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domingo, 4 de outubro de 2020

Justas e Torneios de Cavaleiros na Idade Média


Origens e Distinção entre as modalidades


A Idade Média foi marcada naturalmente pelo poderio de classes privilegiadas tais como a nobreza e o clero, no âmbito de uma realidade social estratificada e desigualitária. A guerra estava bem presente no quotidiano, e desde cedo, haveria também lugar para o confronto directo entre cavaleiros, fosse no palco de batalha ou nas competições que, por vezes, se desenrolavam.
Efectivamente, a literatura épica e cortesã, através das canções de gesta, fará eco das proezas alcançadas por cavaleiros em torneios e justas, iniciativas lúdicas e desportivas daquele tempo. 
Os primeiros torneios medievais terão ocorrido em inícios do século XII, tendo a tradição nascido em França, de acordo com Manuel de Sousa, autor da obra “Livro de Cavalaria”. Este investigador descarta a possibilidade das origens serem mais antigas até porque algumas das manifestações guerreiras anteriores não eram mais do que espectáculos equiparados às danças guerreiras neozelandesas. 
Em Inglaterra, as primeiras competições terão lugar no reinado conturbado de Estevão (1135-1154), embora a sua génese tivesse sido importada através das elites aristocráticas da França e da Normandia. Aliás, houve cavaleiros normandos que trariam consigo até Inglaterra algumas técnicas adoptadas nas provas então realizadas.
Em Portugal, tivemos o célebre Torneio de Arcos de Valdevez em 1140, quando D. Afonso Henriques e D. Afonso VII de Leão e Castela, então em fase de guerra, escolheriam os seus melhores cavaleiros para se defrontarem, de forma a evitar uma batalha campal, a qual seria muito mais sangrenta e violenta. Nesse torneio, os portugueses levariam a melhor e muitos acreditam que este torneio viria a ser um passo fundamental para o reconhecimento das suas aspirações à independência nacional, oficializada em 1143 com o Tratado de Zamora.
Posteriormente, D. Afonso V (1438-1481) chegou a realizar “justas reais” na rua Nova (Lisboa), aquando do casamento da infanta D. Leonor, sendo que o seu irmão D. Fernando se evidenciaria como campeão. Esta era uma forma de os cavaleiros se prepararem igualmente para futuras batalhas que, no caso português, estalavam naquela época no Norte de África, em torno da disputa das praças marroquinas. Refira-se que era ainda algo comum decorrerem justas e torneios no âmbito de casamentos régios e celebrações de bodas inerentes. 
No entanto, é necessário saber distinguir torneios de justas, embora ambas as competições pudessem decorrer nas mesmas concentrações/assembleias.
Os torneios colocavam frente-a-frente dois campos opostos (ou duas formações), onde cavaleiros, peões, escudeiros, arqueiros e jovens se enfrentariam. A igualdade numérica entre as forças envolvidas nem sempre era uma regra absoluta. O palco da “batalha” não assumia qualquer delimitação, podendo abranger campos, pastos, bosques, aldeias ou vilas. Os combates assumiriam uma dimensão colectiva, ganhando os esquadrões que apresentassem a melhor coesão táctica. Por outras palavras, e conforme sublinha o historiador Robert Clephan, estes torneios eram “batalhas em miniatura”, e em que o factor surpresa estava bem presente porque o desenrolar das escaramuças poderia ser bastante imprevisível. Nestes torneios, poderiam ser usados machados, espadas, lanças, adagas, maças de ferro, etc.  Nalguns casos, cada equipa poderia ser constituída por 200 cavaleiros, e poderia haver combates entre formações de nacionalidades distintas (por exemplo: corpo de franceses contra contingente de ingleses).
Por sua vez, as justas envolveriam um confronto mais individual, colocando frente-a-frente dois cavaleiros munidos de lança que chocariam entre si num ponto central de enfrentamento. Havia uma separação de madeira que protegeria os cavaleiros de uma potencial colisão total entre os seus cavalos. 
A entrada de cada cavaleiro sonante seria anunciada previamente por uma trombeta, sendo este seguido pelos seus escudeiros. Havia igualmente alguma música que animava os intervalos. 
Durante o confronto, estariam em jogo inúmeras fortunas de dinheiro (apostas/ resgates/prémios para os vencedores), mas igualmente as vidas dos participantes porque a lança poderia trespassar a armadura ou provocar a queda fatal de qualquer competidor. 
Como já disséramos, e apesar da grande difusão em França, as provas chegariam a realizar-se também em Inglaterra, quando não existiam éditos reais a proibi-las expressamente. Aí chegou a praticar-se o jogo ou mesa da “Távola Redonda”, inspirando-se nas fábulas do lendário Rei Artur visto como fundador mítico da cavalaria medieval inglesa. De acordo com alguns cronistas, nomeadamente Matthew Paris, este torneio seria diferente dos demais, assumindo uma natureza específica e que ainda hoje é motivo de debate entre os historiadores. 





Imagem nº 1 - As competições de lutas medievais tiveram a sua origem na França, mas conheceriam igualmente manifestações noutros reinos. Na imagem, um cavaleiro se prepara com a sua lança para uma justa, esperando encontrar do outro lado um oponente em condições similares.
Retirada de: https://www.thegreatcoursesdaily.com/tournaments-of-the-medieval-knights/, (Direitos: strannik72/Shutterstock)





Imagem nº 2 - Anúncio e apresentação inicial dos participantes nos torneios. Aqui visualizamos a  formação de duas equipas de cavaleiros que lutariam entre si.
Miniatura no "Livre des tournois of Rene d'Anjou" (1465), Bibliothèque Nationale de France. 
Foto por Prisma/UIG/Getty Images in Revista Forbes).




Treinos Preparativos dos Cavaleiros


Como já havia afirmado o rei português D. Duarte (governou entre 1433-1438), dominar bem um cavalo era o primeiro passo para realizar grandes façanhas no palco de combate. O soberano chegou a redigir o “Livro da Ensinança de Bem Cavalgar a Toda a Sela” que, embora inacabado, aconselharia os cavaleiros a estarem firmes sobre o cavalo (sem demonstrar qualquer receio nos cavalgares belicistas), instruindo ainda sobre a postura ideal sobre a sela e os movimentos das pernas. D. Duarte escreveu igualmente sobre as maneiras de usar ambas as mãos: a esquerda, para trazer a rédea e governar o cavalo; a direita, para trazer as armas e lutar. O cavaleiro deveria ainda conhecer bem o comportamento do seu animal, antecipando-se assim a eventuais movimentos bruscos ou impulsivos que poderiam comprometer a sua participação. A equitação teria que ser uma prática frequente da parte do cavaleiro para que este pudesse amadurecer as suas capacidades tendo em vista futuras batalhas ou torneios.
Além de domar o respectivo cavalo, o cavaleiro deveria saber manejar lanças em riste e espadas, conciliando em simultâneo as técnicas de carga diante de eventuais adversários. A destreza e o vigor tinham que ser características essenciais de um competidor de elite. 
Por outro lado, a feitura do armamento defensivo era fundamental para salvaguardar a sua integridade física e, muitas vezes, as suas vidas dependiam naturalmente disso, no caso de serem surpreendidos. Por exemplo, houve preocupação para assegurar um fecho cada vez rigoroso do elmo, de modo a proteger com mais eficácia a cabeça do cavaleiro. 
As assembleias guerreiras poderiam durar vários dias. De acordo com o historiador Manuel de Sousa, o primeiro dia seria dedicado aos preparativos e à formação dos grupos, o segundo abrangia já as escaramuças e os desafios que alimentavam os ensejos dos mais jovens, e estas práticas poderiam repetir-se de forma sucessiva por algum tempo. Muitas vezes, os adversários presentes nos torneios colectivos provocavam-se mutuamente com injúrias, gritos e gestos, incitando assim ao combate corpo a corpo. Os cavaleiros, pelo menos, os melhores, teriam que saber gerir a sua componente psicológica para não cometerem qualquer erro crasso ou subestimar um potencial concorrente. 
Ao contrário das justas (mais individuais), os torneios que, então englobavam a formação de equipas, poderiam motivar a realização de assaltos, saídas, emboscadas, ataques frontais, fugas simuladas, etc. Nos torneios, a estratégia e o rigor táctico dos contingentes eram elementos decisivos, embora tal não excluísse a perícia individual que, muitas vezes, poderia ajudar a desequilibrar, tornando-se num detalhe que faria nascer heróis e lendas. 
A participação de cada cavaleiro nestes torneios traria sempre custos avultados, e não só ao nível dos preparativos. Caso fosse capturado nos torneios, teria sempre que pagar um resgate ao cavaleiro sequestrador/captor, tanto pela sua liberdade bem como pela recuperação do seu equipamento e do seu cavalo. 
No entanto, os torneios poderiam trazer fortunas e prestígio aos seus participantes mais bem-sucedidos e claro as suas performances poderiam sempre impressionar príncipes ou altos membros da nobreza (potenciais empregadores) e damas (potenciais esposas) que assistiam, num palanque, enquanto a restante multidão se posicionava no redor. 
No século XIII, teremos inclusivamente uma verdadeira corporação vocacionada para estas competições, os “arautos-de-armas” ou “heraldos”, que se reuniam regularmente para discutir combates, armas, armaduras, escudos e outros usos cavaleirescos, além de deliberar as regras das justas e dos torneios, proclamando e premiando os vencedores e viabilizar a assistência médica, dentro do possível, aos vencidos. 
Além dos combates, haveria ainda espaço para a realização de banquetes e alguma animação, estando bem presentes a dança e a música. 





Imagem nº 3 - Os cavaleiros tinham que se preparar da melhor forma, não só para os torneios, como para as batalhas do futuro.




Ilustres Participantes – Entre a Glória e a Morte

Na sua concepção, os torneios e as justas não se destinavam a provocar a morte propositada dos cavaleiros derrotados. Muitas vezes, tentava-se incutir alguns princípios de ética e de respeito elitista/cavaleiresco. Todavia, a actividade de alto risco e a recorrência evidente de acidentes originaram um número elevado de mortos e feridos, sendo que tais ocorrências eram, por vezes, repudiadas pelos combatentes de ambos os grupos que não pretendiam qualquer desenlace fatal. 
Na verdade, havia cavaleiros que eram mais comedidos na forma como manejavam a lança e a espada com o intuito de não desferir golpes mortais nos seus oponentes, mas também havia aqueles que entravam “enlouquecidos” e que atacavam de forma desenfreada, não se preocupando sequer com a integridade de quem se atravessasse no seu caminho. 
No século XII, a Igreja procurou censurar tais torneios ou assembleias através dos Concílios de Clermont (1130) e de Latrão II (1139). Aquela alta entidade chegou a negar uma sepultura cristã a quem perecesse nesses enfrentamentos, porque entendia que se tratariam de mortes em vão, mas tal não fez esmorecer as iniciativas desportivas/lúdicas da aristocracia que valorizava o prestígio e a componente financeira associados. Também alguns reis ingleses e franceses chegaram a promover éditos de proibição durante certos períodos. 
No entanto, e com o decurso dos séculos posteriores, os índices de mortalidade diminuíram gradualmente, dado que as armaduras seriam melhoradas, sendo agora permitido o uso de cotas e de couraças reforçadas. Segundo Manuel de Sousa, as armaduras de justa, utilizadas nos séculos XIV e XV, alcançariam uma grossura considerável, pesando agora entre 30 a 40 quilos. Por outro lado, em data desconhecida (mas posterior ao século XIII), seriam adoptadas as “lanças desportivas” em que as pontas seriam protegidas, evitando cenários de perfuração letal. Além disso, os torneios colectivos e as “mêlées” começarão a perder espaço para as justas, envolvendo menos cavaleiros, e por conseguinte, traduzindo-se num número inferior de baixas. 
Ainda assim nas histórias dos torneios e das justas, encontrámos narrativas que glorificavam os feitos de alguns cavaleiros, mas que também relevaram os desfechos trágicos reservados a outros vultos do seu tempo. 
Começando pelos cavaleiros mais bem-sucedidos, podemos considerar o notável percurso de William Marshal (ou em português, “Guilherme Marechal”; 1147-1219), célebre conde de Pembroke que viria a ser braço-direito de reis ingleses. Como os torneios haviam sido banidos em Inglaterra no reinado de Henrique II (1154-1189), ele viria, no decurso da sua juventude, a evidenciar-se em tais competições que decorreriam na França. Dado o facto de ele ter três irmãos mais velhos, já sabia que dificilmente iria herdar alguma fortuna, pelo que teve de construí-la de algum modo. No seu primeiro torneio colectivo em 1167, ele conseguiu capturar três cavaleiros juntamente com as suas armas. Mais tarde, ele viria a fazer um pacto com o cavaleiro flamengo Roger de Gaugi: ambos se entreajudariam para vencer os torneios e capturar o máximo de nobres participantes que, no fim, teriam de pagar um resgate pela sua libertação. Em dez meses, esta dupla teria conseguido fazer 103 cavaleiros prisioneiros, dividindo assim imensas fortunas entre si. 
Os feitos de William Marshal, um dos maiores cavaleiros do seu tempo, conhecido pelas suas habilidades militares e pela sua honra, foram registados pelos cronistas medievais e perduraram nas memórias populares durante séculos. 
Em 1274, o príncipe inglês Eduardo I, depois de regressar da improdutiva Nona Cruzada na Terra Santa, atravessou território francês, tendo sido desafiado pelo conde de Chalôns a participar num torneio. No âmbito de uma “mêlée”, ambos se enfrentariam, secundados pelos seus seguidores. Todavia, o alto e resiliente príncipe Eduardo, que já havia sobrevivido a uma provação na Palestina em que liquidou um membro da Ordem dos Assassinos que havia entrado discretamente nos seus aposentos, levará outra vez a melhor, fazendo o conde francês cair do seu cavalo. No entanto, os cavaleiros franceses ficaram indignados pelo sucedido e demonstraram a sua fúria. Verificou-se mesmo uma pequena batalha com os ingleses a fazerem recurso dos seus arcos. No entanto, o conde francês viria a reconhecer civilizadamente a derrota, rendendo-se no imediato ao rei e restaurando a ordem na competição. 
O Duque Henrique de Breslau (Varsóvia) também se parece ter evidenciado no decurso do século XIII, tendo saído como vitorioso de um torneio que juntou vários participantes. 
No entanto, a glória de uns significava a derrota, e por vezes, a morte de outros.
Em 1186, Godofredo II, Duque da Bretanha e filho do rei Henrique II de Inglaterra, faleceu num torneio alegadamente realizado em Paris (França), quando só tinha 27 anos de idade. 
No ano de 1240, em Neuss (perto de Colónia), seis cavaleiros sucumbiriam durante um torneio. 
Em 1252, o cavaleiro inglês Arnold de Montigney tombaria fatalmente após a sua garganta ter sido cortada pela lança do seu adversário Roger de Lemburn, após uma justa ocorrida nas imediações da abadia de Wallenden. 
Sir William Montague, primeiro conde de Salisbury, faleceria em 1344, não resistindo aos ferimentos sofridos num torneio realizado em Windsor. 
Henrique II de França (1547-1559) viria a morrer numa justa diante de Gabriel de Montgomery, capitão da Guarda Escocesa do Rei Francês. A lança do adversário atravessou a sua viseira e a quebrou em fragmentos, cegando o olho direito e penetrando na sua órbita direita e têmpora. Após 10 dias de profundo sofrimento, o rei francês faleceria. 
Além daqueles que faleciam, é necessário mencionar que outros ficariam acamados ou condicionados para o resto dos seus dias, nunca recuperando verdadeiramente das lesões sofridas.
Devido à violência, estas competições guerreiras acabariam por cair em desuso a partir do século XVII. 
Nos salões palacianos, os jograis cantariam, por várias vezes, as façanhas dos cavaleiros bem-sucedidos e heróis daqueles tempos, mas também lamentarão as tragédias que estiveram no horizonte de outros garbosos participantes. 
De acordo com Mark Cartwright, os torneios daqueles tempos foram a principal expressão dos ideais aristocráticos, como o cavalheirismo e a linhagem nobre, onde as armas (brasões) e a honra das famílias eram colocadas em xeque, as damas eram desejadas e até o orgulho nacional poderia estar em causa".





Imagem nº 4 - O duque Henrique de Breslau (também conhecido como Henrique IV, o Justo que viveu entre 1256 e 1290) recebe uma grinalda de flores após ter sido bem-sucedido num torneio medieval. 
Iluminura retirada do Codex Manesse (inícios do século XIV)





Imagem nº 5 - O rei Henrique II de França é derrubado numa justa quando o seu oponente fez penetrar a lança pela sua viseira. O soberano faleceria 10 dias depois, não resistindo aos ferimentos sofridos.
Retirada de Getty Images (Arquivo)




Nota Adicional I: Além dos escritos de D. Duarte, também René de Anjou, rei de Nápoles, redigiu um tratado sobre torneios. 

Nota Adicional II: Sobre William Marshal (ou Guilherme Marechal), já tínhamos redigido nesta página um artigo biográfico. O mesmo intitula-se: "William Marshal, Conde de Pembroke e Cavaleiro por Excelência". 

Nota Adicional III: Em 1066, encontramos referência sobre a morte de um Godfrey de Preuilly, morto num alegado "torneio", cujas regras até foram ironicamente inventadas por ele. Todavia, Manuel de Sousa, no seu "Livro de Cavalaria", demonstra alguma prudência em torno da narrativa, considerando que não existem evidências suficientes que confirmem as origens dos torneios no âmbito dessa datação, pelo que, prefere alinhar na ideia teórica de que os torneios começaram a ganhar expressão nos inícios do século XII, percorrendo a restante Idade Média.  




Referências Consultadas: