuh. Dada a decadência da dinastia fatímida, e após a morte do último califa, Saladino apoderou-se do Egipto, tornando-se então no novo sultão, o que decerto desagradou ao até então seu mestre Nur ad-Din que o havia incumbido de apenas travar a invasão cruzada ao Egipto. A relação entre ambos será tensa no final. Entretanto, Nur ad-Din falece em 1174, e Saladino, graças ao prestígio que já possuiria, também acabará por se apoderar gradualmente da Síria. Ao tornar-se senhor deste império aiúbida (Síria e Egipto), Saladino tornava-se num soberano poderoso, tendo ao seu dispor armadas que poderiam atingir os 100 mil homens. Além disso, promovia uma união mais estabilizada no Islão, podendo agora tirar proveito do declínio das forças cristãs no Levante.
Foi realmente neste contexto inglório que Balduíno IV teve de se mover, desenvolvendo todo o tipo de esforços para procurar evitar aquilo que aparentava ser inevitável - a queda da Cidade Santa - Jerusalém, a qual havia sido conquistada em 1099 pelos cruzados de Godofredo de Bulhão e que agora estava em iminente perigo de cair em mãos muçulmanas.



Imagem nº 1 - Juntamente com o seu tio Shirkuh, Saladino foi bem sucedido nas campanhas do Egipto derrotando os cruzados invasores. Devido ao desaparecimento iminente da dinastia fatímida, tornar-se-ia sultão do Egipto, e com o falecimento de Nur-ad-Din, apoderou-se aos poucos da Síria, criando o império aiúbida, o que o oficilizaria como o soberano mais poderoso do Levante. Saladino foi igualmente um génio na vertente militar, além de exibir uma postura cavaleiresca, mesmo diante dos seus adversários.



Mapa nº 1 - O Império Aiúbida (1171-1246), a vermelho, incorporava vários territórios o que sufocaria as possessões litorais dos Estados Cruzados do Levante, estas representadas a cor verde.
Retirado do Wikipédia (autor colectivo - Arab League)



Os primeiros anos e a ascensão ao trono da Cidade Santa


Balduíno nasceu em 1161 em Jerusalém. Era filho de Amalrico I, rei de Jerusalém, e de sua esposa Inês de Courtenay. Aos 9 anos de idade, Balduíno viria a ser educado por Guilherme de Tiro (será arcebispo de Tiro a partir de 1175), historiador que nos deixaria um vasto e notável testemunho sobre aquele período que vivenciara. Foi este mesmo tutor que desvendou que a criança sofria de lepra, o que motivou a procura de médicos, cristãos e até muçulmanos, e de tratamentos para curar ou atenuar o avanço gradual da doença. Todavia, tais esforços de pouco ou nada valeram, pois Balduíno jamais se livraria daquela terrível doença, a qual em breve lhe iria ceifar todas as energias, causando-lhe uma morte lenta e dolorosa. O príncipe não iria viver muitos anos, embora ainda tivesse tempo para marcar a sua própria página na história.
De acordo com o historiador Carlos de Ayala Martínez, Balduíno era um jovem voluntário, culto e cuidadosamente educado pelo seu preceptor Guilherme, arcebispo de Tiro desde 1175. 
A morte de Amalrico I, rei de Jerusalém, em 1174, abriu as portas de sucessão a Balduíno que tinha, na altura, 13 anos de idade. Foi coroado como Balduíno IV. Todavia, nos primeiros tempos houve lugar a dois pequenos períodos de regência em que Miles de Plancy (este acabaria assassinado) e Raimundo III de Tripoli procuraram auxiliar o ainda jovem adolescente nos assuntos do reino. 





Imagem nº 2 - Guilherme de Tiro, enquanto tutor, descobre os primeiros sintomas de lepra no jovem Balduíno de 9 anos, depois deste ter brigado com outras crianças.
Gravura contida num manuscrito medieval da Estoire d'Eracles (século XIII).



O reinado do jovem leproso


Balduíno IV sabia que a doença não lhe permitiria usufruir dum reinado duradouro, pelo que uma das suas prioridades passou por assegurar uma sucessão segura, procurando casar a sua irmã Sibila, de forma a que pudesse ser sucedido por um sobrinho. Dentro deste contexto, Sibila contrairá o seu primeiro matrimónio com Guilherme de Montferrat, conde de Jaffa e Ascalona, do qual resultará o nascimento dum filho - também ele herdeiro do nome "Balduíno" (seria o quinto com esta designação). É claro que a sucessão seria assegurada, mas o futuro Balduíno V teria um governo bastante precoce, e nem o seu futuro padrasto Guido de Lusignan (com quem Sibila se casaria pela segunda vez) estaria ao nível exigido dos acontecimentos, revelando uma visão política desastrosa, factos que não impedirão a queda do reino cristão de Jerusalém em 1187 face às tropas da nova estrela que se reerguia no Oriente - o sultão aiúbida Saladino.
Voltando ao reinado de Balduíno IV (1174-1185), não podemos ignorar os esforços deste em construir novas fortalezas e reestruturar outros edifícios defensivos. Para alcançar esta finalidade, dispôs do fundamental auxílio dos templários. Aliás, mesmo com o agravamento dos sintomas da doença, a verdade é que Balduíno sempre intentara demonstrar carácter e discernimento no decurso do seu governo. Como prova disso, ele procurou rodear-se duma boa equipa de conselheiros, onde estavam presentes o leal arcebispo Guilherme de Tiro (seu anterior educador) e o seu primo, o Conde de Tripoli e ex-regente de Jerusalém - Raimundo III. Mesmo assim, as intrigas cortesãs continuavam a existir, o que desgastou mais o seu estado de saúde.



Os conflitos diante do sultão Saladino


O crescimento militar das hostes lideradas por Saladino preocupavam a corte cristã de Jerusalém, pelo que Balduíno IV decidiu romper as tréguas com o sultão aiúbida que haviam sido firmadas pelo seu anterior regente Raimundo de Tripoli. Os avanços de Saladino (já dono do Egipto) na Síria eram claros. Balduíno optou pois por promover raides junto a Damasco, o que obrigou o sultão a abandonar o cerco a Alepo e a recuar para uma posição defensiva. Hoje é unânime concluir que esta decisão fora tomada com sabedoria, pois o rei de Jerusalém sabia que não tinha elementos suficientes para proceder a um ataque frontal em Alepo contra o poderoso exército de Saladino, mas poderia fazê-lo recuar diante daquela cidade que ainda não lhe tinha caído nas mãos, através duma provocadora ofensiva contra Damasco, cidade basilar que já era controlada por Saladino desde 1174. Em 1176, Balduíno programou novas incursões no vale de Bekaa, Síria e Líbano, e as suas forças travaram inclusive um ataque dum sobrinho de Saladino. Não se tratavam pois de campanhas de grande envergadura (os cristãos do Levante nem dispunham de meios militares para tal naquela altura), mas eram suficientes para incomodar o sultão aiúbida. No palco belicista, o jovem leproso Balduíno ostentava uma maturidade inegável, e talvez essa característica individual tenha constituído o principal motivo para a sobrevivência, embora que precária, dos territórios cruzados durante o seu reinado que perduraria até 1185.
Além destas operações, o rei de Jerusalém procurou uma parceria com o Império Bizantino de forma a encetar uma invasão ao Egipto, onde Saladino assentava o seu nevrálgico poder. A campanha seria comprometida com o adoecimento e consequente falecimento de Guilherme de Montferrat (marido da sua irmã Sibila), o que igualmente terá contribuído para o agravamento do estado de saúde de Balduíno que teve de colocar de lado tais planos tão ambiciosos. Novamente, se abordou a possibilidade duma nova regência, até que Balduíno apresentasse algumas melhorias. O Conde Filipe da Flandres que veio em peregrinação com o seu próprio destacamento militar, e que até era primo do rei leproso de Jerusalém, recusou a regência. Todavia, a morte de Guilherme de Montferrat deixaria Sibila viúva, o que constituiria uma excelente oportunidade para quem desejasse aceder ao poder em Jerusalém, após o falecimento de Balduíno IV que ocorreria inevitavelmente em breve. Há disputas e mau-estar entre os barões dos estados cruzados.
Como se não bastasse, a descoordenação entre os cristãos era outra realidade inegável. Em Outubro de 1177, o conde da Flandres pegou numa parte considerável das forças e lançou uma campanha contra o castelo muçulmano de Harim. A ele também se juntaram Raimundo III, conde de Tripoli e anterior regente do reino de Jerusalém, e Boemundo III, príncipe de Antioquia. Aproveitando um potencial cenário de enfraquecimento militar na Cidade Santa, Saladino planeou, a partir do Egipto, uma invasão ao reino de Jerusalém. Era a sua primeira tentativa de recuperar o controlo muçulmano sobre a Cidade Santa, quando esta predispunha naquele momento de limitadas forças.



A Batalha de Montgisard (1177)



Saladino julgava que o rei leproso de Jerusalém, reduzido ao seu leito de doente crónico, não seria uma ameaça aos seus planos. O sultão procede à invasão com uma armada de 26 000 homens que transportava a sua própria bagagem de assédio militar, e empreende os seus primeiros ataques em Ramla, Lydda e Arsuf.
Talvez subestimando a capacidade de reacção do adversário, autoriza que os seus efectivos pudessem combater e pilhar por uma área considerável. Todavia, Saladino, que viria a marcar mais tarde o seu nome numa página de ouro em que só estariam incluídos os grandes estrategas militares do Medievo, tinha acabado de cometer um erro crasso - consentindo aquilo que se traduziria numa exagerada dispersão e consequente desorganização das suas tropas.
Por seu turno, as forças cristãs que assentavam em 375 cavaleiros (80 seriam templários), e em poucos milhares de soldados de infantaria (talvez menos do que 4 mil infantes; aliás houve mesmo membros da burguesia urgentemente integrados neste destacamento). À frente deste pequeno exército estava Balduíno IV, um rei que teve forçosamente de deixar os seus aposentos, nos quais procurava recuperar o fôlego absorvido pela lepra, para sair a cavalo, situação em que tirou proveito das suas escassas energias e, por conseguinte, reuniu a força possível para ir de encontro ao poderoso inimigo. Muitos julgavam que o rei ("meio morto" por causa da evolução da lepra) não iria aguentar as incidências da batalha e que provavelmente tombaria devido à exigência desgastante da campanha. Com Balduíno, estavam outros barões: Reinaldo de Chatillon (um cristão fanático que viria a dedicar-se à cruel pirataria),  Balduíno de  Ibelin e seu irmão Balian de Ibelin, Reginaldo de Sídon e Joscelin III de Edessa, além da presença do grão-mestre templário - Odo de Saint Amand.
Saladino subestimara estas movimentações, acreditando que as forças cristãs eram insuficientes para o travarem, e por isso, o sultão continua a marcha em direcção a Jerusalém, prevendo que esta lhe caísse com maior ou menor dificuldade. Grave erro, do qual Saladino teria aprendido uma enorme lição, para que no futuro, pudesse ser considerado um dos soberanos mais vitoriosos de sempre. Logicamente, as forças muçulmanas encontram-se dispersas quando estão já próximas da cidade de Ramla, sendo que havia uma colina denominada de Montgisard, onde as tropas de Balduíno se concentraram para lançar um ataque surpresa contras as forças muçulmanas.
A partir do topo da colina, o exército cristão ficou aterrorizado ao avistar o poderoso exército de Saladino que ia ao seu encontro. A desmoralização começou a apoderar-se das hostes cristãs, mas Balduíno, apercebendo-se da situação desesperante, tomou um passe em frente, e mesmo com a sua agravada doença, desceu do cavalo e pediu ao Bispo de Belém para que erguesse a relíquia da Vera Cruz (a cruz onde se julga que Jesus Cristo havia sido crucificado) diante de todos. O rei prostrou-se com dificuldade no chão diante da relíquia sagrada, orando emocionadamente a Deus para que este lhes concedesse a vitória. Levantando-se depois da meditação, Balduíno exortou as suas tropas, que encorajadas pelo seu jovem rei, aplaudiram a sua nobreza e consentiram em lançar uma intensa carga sobre o inimigo. As forças muçulmanas, embora em número bastante superior, estavam desorganizadas ou fragmentadas. O impacto intempestivo da carga cristã causou pânico nos contingentes muçulmanos que não tiveram definitivamente qualquer possibilidade de se reagrupar ou reorganizar, o que era essencial para imprimirem uma coesão necessária. Como se não bastasse, o trem ou bagagem de armamento transportada pelos muçulmanos acabaria por ficar atolada num rio da região, onde os terrenos lamacentos ou pantanosos impediram que os invasores recorressem às ferramentas aí contidas.
Saladino procurou reagrupar a sua guarda-pessoal de mamelucos enquanto seu sobrinho Taqi ad-Din liderava o ataque que seria praticamente aniquilado pelos cristãos. Taqi ad-Din consegue sobreviver às incidências, mas o seu filho, que o acompanhava, acaba por tombar em combate. Muitos elementos da guarda-pessoal de Saladino deram corajosamente a sua vida pela do sultão que só conseguiu escapar com recurso a um camelo de corrida.
Por seu turno, as fontes tendem a elevar a coragem de Balduíno que teria liderado a carga cristã com as mãos enfaixadas, de forma a cobrir as suas feridas. Por um lado, é difícil imaginar que um soberano, cujo corpo se encontrava em estado avançado de hanseníase agressiva, pudesse ter forças para comandar o ataque, mas por outro, a ter acontecido, e embora o risco tivesse sido enorme, a verdade é que o seu exemplo terá motivado os soldados restantes.
As tropas cristãs perseguiram as forças de Saladino até ao anoitecer, e depois retiraram-se rumo a Ascalona. Por seu turno, a armada destroçada do sultão egípcio teve de enfrentar um retorno penoso que se prolongou por 10 dias carregados de intensas chuvas. Como se não bastasse, os beduínos do deserto não hesitaram em atacá-los de forma a pilhar os bens que ainda podiam transportar com eles. De acordo com as crónicas, apenas um décimo da força de Saladino conseguiu sobreviver (dos 27 mil inicialmente estimados, entre 2 500 a 3 000 soldados terão conseguido escapar), contudo alertamos que esta previsão pode ser encarada como exagerada, e é possível que tivessem até existido mais sobreviventes, contudo é inegável que o número de baixas das forças muçulmanas foi inegavelmente elevado. No que diz respeito às tropas de Balduíno, é possível que o número de baixas rondasse o um milhar (num total de cerca de 4 mil efectivos que incorporavam o seu exército, ou até menos do que isso).
A Batalha de Montgisard foi apenas fundamental para que Balduíno IV, no decurso do seu reinado, conservasse intactos o reino cristão de Jerusalém e demais possessões latinas do Levante. Dez anos depois, em 1187, Saladino aplicaria, devido à sua genialidade militar, uma estrondosa derrota às forças do futuro rei de Jerusalém Guido de Lusignan na Batalha de Hattin, o que se traduziria na queda de várias terras controladas pelos cristãos, entre as quais Jerusalém.




Imagem nº 2 - Balduíno decide deixar o seu leito de doente, reúne as poucas forças disponíveis e marcha em direcção ao inimigo, tentando interceptá-lo antes da chegada a Jerusalém. 





Imagem nº 3 - O enfrentamento final das tropas em Montgisard. Dum lado, o jovem rei leproso e corajoso Balduíno, do outro, Saladino, o sultão mais poderoso do seu tempo.
Quadro da autoria de Charles Philippe Larivière (1798-1876)



Imagem nº 4 - A carga final das tropas cristãs que aproveitam a desorganização das forças muçulmanas. Na gravura, veja-se o Bispo de Belém a transportar a Vera Cruz, de forma a motivar os soldados a combater pela causa religiosa.
Retirada de: http://www.deviantart.com/art/Battle-of-Montgisard-168630488, (Giacobino).






O Sofrimento e Morte do Rei


A vitória em Montgisard afastou por alguns anos, não muitos como já referimos, o sultão egípcio de tentar uma nova invasão à Terra Santa. Todavia, a saúde de Balduíno sairia mais debilitada após aquele intensivo e desgastante confronto. Seria uma questão de tempo até perder os olhos e o uso dos seus membros, o que parece acontecer definitivamente em 1183. A lepra corroía impiedosamente o corpo das suas vítimas, causando dores inimagináveis aos seus portadores.
Balduíno desejava abdicar: terá escrito a Luís VII, rei de França, pedindo que este enviasse um barão conceituado que substituísse a sua "mão fraca" que poderia estimular uma nova ousadia por parte dos muçulmanos que estavam sempre atentos à situação dos acontecimentos. Todavia, esta solicitação não terá sido atendida como Balduíno desejara. Procurou então arranjar um casamento entre sua irmã e "viúva" Sibila (Guilherme de Montferrat já havia falecido) com o duque Hugo de Borgonha, mas novamente a intenção não foi concretizada. Aquela acabaria sim por contrair um novo matrimónio com Guido de Lusignan, um homem nada consensual entre os barões do reino e que estava longe de possuir uma visão política adequada às necessidades do reino. Balduíno preferiu, contra a sua vontade, reinar até ao fim, enquanto a doença o devorava interiormente, além da angústia que deveria sentir com estas tensões internas que pareciam comprometer o futuro e a viabilidade dos estados cristãos no Levante.
Em 1183, Balduíno, mesmo incapacitado, foi transportado numa maca para o campo de batalha, procurando resgatar os nobres aprisionados que tinham sido alvo dum ataque surpresa por parte dos muçulmanos. Nesse mesmo ano, opta por nomear como rei associado o seu sobrinho Balduíno V (filho de Sibila no seu primeiro casamento com Guilherme de Montferrat) que só contava com 5 anos de idade, embora o rei leproso confiasse a Raimundo III de Tripoli a regência até que a criança alcançasse a maioridade. Esta decisão não foi bem digerida por Guido de Lusignan que se sentia excluído do trono. Ainda em 1183, Balduíno, devido ao seu estado deteriorante, não consegue evitar que Saladino se apodere finalmente de Alepo, o que permitirá a este último tornar-se senhor indiscutível da Síria.
No dia 16 de Março de 1185, Balduíno, com apenas 24 anos de idade, libertou o último fôlego de sofrimento, o qual se havia intensificado nos últimos 2 anos que o deixaram praticamente imobilizado. A lepra acabou, desde cedo, por anunciar a sua morte a breve-médio prazo, mas a dignidade e a sua bravura mereceram inclusive o respeito do seu rival Saladino. Balduíno IV nunca havia utilizado a sua doença para fugir às responsabilidades enquanto soberano, nem mesmo quando já não dispunha de energias... O seu corpo seria sepultado na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém.
O seu falecimento gerou, a breve prazo, graves problemas de sucessão. A ainda criança Balduíno V, oficialmente já co-rei desde 1183 (embora com o apoio dum regente), falece em 1186 com apenas 9 anos de idade. É sucedido por Guido de Lusignan (ou Guy de Lusignan), um rei sem visão estratégica, que ainda não soube impor a sua autoridade sobre o súbdito Reinaldo de Chatillon, o qual se dedicou a vários actos de pirataria contra caravanas muçulmanas, principal motivo que originou a quebra das tréguas firmadas recentemente entre cristãos e muçulmanos, e uma nova invasão por parte de Saladino em 1187, esta totalmente bem sucedida.
Os derradeiros anos antes da Batalha de Hattin e da consequente queda da Cidade Santa, testemunharão no lado cristão, como menciona Carlos de Ayala Martínez, "as funestas consequências da luta partidária num contexto da progressiva perda da autoridade do monarca". A arrogância de algumas linhagens nobiliárquicas, obcecadas pelas parcelas e fontes do poder, acabariam por minar as bases de coesão do reino de Jerusalém. 




Imagem nº 5 - Balduíno IV, tal como mais tarde Ricardo Coração de Leão, seriam os únicos reis que conseguiriam enfrentar com mestria e bravura o temível e prestigiante sultão do Egipto - Saladino.
Retirada de: http://king-baldwin.livejournal.com/, (artista - HAL).




Imagem nº 6 - No filme "Kingdom of the Heaven", procurou recriar-se o vulto do rei leproso aquando do seu sepultamento.




Referências Consultadas:


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Descobertas arqueológicas prometem mudar radicalmente a história dos Açores


Os potenciais achados pré-portugueses no Arquipélago


"Em certo tempo, o Infante D. Henrique, desejando descobrir logares desconhecidos no Oceano occidental, com o intuito de reconhecer se existiam Ilhas ou Terras firmes além das descriptas por Ptolomeu, mandou caravelas em busca destas terras. Partiram e viram terra ao ocidente tresentas léguas além do cabo - Finis Terrae - e, vendo que eram Ilhas, entraram na primeira, acharam-na desabitada e andando encontraram muitos muitos milhafres ou açores, e outras aves; e passando à segunda, que hoje se chama a Ilha de S. Miguel, que igualmente estava desabitada, acharam muitas aves e milhafres, assim como abundantes nascentes d'agus quentes sulfureas. D'ali viram outra ilha que na actualidade se chama Ilha Terceira, a qual à semelhança da ilha de S. Miguel, estava cheia d'arvores, aves e muitos açores"

Cronista Diogo Gomes de Sintra, 1460



No decurso das décadas de 1420 ou 1430, atribuiu-se a descoberta das primeiras ilhas açorianas a Diogo Silves e Gonçalo Velho respectivamente, embora subsistam dúvidas quanto à real primazia do descobrimento português. É ainda de ressalvar que este processo só terminaria na década de 1450, com a inclusão das ilhas mais ocidentais e consequentemente distanciadas - Flores e Corvo. Todavia, em relação ao estado do arquipélago que haviam descoberto parece haver unanimidade - o cenário totalmente desertificado saltou à vista dos exploradores. Não havia registos da presença humana naquelas ilhas, excepto os açores e milhafres que por aí nidificavam. Por isso, não há dúvidas que quando os portugueses lá chegaram durante a primeira metade do século XV, não haveria qualquer povoação a residir naquelas ilhas.
Todavia, desde cedo, caiu-se na tentação de afirmar que a história dos Açores só começou realmente com a chegada dos portugueses ao arquipélago, algures perdido e dispersado até então no seio do enorme Oceano Atlântico. Contudo, as descobertas recentes remetem-nos para uma ocupação anterior à chegada dos portugueses, colocando assim em causa a visão tradicional. 
Naturalmente, a descoberta duma pia esculpida numa rocha na Grota do Medo (Ilha Terceira), já devidamente analisada por um laboratório norte-americano, promete gerar intensos debates sobre esta problemática nos próximos tempos. De acordo com a datação proposta, a dita peça arqueológica contaria com cerca de 950 anos de existência e remontaria, pelo menos, ao século XI (senão mesmo até antes). Félix Rodrigues, Professor da Universidade dos Açores, já não duvida da importância deste achado, classificando-o como prova duma ocupação pré-portuguesa, salientando ainda que a pia jamais poderia ter sido ali colocada, pois estava presa ao aglomerado rochoso.
Curiosamente, e como nota adicional, seria interessante relembrar que os primeiros (ou primitivos) lavabos conhecidos na História Mundial remontam à Idade Antiga com a sua utilização por parte de cartagineses, romanos e gregos. Na Idade Média, acentuou-se a sua utilização nos lugares de culto cristãos. Só a partir do século XV, é que as pias começam a ser adaptadas frequentemente como peças de mobiliário doméstico.



Félix Rodrigues diz que a estrutura pode até ter mais do que 950 anos, porque "a amostra representa apenas a data em que a pia foi fraturada e não forçosamente a data em que a pia foi construída"

Imagem nº 1 - Na Grota do Medo, apurou-se a descoberta da mencionada pia esculpida em rocha. Félix Rodrigues acredita que poderemos estar perante um complexo megalítico.



Mas esta não foi a primeira nem a única polémica sobre a antiguidade histórica dos Açores. No século XVI, o cronista Damião de Góis descreve a existência duma antiga estátua equestre na ilha do Corvo, a noroeste do cume do vulcão:

"Uma estátua de pedra posta sobre uma laje, que era um homem em cima de um cavalo em osso, e o homem vestido de uma capa de bedém, sem barrete, com uma mão na crina do cavalo, e o braço direito estendido, e os dedos da mão encolhidos, salvo o dedo segundo, a que os latinos chamam índex, com que apontava contra o poente.
Esta imagem, que toda saía maciça da mesma laje, mandou el-rei D. Manuel tirar pelo natural, por um seu criado debuxador, que se chamava Duarte D'Armas; e depois que viu o debuxo, mandou um homem engenhoso, natural da cidade do Porto, que andara muito em França e Itália, que fosse a esta ilha, para, com aparelhos que levou, tirar aquela antigualha; o qual quando dela tornou, disse a el-rei que a achara desfeita de uma tormenta, que fizera o inverno passado. Mas a verdade foi que a quebraram por mau azo; e trouxeram pedaços dela, a saber: a cabeça do homem e o braço direito com a mão, e uma perna, e a cabeça do cavalo, e uma mão que estava dobrada, e levantada, e um pedaço de uma perna; o que tudo esteve na guarda-roupa de el-rei alguns dias, mas o que depois se fez destas coisas, ou onde puseram, eu não o pude saber"

Este relato concreto (e já posterior à descoberta do arquipélago) de Damião de Góis nunca foi oficialmente creditado pela historiografia nacional, o que levantou dúvidas quanto à sua veracidade. Mas dadas as mais recentes prospecções arqueológicas, sentimo-nos na obrigação moral de incluir este testemunho na compilação de todos os indícios sobre a presença humana nos Açores antes da chegada dos navegantes portugueses nas décadas iniciais do século XV.



Imagem nº 2 - Aquando da sua descoberta, a ilha do Corvo teria possivelmente uma sinistra estátua equestre, segundo nos conta Damião de Góis. Esta eventualidade nunca foi corroborada até então pela historiografia nacional.


Mas outros indícios surgiram entretanto - a alegada descoberta em 1749 de moedas fenícias ou cartaginesas na Ilha do Corvo que remontariam talvez ao século IV a. C., também não constituíram, na altura, motivo suficiente para se reconsiderar uma nova teoria sobre uma eventual pré-ocupação.



Moedas fenícias - Açores
Imagem nº 3 - Mero exemplo duma Moeda presumivelmente fenícia (frente e verso), talvez aparentando semelhanças com aquelas que terão sido encontradas no século XVIII na ilha do Corvo.


Também inscrições detectadas numa falésia localizada nas Quatro Ribeiras (Ilha Terceira) motivaram sérias discussões, pois poderão tratar-se de escritos rupestres da Idade Antiga (de novo surge a possibilidade de estarmos a referir-mo-nos a fenícios ou cartagineses).
Ainda recentemente, estiveram igualmente em voga as 140 pirâmides de Madalena do Pico, sendo que se recolheram nas sondagens arqueológicas artefactos aparentemente antigos: anzóis, pontas de metal, ossos, conchas, pesos de redes de pesca, utensílios feitos de basalto, carvões e fragmentos de peças de cerâmica. Todas as pirâmides foram construídas a partir de pedras basálticas de origem vulcânica. Algumas chegam a ter 13 metros de altura e detêm inclusive câmaras no seu interior. O arqueólogo Nuno Ribeiro acredita que estas estruturas poderiam obedecer às mesmas orientações de outras pirâmides, com eventuais motivações astronómicas e disposição de rituais funerários.


Uma das 140 pirâmides estudadas pelos arqueólogos na Madalena do Pico. Foram todas construídas em pedras basálticas de origem vulcânica conhecidas por biscoitos. Algumas chegam a ter 13 metros de altura (o equivalente a um prédio de habitação de quatro andares) e câmaras no seu interior.

Imagem nº 4 - As 140 pirâmides de Madalena do Pico (Açores) continuam a originar várias dores de cabeça aos investigadores. Tradicionalmente datadas entre os séculos XVII-XIX com fins de limpeza de terrenos agrícolas, as sondagens arqueológicas indiciam agora uma maior antiguidade e um funcionalismo distinto daquelas. 
Direitos da Foto: Associação Portuguesa de Investigação Arqueológica (APIA)



É evidente que no século XIV a potencial existência destas terras começou a ser veiculada a partir de várias lendas que circularam durante o período medieval: até houve portulanos, atlas e cartas desenvolvidos a partir das navegações encetadas por genoveses, florentinos e venezianos (entre outros), os quais começavam a colaborar para um melhor conhecimento da cartografia, ainda que deficiente e imprecisa, do mundo em que estavam então contidos.
As descobertas sobre este enigma poderão não ficar por aqui, e novidades sobre novas peças ancestrais poderão ser conhecidas nos próximos tempos.



Conclusões a retirar


Não é logicamente uma missão acessível procurar teorizar sobre as origens e a configuração deste pré-povoamento, dada a localização dos Açores, arquipélago praticamente situado no meio do extenso Oceano Atlântico. Como é que seria possível a existência duma civilização anterior à chegada dos portugueses, se os meios navais antigos e medievais utilizados, salvo raras excepções (que destacaremos já de seguida), não eram ainda suficientes para encetar uma aventura desta dimensão ou envergadura rumo ao lendário desconhecido?
Propomo-nos a reflectir e a formular potenciais cenários, mas é evidente, que estaremos sempre a entrar num campo essencialmente especulativo.
Dentro deste contexto, Fenícios e Cartagineses, civilizações com tremenda vocação comercial, evidenciaram-se no Mar Mediterrâneo e fundaram as suas colónias na Idade Antiga, e até é possível que se tivessem interessado pela exploração do Oceano Atlântico. Se chegaram efectivamente aos Açores, numa expedição isolada, é claramente discutível se aí teriam permanecido por muito tempo. Talvez se tivesse tratado duma colónia temporária que seria abandonada dada a elevada e inglória distância (e os riscos daí adjacentes) a que a mesma se encontrava das bases civilizacionais. Além disso, e apesar de alguma potencialidade ao nível da produção cerealífera e das plantas tintureiras (como mais tarde, os portugueses testemunhariam) este arquipélago que consistia em pouco mais do que um punhado de pequenas ilhas talvez não fosse bastante apetecível ou rentável do ponto de vista económico para justificar uma exploração contínua de extremo risco e tremendos custos.
Também há-que considerar a hipótese da pirataria (encetada por embarcações cristãs e muçulmanas), visto que há a possibilidade de barcos terem encalhado ou aportado nos Açores devido aos ventos e tempestades que se faziam sentir no oceano, deixando assim as suas ligeiras marcas naquele território.
Por fim, mais duas teses que podem explanar uma eventual ocupação pré-portuguesa. Os normandos ou vikings demonstraram uma actividade intensa na Alta Idade Média, alcançando o seu clímax por volta do ano 1000, quando chegaram ao continente americano, mais concretamente, a território que pertence ao actual Canadá, onde fundaram 3 colónias. Com o seu desenvolvido barco - o dracar, os vikings explorariam de forma ímpar vários pontos do mundo, demonstrando um espírito aventureiro único. Se chegaram aos Açores, não o sabemos, mas se a pia, citada em cima, remontar factualmente ao século XI, então foi esculpida ou, pelo menos, utilizada poucas décadas depois da chegada viking ao continente americano. Também é sobejamente conhecida a arte viking em monumentos megalíticos. Tal como nas colónias criadas no Canadá, e caso tivessem realmente estado nos Açores, não é de estranhar igualmente uma presença, apenas temporária, em espaços longínquos, cujo controlo à distância era quase impossível de manter.
A última, mas não menos importante hipótese poderá remeter-nos para um estabelecimento tribal, à semelhança do que acontecera com o arquipélago das Canárias, sendo que aquele povoamento primitivo "açoriano", a ter realmente existido, deverá ter sido extinto talvez alguns séculos antes da chegada dos portugueses. Como se trataria porventura duma fixação indígena selvática e não muito desenvolvida, entende-se que, ao contrário de outras grandes civilizações, não tivessem deixado sequer ruínas de importantes edifícios. Porém, esta teoria pode ter um entrave que necessita de ser explicado - como é que os indígenas alcançariam este arquipélago localizado no meio do Oceano Atlântico? As suas modestas canoas não seriam, a nosso ver, suficientes para percorrer mais de 2 000 km no seio dum oceano incerto e fustigante. 
Neste momento, é certo que as investigações prosseguem, e da nossa parte, prometeremos continuar a dedicar muita atenção a este tema. Todavia, algo já poderemos concluir, a presença humana no arquipélago é anterior à chegada dos portugueses, mas essa porção remota da história açoriana ainda contém diversas pontas soltas, e por isso, não podemos extrair conclusões exactas sobre como se revestiu essa ocupação pré-portuguesa, pelo que tudo ainda é muito vago, apesar das teorias que procuramos lançar neste artigo.



Imagem nº 5 - O arquipélago dos Açores oculta, no seu interior e ao longo da sua paisagem, vários mistérios sobre a sua história. Afinal, os açores e demais aves não terão sido os únicos "habitantes" daquelas ilhas ao longo dos tempos.



Referências Consultadas:

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

William Marshal, Conde de Pembroke e Cavaleiro por excelência


Contexto

A história de William Marshall é digna de ser recordada no período medieval. Foi um cavaleiro que deu provas da sua categoria e lealdade nos mais diversos palcos a que foi submetido. Apresentou provas da sua habilidade militar em diversos torneios nobiliárquicos, onde o risco de morte tinha de ser levado em conta. No plano político, serviria 4 ou 5 reis ingleses, o que elevou claramente o seu prestígio. O seu contributo foi essencial numa época em que a instabilidade e a insurreição interna no seio do reino inglês constituíram uma realidade muito frequente.



O seu início de vida atribulado e a aventura pela Normandia


William nascia em 1147 e era o 4º filho de John FitzGilbert, um marechal da corte do rei Estêvão. Ao contrário do que se possa julgar, e apesar da sua indiscutível ascendência nobre, o nosso biografado não advinha dum meio excentricamente abastado, visto que a influência política e o património possuído estavam longe de ser gigantescos ou impressionantes. Alegadamente este terá sido o motivo pelo qual a sua família, e nomeadamente o seu pai, se rebelaram contra o rei Estêvão, naquele período de guerra civil e anarquia, tomando assim o partido de Matilde na disputa pelo trono inglês. Estêvão reagiu energicamente, colocando John numa situação delicada, sendo que este enviou o seu filho (na altura com 5 anos!) como refém de forma a conseguir uma trégua com o rei inglês contestado. O acordo estipulado visaria a rendição do pequeno castelo de Newbury por parte de John FitzGilbert que assim o teria de entregar ao soberano inglês, em troca da libertação posterior do seu filho. Mas o pai de William rapidamente rompeu o acordo, referindo presumivelmente que não teria problemas em fazer mais e melhores filhos. Esta postura irreflectida colocou em causa a vida de William, mas o rei Estêvão decidiu poupar a criança porque parecia admirar a sua inocência.
Com 12 anos contados em 1159, e já em total liberdade, rumará à Normandia (no actual Norte de França, embora no final do século XI e no decurso do século XII tivessem existido vários momentos em que fora considerada um feudo da Inglaterra), mais concretamente para casa do primo da sua mãe - William de Tancarville, mordomo da Normandia. Aí começa a envolver-se em torneios com outros cavaleiros. É evidente que a brutalidade poderia deixar os participantes em mau estado ou até levar à sua morte, mas foi através desta experiência que o jovem William começou a preparar-se para as acções intensas e desgastantes de combate. Assimilou depressa a arte da guerra, rubricando performances invejáveis em vários torneios então realizados. Assim, ele juntava algum dinheiro e alcançava o respeito da comunidade, e logo praticando aquilo que ele mais apreciava. Todavia, William sofreria uma grande decepção que o obrigaria a deixar, pelo menos por agora, esta vida que provavelmente ele tão adorava, para se mostrar finalmente ao mundo. O assassinato do seu tio, o conde Patrick de Salisbury (ao qual também havia servido), que ocorreria em França em 1168, no âmbito duma rebelião da família Lusignan, deixou William revoltado que, em vão, tentou protegê-lo por via do combate, mas acabou ferido e capturado. Todavia, como havia sido partidário da rainha Leonor da Aquitânia (além desta ter ficado impressionada com a sua bravura e lealdade), teve a sorte daquela prestigiada senhora lhe pagar o seu resgate, abrindo-lhe automaticamente as portas de acesso à corte e comitiva reais. O próximo capítulo seria passado ao serviço do rei Henrique II de Inglaterra, ou melhor, ser-lhe-ia atribuída a missão concreta e prioritária de zelar pelo jovem filho deste, também ele designado de Henrique.




Imagem nº 1 - William Marshal participou em vários torneios na Normandia.
Fonte original da imagem(?) - Georges Duby. Guillaume le Maréchal ou le meilleur chevalier du monde, chapitre IV, in Féodalité. Gallimard, 1996. Collection Quarto. Première publication: 1984. Sébastien Nadot, Rompez Les lances ! Chevaliers et tournois au Moyen Âge, éditions AUTREMENT, Paris




Ao serviço de Henrique II e do seu filho Henrique, o Jovem


Em 1170, Henrique II coroou o seu filho Henrique como rei. Este último, dada a sua juventude, privilegiava antes os torneios em detrimento das questões políticas. Despendia muito dinheiro para encontrar o caminho para a glória. E assim sendo, partilhava da mesma preferência já evidenciada por William, sendo que este demonstrou a disposição de conceder-lhe os ensinamentos da cavalaria medieval. Desenvolveu-se uma grande relação de respeito e proximidade entre os dois, sendo que o jovem rei Henrique pediu a William que o ordenasse cavaleiro. Todavia, as lutas pelo poder entre o rei Henrique II e o já coroado príncipe Henrique colocaram William numa situação ingrata, pois devia máxima lealdade a ambos. Nesta altura, o nosso biografado não evitará desconfianças e inimigos na corte. Por conseguinte, chegaria a ser acusado de ter dormido com a mulher de Henrique, o jovem rei, além de outros o criticarem por se concentrar mais na participação nos reputados torneios do que no dever de proteger o dito príncipe. Ele refutou prontamente tais insinuações ou acusações, mas em vão, pois seria afastado da corte.
Sem servir agora a ninguém, William voltou a frequentar torneios reputados e recebeu inclusive propostas lucrativas da parte de homens poderosos como o Conde da Flandres e o Duque da Burgúndia. Devido ao facto de ser um dos melhores do mundo nesses torneios cavaleirescos, ninguém ficava indiferente perante a habilidade e versatilidade do cavaleiro. Todavia, chegariam em breve novas notícias da corte inglesa.
Em 1183, sucede-se uma nova querela entre Henrique II e o seu filho, e William volta a ter uma oportunidade de reingressar nos assuntos da corte real. Paradoxalmente, no meio desta escaramuça, o cavaleiro solicitou a Henrique II que lhe cedesse permissão para servir o seu filho (talvez por ter mantido com este uma ligação mais próxima) contra ele, o que até foi curiosamente autorizado pelo rei, até porque este acreditava que William poderia ser uma influência positiva junto do seu filho, podendo até demovê-lo da revolta que estava a encetar. Contudo, a história seguiria um rumo diferente daquilo que muitos na altura previam. Henrique, o Jovem, com 28 anos, faleceria devido a doença (talvez disenteria), ainda no ano de 1183, causando um grande desgosto a seu pai Henrique II e ao seu leal servidor e amigo William.





Imagem nº 2 - William Marshal seria um exímio cavaleiro que deixaria a sua marca no seu tempo.




A Peregrinação de William à Terra Santa


No leito de morte, o príncipe Henrique terá pedido a William que concretizasse o voto de cruzada que havia feito, objectivo que não poderia agora cumprir dado o seu estado de desaparecimento iminente. Além disso, requereu ao seu mestre e, em simultâneo, seu leal servidor, a necessidade de levar o seu manto (confeccionado com uma cruz de cruzado que teria sido entregue ao jovem rei para o cumprimento do voto que afinal o destino não lhe permitira viabilizar) até ao Santo Sepulcro em Jerusalém.
Em nome da honra e pelo zelo de salvação por Henrique, William partiu em cruzada para a Terra Santa, onde de acordo, com algumas fontes, terá permanecido por dois anos (1183-1185, 1184-1186 ou 1185-1187?). Infelizmente, os detalhes desta aventura (financiada por Henrique II, pai do jovem rei falecido), talvez mais pessoal do que uma jornada com finalidade colectiva, repousam nas páginas perdidas da História, pois infelizmente, muito pouco ou mesmo nada se sabe sobre esta sua viagem. É provável que tenha visitado Jerusalém e os lugares santos, onde pediria pelo acolhimento divino da alma do jovem Henrique, além de ter evidenciado alguma aproximação à causa dos templários, não estando excluída a possibilidade de ter colaborado com aquela famosa organização militar de cavaleiros. O que podemos adiantar é que terá regressado à Europa nas vésperas da Batalha de Hattin, pelo que os anos de 1186 ou até de 1187 se afiguram como os mais prováveis para a sua viagem de retorno a Inglaterra. Se consideramos todo este raciocínio como verdadeiro, então William havia exercido a sua vocação guerreira no decurso dos reinados de Balduíno IV (o rei leproso) e Balduíno V. A morte deste último em 1186 abriu as portas a Guido (ou Guy) de Lusignan, casado com Sibilla, que assumiria o trono da Cidade Santa, com resultados trágicos no plano político. E esta pode ter sido uma das razões possivelmente invocadas para que William tivesse regressado. Aliás, tinha sido a casa de Lusignan, com o envolvimento do mencionado Guido e de seus irmãos, que havia sido directamente responsável pela rebelião, emboscada e consequente morte do seu tio em França, episódio que, ocorrido na sua juventude, o marcaria negativamente para sempre. Assim sendo, é possível que William Marshal não se revisse no novo responsável político de Jerusalém, o qual estava conectado então com o assassinato do seu tio. Todavia, é notório que nos escasseiam informações exactas que permitam confirmar esta eventualidade. Aliás, a passagem de William pelo Oriente é a parte menos conhecida da sua vida, pelo que é difícil caracterizar a sua actuação nesse palco de guerra tremendamente exigente. Mesmo assim, não subsistem grandes dúvidas quanto à sua participação nesta aventura, visto que algumas técnicas de construção praticamente exclusivas das fortificações levantinas seriam posteriormente aplicadas no Castelo de Pembroke, o qual seria, mais tarde, confiado a William Marshal.





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Imagem nº 3 - William Marshal teria possivelmente colaborado com os templários na Terra Santa.
Encontrado em jeckham.deviantart.com



O regresso e os serviços prestados a Henrique II, Ricardo I, João Sem Terra e Henrique III


De regresso a Inglaterra, Henrique II recebeu-o com respeito e gratidão, promovendo-o a conselheiro e abrindo-lhe caminho para um bom casamento que seria contraído com Isabel de Clare, herdeira de vastas terras no sul de Gales e Irlanda. Com este matrimónio (o qual seria posteriormente confirmado e viabilizado pelo rei sucessor - Ricardo Coração de Leão), William acabaria por se tornar Conde de Pembroke. Todo este cenário permitiu-lhe um enriquecimento frenético. Ao contrário de muitos dos casamentos medievais, os quais eram arranjados/combinados, William e Isabel de Clare mantiveram uma séria relação de amor até às suas mortes.
Entretanto, novas brigas rebentavam entre o rei e os seus filhos. Agora era Ricardo (mais tarde ganharia o epíteto de Coração de Leão) que encabeçava a revolta. Numa das vezes, William teve de fazer mira contra o filho do rei (acertando no seu cavalo), de forma a garantir que Henrique II conseguisse retirar-se em segurança. É claro que esta acção de William poderia, no futuro, custar-lhe bastante caro, pois Henrique II não iria durar muito mais tempo, e Ricardo seria o futuro rei de Inglaterra, o qual poderia procurar ajustar contas por causa deste incidente.
Em 1189, o rei Henrique II falece, e alguns dos amigos de William começam a temer pela vida dele, mas Ricardo, apesar de o ter confrontado com aquele momento, respeitava bastante a lealdade (e William tinha tomado aquela atitude apenas para proteger a vida de Henrique II no decurso duma rebelião, além de alegar que tinha acertado propositadamente no cavalo e não directamente em Ricardo), e assim sendo, não hesitou em depositar confiança em William que o ajudaria agora nos assuntos do reino. Aliás, ele integraria o recém-criado conselho de regência em Inglaterra quando o rei Ricardo Coração de Leão partira, em 1190, para o Levante, no âmbito da Terceira Cruzada (1189-1192). Seria ainda responsável pelo pagamento do resgate quando o soberano inglês fora detido na Áustria/Império Sacro-Romano Germânico (já na viagem de regresso), demonstrando assim a sua inequívoca lealdade. Entretanto, em 1199, Ricardo é abatido por uma flecha enquanto cercava um castelo inimigo em Châlus (França).
Sucede-lhe seu irmão (e também filho do já referido Henrique II), João Sem Terra, cujo reinado se pautou por vários e intermináveis falhanços. João demonstrava uma clara hostilidade e desconfiança para com os barões do reino, incluindo William, o qual sentiu desconforto pelo constante isolamento e até paranóia do  novo rei inglês. O nosso conceituado cavaleiro e conde de Pembroke foi inacreditavelmente quase visto como um traidor. Em jeito de consequência de todo este braço de ferro, rebenta em 1211 uma grave crise entre o próprio rei e os barões, e William, talvez esquecendo todas as acusações injustas que lhe haviam sido feitas e pelo dever de lealdade máxima ao rei, foi um dos poucos nobres que veio em auxílio de João, de forma a encontrar uma solução para o problema. No ano de 1215, o rei inglês assina contra a sua vontade a Magna Carta, documento histórico e inédito que faria com que o soberano deixasse de estar acima da lei, mas sim sujeita a ela. Mas João quis depois anular este compromisso, causando uma rebelião civil (1215-1257). Os rebeldes chegaram ao ponto de convidar o príncipe Luís de França (futuro Luís VIII) para a sua causa. Pelo meio, em Outubro de 1216, João falece num estado de descrédito total, embora algumas das suas últimas palavras tivessem sido dirigidas, segundo se consta, a William, elogiando a serventia sincera deste nobre. Afinal e apesar deste cavaleiro não ter apreciado a forma antipática e até desrespeitosa como João se posicionava diante dos outros membros da alta nobreza, a verdade é que William procurou ser neutro, não desejando integrar ou estimular qualquer movimento revoltoso. A sua postura diplomática foi respeitada por ambos os lados do conflito e o seu prestígio, na altura, já era enorme. Por isso mesmo, e após a morte de João Sem Terra, foi-lhe confiada a educação do filho deste último - Henrique, na altura com 9 anos. Seria o futuro Henrique III.
A situação em Inglaterra era caótica no ano de 1217. As forças rebeldes apoiadas pelo futuro rei de França (Luís VIII) controlavam uma considerável parte do reino. E é aqui que o papel de William, já na casa dos 70 anos, será vital, tanto no plano diplomático como militar. Devido ao seu comportamento e gestos cavaleirescos, conseguirá atrair o apoio de barões neutros e até convencer alguns dos nobres rebeldes a aderir à defesa do reino contra uma potencial e atormentadora invasão francesa de grande escala. Mas a sua glória militar ficaria definitivamente reservada para a batalha de Lincoln (20 de Maio de 1217), onde com a sua idade avançada, liderou a carga contra as forças francesas que procuravam sitiar o castelo local, impondo-lhes uma grande derrota. Esta sua vitória representou um claro rombo nas intenções francesas, cujo cenário de invasão terminaria com derrotas a nível naval ainda nesse mesmo ano, nomeadamente nas batalhas Batalha de Dover e de Sandwich. Foi firmado posteriormente um tratado de paz em que William demonstrara o seu lado estadista, sendo mesmo algo generoso nos termos fixados em relação a Luís e aos rebeldes que o apoiavam. Nestes dois ou três anos exigentes e decisivos de regência, o reputado barão reassumiria ainda os compromissos teóricos da Magna Carta.
A 24 de Maio de 1219, William fecharia os olhos para a eternidade em Caversham, sendo que antes de perecer tomaria o voto de cavaleiro templário. Antes de falecer, terá relembrado no seu leito de morte que havia vencido, pelo menos, 500 cavaleiros em todos os torneios que havia participado, estatística curiosa que o tornava seguramente num verdadeiro e incontestável campeão.
É consensual que o percurso de William Marshal fora excepcional, equiparando-o a um dos melhores cavaleiros de sempre da Idade Média. A sua lealdade poderá ter sido decisiva em variadas situações (por exemplo: a sua acção foi decisiva de forma a que o rei João não fosse destronado). Após a sua passagem pela Normandia, ele serviria as casas de Henrique II, Henrique - o Jovem, Ricardo Coração de Leão, João Sem Terra e Henrique III. Ele demonstrara sensatez e inteligência nos mais diversos palcos onde fora protagonista, e isso seria fundamental para a sua sobrevivência no restrito círculo cortesão, onde convivera com reis de péssimo temperamento, e onde a intriga, a inveja e as desconfianças de potenciais traições eram bastante frequentes.





Imagem nº 4 - A efígie de William Marshal na Igreja do Templo (Londres). 




Imagem nº 5 - Túmulos (?) de quatro membros da Família Marshal na Igreja do Templo (Londres). Ainda hoje se discute se realmente por debaixo das efígies não estariam os restos mortais das vítimas retratadas. Por isso, não podemos apurar com certeza se estamos perante 4 enterramentos, ou se apenas contemplamos meras efígies com carácter meramente simbólico.




Referências Consultadas: