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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Segredos Históricos do Havai "Medieval"


Descrição Histórica Pós-Descobrimentos

O Havai é um arquipélago que se localiza no meio do Oceano Pacífico, sendo actualmente domínio integrante dos Estados Unidos da América. Geograficamente, o Havai encontra-se completamente distanciado face a qualquer área continental e, por isso, o seu isolamento terá sido natural ao longo de sucessivos milénios. É constituído por oito ilhas principais e numerosos ilhéus, atóis e recifes. Deste grupo, destacam-se, pela sua aceitável dimensão territorial e pela respectiva ocupação populacional, a Grande Ilha do Havai e as ilhas de Maui e Oʻahu. O arquipélago alberga ainda alguns vulcões.
Os europeus avistaram, pela primeira vez, as ilhas no decurso do século XVI, embora sem procederem, desde logo, a uma efectiva colonização e exploração dos lugares citados, talvez desencorajados pela sua localização adversa. Terá sido o caso do navegador espanhol Juan Gaetan que, em 1542, se deparou com o arquipélago, aquando de uma das suas viagens de reconhecimento pelo Oceano Pacífico. Muitos lhe atribuiriam, mais tarde, a “descoberta” do Havai. Por outro lado, também o afamado explorador inglês James Cook desembarcaria naquele território em 18 de janeiro de 1778. Segundo rezam as crónicas, este navegador viria a ser ali assassinado, no ano seguinte, por um grupo de indígenas enfurecidos. 
Efectivamente, o principiar de contactos com os “haole” (palavra havaiana que significa “forasteiros” ou “outsiders”) significou gradualmente o início de uma nova era.
No início do século XIX, mais concretamente em 1810, o arquipélago experimentou o advento de uma monarquia nativa, muito devido ao esforço guerreiro do líder indígena Kamehameha I que se prontificou a unificar todo o arquipélago, combatendo as tribos que ousavam afrontar a sua hegemonia. Para isso, contou com o privilegiado recurso a armas e canhões de origem europeia. Mais tarde, em 1894, o Havai tornar-se-ia ainda numa república independente, embora por pouco tempo, visto que quatro anos depois, em 1898, o arquipélago foi invadido por forças norte-americanas que o submeteriam definitivamente no ano de 1900 (embora o Havai só tenha alcançado o estatuto de estado norte-americano em 1959). Foi a partir daí que, além dos próprios nativos (de origem ancestral polinésia), se instalaram também no arquipélago massas populacionais de ascendência europeia bem como inúmeras vagas de imigrantes asiáticos, consubstanciando um cenário multi-cultural. 
A 7 de Dezembro de 1941, a base naval norte-americana de Pearl Harbor, aí localizada, foi arrasada por um feroz ataque aéreo japonês, facto que ocasionou a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. 
Estes foram então os traços históricos mais importantes do Havai relativos aos últimos séculos. No entanto, este artigo visará em específico o Havai na era dos Pré-Descobrimentos e daqui nascerão certas interrogações - como é que um arquipélago situado no meio do Oceano Pacífico, completamente isolado, já se achava ocupado por tribos? De onde provinham estas? Que práticas sociais e culturais adoptaram? Questões essas que procuraremos responder em seguida. 





Mapa nº 1 - A constituição do Arquipélago do Hawai.
Retirado de: http://www.infoplease.com/atlas/state/hawaii.html  (Magellan Geographix)





Mapa nº 2- O Arquipélago do Havai situa-se na zona central do Oceano Pacífico.
Retirado do Wikipédia




A Lenda dos “Menehune”

A mitologia havaiana remete-nos para a crença de uma presença bastante remota no arquipélago. De acordo com esta sequência de ideias, teria existido uma fixação populacional muito anterior à chegada das primeiras tribos polinésias (estas arribariam ao Havai no final da Antiguidade ou no decurso da Idade Média, isto sob a perspectiva cronológica europeia). 
Dentro deste contexto, é sobejamente conhecida a lenda dos “Menehune”, isto é, de uma pequena comunidade que teria vivido de forma recôndita, durante vários séculos, em florestas densas ou vales escondidos das ilhas do Havai. Aos seus indivíduos, era curiosamente atribuída uma reduzida estatura física, muitas vezes, comparada com situações de nanismo. Os “Menehune” adoravam alimentar-se de bananas bem como de peixe extraído do mar e dos rios. De acordo com a mitologia, privilegiavam o artesanato, mas também teriam sido responsáveis pela criação de templos, casas, ruas, canoas, viveiros de peixes… 
Segundo as narrações lendárias então veiculadas, a chegada das primeiras tribos polinésias teria forçado estes primitivos habitantes a procurarem outros refúgios mais ocultos ou praticamente inacessíveis no arquipélago, de forma a sobreviverem, por mais alguns séculos, ao assédio dos novos colonizadores. 
Num plano mais científico, a verdade é que não houve até hoje qualquer descoberta arqueológica que confirmasse a existência desta remota povoação bem como de qualquer outra que tivesse precedido as vagas migratórias oriundas da Polinésia. Aliás, a própria narração assume uma faceta fantasiosa, o que nos obriga a catalogar os “Menehune” como uma presumível invenção mitológica, talvez até influenciada mais tarde pelo contacto com a própria mitologia europeia.




Imagem nº 1 - A lenda versada sobre a suposta existência dos "Menehune" (então descritos como anões) animou alguns dos debates históricos. 




Os colonizadores da Polinésia

Durante inúmeros milénios, o arquipélago do Havai teria sido um paraíso natural desprovido de qualquer sintoma da presença humana. Praias e recantos florestais de enorme fascínio conservavam uma pureza até então intocável. Ali afluíam diversas aves que desfrutavam da serenidade ali concebida. 
A história só mudará quando um primeiro grupo migratório de indígenas decidiu abandonar as Ilhas Marquesas para se aventurar numa viagem rumo ao desconhecido. Através de canoas ou barquetas de dimensões frágeis, fizeram um percurso de quase quatro mil quilómetros no Oceano Pacífico. A fazer fé nos estudos actuais, estes aventureiros guiavam-se pela observação posicional das estrelas durante a noite e até pelo próprio sobrevoar das aves (se estas fossem observadas nos céus, seria um indício de que estariam próximos de alguma terra). 
Escusado será dizer que muitos terão provavelmente sucumbido à ferocidade das ondas, sobretudo nos dias mais adversos ou tempestuosos. Não obstante, é verdade que pouco ou nada sabemos sobre esta primeira ousada viagem indígena. A título de exemplo, não é possível avançar uma datação concreta (embora existam teorias que iremos expor já de seguida), nem sequer deslindar os motivos que levaram esta corajosa tribo a desafiar um oceano desconhecido. Sabemos sim, pela tradição histórica, que houve, mais tarde, uma segunda vaga migratória (talvez até mais importante), desta feita, oriunda das Ilhas Taiti. Novamente, é de enaltecer o heroísmo dos indígenas polinésios que, através dos seus modestos (ou até medíocres!) meios de navegação, alcançariam novamente o Havai. 
Também não descartamos a possibilidade destas expedições terem sido acidentalmente desviadas pelas tempestades para a zona central do Pacífico, quando os seus navegadores intentavam chegar a outras ilhas ou territórios da Polinésia. No entanto, e como já dissemos anteriormente, desconhecemos as motivações que estiveram por detrás das referidas viagens.
Em relação às cronologias propostas para estes acontecimentos, alguns autores situam as vagas migratórias para o extenso período cronológico situado entre os anos 300 e 800 d. C., porém a ocupação poderá ter sido mais tardia. De acordo com estudos recentes, baseados em experimentações de datação por radiocarbono de alguns artefactos, surgiu a hipótese de que o início da ocupação humana remontaria ao século XIII, mais precisamente aos anos estabelecidos entre 1219 e 1266. 
Independentemente das incontornáveis imprecisões cronológicas, não podemos negar a chegada destes novos colonizadores que logo introduziriam um sistema social semelhante àquele que se verificava nos seus territórios de origem. Desflorar aquele paraíso perdido fora o prémio merecido para quem se atrevera a desafiar quase inconscientemente um Oceano que poderia conceber ondas terríveis e que albergava nas suas águas profundas sérias armadilhas ou predadores temíveis (como por exemplo: tubarões ou baleias).





Imagem nº 2 - Os navegadores polinésios recorriam a largas canoas para encetar as suas viagens mais exigentes.




Características da colonização tribal: aspectos socioeconómicos 

As ilhas do Havai foram ocupadas gradualmente pelas tribos que então haviam instalado o seu domínio. Em breve, e como consequência natural do crescimento populacional verificado nos séculos posteriores, se registariam divergências e divisões entre os indígenas mais influentes. Aliás, é igualmente provável que a tribo proveniente do Taiti tivesse chocado já militarmente com os primeiros colonizadores indígenas, oriundos das Ilhas Marquesas, que ali se tinham instalado previamente.
Dentro deste contexto, as vindouras dinâmicas bélicas do arquipélago poderiam ditar que uma ilha estivesse sob o domínio de uma tribo, bem como também poderia acontecer o contrário – com uma ilha do arquipélago a reunir alguns grupos tribais rivais, sendo cada um destes regido pelo seu próprio chefe. Como é lógico, e apesar de estarmos perante suposições lógicas, a verdade é que escasseiam dados concretos sobre a evolução política e militar no arquipélago do Havai na era das Pré-Descobertas, mas parece-nos ser assertiva a tese da multiplicação demográfica da população, cenário que terá ocasionado o aumento do número de tribos, embora todas elas derivassem de uma matriz cultural polinésia. Aquando do primeiro contacto europeu, crê-se que a população total indígena no arquipélago seria de entre 200 mil a 1 milhão, número certamente bastante superior às centenas (ou poucos milhares) que outrora desembarcaram para abrir o primeiro capítulo da presença humana no Havai.
Exposto isto, iremos agora proceder à elaboração de uma síntese sobre a realidade socioeconómica que acompanhou a instalação e sobrevivência destas tribos durante sucessivos séculos. 
Os novos colonos que então se tornariam nativos das ilhas trouxeram consigo – as suas vestes, algumas plantas típicas da Polinésia e inclusive determinados animais. Fixariam as suas modestas habitações ao longo da costa ou até nos vales mais amplos. Desde cedo, se dedicariam à criação de gado. Sabe-se que domesticavam porcos, galinhas e cães. Além disso, alimentavam-se de bananas, taros, cocos e frutos do mar. Cultivavam batata-doce (curiosamente bastante enraizada na América do Sul) e também se dedicavam naturalmente à pesca. Criaram igualmente viveiros piscatórios junto a estuários e rios, demonstrando sérios conhecimentos na área da aquacultura. Utilizaram ainda canais para garantir a irrigação necessária para o cultivo do taro. 
Naturalmente, a sua chegada provocou um primeiro grande impacto no ecossistema existente. Os novos colonos, acompanhados então com os seus animais (porcos, cães, galinhas e ratos), colocaram em causa o equilíbrio natural, comprometendo a sobrevivência de muitas aves nativas, plantas e inclusive caracóis terrestres de considerável dimensão. 
Em termos de estrutura social, cada tribo viveria num sistema semelhante ao de castas. No topo, estaria naturalmente o seu chefe (“aliʻi”) que assumiria funções de liderança, sendo-lhe creditado algum poder divino (“mana”). Nessa acção de governação, poderia ser coadjuvado por outros chefes de menor importância. Seguiam-se depois os sacerdotes (“kahuna”) que conduziam as cerimónias religiosas de teor politeísta. Estes eram ainda vistos como curandeiros ou adivinhadores do futuro. Na sociedade tribal, também existiam grupos profissionais como carpinteiros, construtores navais, cantores, dançarinos e genealogistas. Os plebeus (“maka'āinana”) dedicavam-se à agricultura, à pesca e aos ofícios simples, tendo de garantir o seu sustento e o das suas próprias famílias, além de abastecer os chefes e os líderes espirituais. Por fim, na base desta pirâmide social tribal, se encontrariam os “kauwā”, isto é, todos aqueles cativos que tivessem quebrado as regras estabelecidas ou que tivessem sido capturados em conflitos então travados. Estes seriam escravizados pelos chefes, podendo ser usados para sacrifícios humanos nos templos. 
Num plano físico, cada aldeia tribal seria composta pelas habitações (“hale”), templos (“heiau”; albergavam ídolos lavrados em pedra ou madeira), residência do chefe tribal (“hale ali’i”; normalmente erguida em pedra), casa do tecelão (“hale ulana”), casa das canoas (“hale waʻa; sítio direccionado para o abrigo de embarcações de pesca bem como de canoas), entre outros espaços.
Por seu turno, a educação visava muito a aquisição das práticas religiosas (as crianças eram, muitas vezes, tuteladas pelos “kahuna”) bem como o culto da força (de forma a preparar os jovens para potenciais combates futuros).
Quanto ao sistema de organização económica, verificava-se um enquadramento parcialmente equiparável ao feudalismo então observado na Europa Medieval. A terra era vista como divina, e por isso, era propriedade dos deuses. Mas os “ali’i”, chefes tribais que reivindicavam conotações supra-naturais, assumiam o papel de gestores dessas terras, controlando assim os “makaʻāinana” (trabalhadores comuns – agricultores). Quando um chefe tribal falecia, havia a possibilidade das terras serem novamente redistribuídas pelo sucessor, e por isso, os exploradores de solo não tinham a sua fixação totalmente garantida ou estabilizada. Também o mesmo aconteceria, caso um líder indígena conquistasse terras a um inimigo, recompensando os seus guerreiros com novas porções de terra. No entanto, também em certas situações teria sido possível que alguns agricultores mantivessem as suas terras, caso prestassem obediência e tributo ao novo chefe. 
Com a multiplicação demográfica, terá ocorrido um desenvolvimento económico nos últimos séculos que antecederam os primeiros contactos europeus. Dentro deste contexto, surgiram novas profissões especializadas – construtores de casas, canoas e moinhos de pedra e até colectores de aves, sendo que estas seriam utilizadas para confeccionar os mantos de penas do “ali’i”. Em períodos de tréguas, passaria a ser possível a concretização de algum tipo de comércio estabelecido então entre as ilhas do vasto arquipélago.





Imagem nº 3 - Antigas habitações havaianas ("Hale")
Retirada de: www.surfingforlife.com




Uma religião politeísta de princípios rígidos

A religião havaiana era transversal aos hábitos, costumes, métodos, leis e formas de viver das tribos ali existentes. O sistema então criado radicava em inúmeros tabus que, durante séculos, foram preservados pelas comunidades indígenas. Em primeiro lugar, um homem e uma mulher não poderiam comer juntos, visto que a presença feminina poderia prejudicar o estado espiritual dos primeiros. Em segundo lugar, a pesca só poderia ser praticada em algumas épocas do ano. A sombra do “ali’i” não poderia ser tocada porque tal atitude seria interpretada como uma tentativa de usurpação do seu “mana” (poder divino).
Os sacrifícios humanos oferecidos aos deuses parecem ter sido uma realidade certa aquando da chegada da segunda vaga migratória proveniente do Taiti. Os chefes taitianos extremaram ainda mais este sistema, conferindo maior rigidez e impondo uma maior observação dos ditames espirituais.
Tal como muitas das civilizações que ainda estavam por descobrir pelos europeus, os havaianos da “Idade Média” professavam uma religião de pendor politeísta, estritamente conotada com as expressões da Natureza. Por exemplo, as forças naturais eram personificadas através dos principais deuses havaianos - Kū (Deus da Guerra), Kāne (Deus da Luz e da Vida), Kanaloa (Deus da Morte), Lono (Deus da Paz). Também eram conhecidas Pele (Deusa do Fogo) e a sua irmã Hiʻiaka (Deusa da Água).
As cerimónias honravam igualmente os momentos mais importantes da vida, nomeadamente o nascimento, a concepção, o atingir da idade adulta e a própria morte, além de ser requerida a intercessão ou bênção dos deuses nos futuros confrontos bélicos.
Como já mencionámos no tópico anterior, os “kahuna”, sacerdotes, assumiam o cumprimento dos serviços religiosos nos “heiau” (templos), onde se achavam diversos ídolos para adoração.




File:Jean-Pierre Norblin de La Gourdaine (after Louis Choris), Temple du Roi dans la baie Tiritatéa (c. 1816, published 1822).jpg

Imagem nº 4 - Um templo havaiano ("heiau") repleto de estatuetas e ídolos. Este situar-se-ia na baía de Tiritatéa e contaria com um patrocínio "régio". Daí ser conhecido como o "Templo do Rei".
Quadro da autoria Jean-Pierre Norblin de La Gourdaine/Louis Choris publicado entre 1816-1822





Imagem nº 5 -  A chegada dos primeiros estrangeiros a Kailua-Kona, uma ilha do Havai.
Retirada da Página do Wikipédia




O Surf como expressão social


Os antigos havaianos partilhavam sentimentos muito semelhantes sobre o seu favorito desporto oceânico, e inclusive cantavam poemas sobre os feitos de surf mais sublimes. Apesar dos surfistas modernos não estarem provavelmente a par desta história, o passatempo aquático do «boardsurfing» foi talvez desfrutado, desde cedo, na Idade Média, embora não seria até ao final da década de 1770 que qualquer «haole» (ou outsider) tivera a oportunidade de observar ao vivo este singular desporto de água havaiano” (in LUERAS, Leonard et LUERAS, Lorca - Surfing Hawaii: The Ultimate Guide to the World's Most Challenging Waves, p. 25-33; é citada aqui em particular a perspectiva de Paul Strauch) 


Os primórdios da existência do surf remetem-nos exactamente para a primitiva Polinésia, onde se verificaram as primeiras demonstrações. Jovens rapazes corajosos e até, por vezes, mulheres se aventuravam irracionalmente num mar em convulsão, enfrentando as perigosas ondas levantadas por poderosas forças da natureza. Os polinésios e os havaianos (estes descendentes dos primeiros) reuniam-se nas suas praias favoritas para assim se divertirem perante um sol radiante e para demonstrarem as suas infindáveis proezas perante as ondas. Muitos desafiavam a sua própria sobrevivência, sobretudo nas marés mais adversas ou tenebrosas. 
No entanto, o surf não era apenas um desporto que reivindicava bravura e adrenalina, mas espelhava igualmente toda uma expressão social. Os espectadores mais entusiásticos que assistiam às competições a partir da costa não se cansavam de aplaudir os aventureiros, não hesitando em organizar festas e até pequenas apostas em torno dos seus heróis ou dos seus “surfistas” favoritos. 
Até a religião chegava a ser envolvida nesta prática desportiva. Os “kahuna”, sacerdotes, poderiam, na qualidade de feiticeiros ou xamãs, rezar para que se reunissem boas condições para o surf. Aliás, os “kahuna” cantariam bem alto aos deuses do mar e chicoteariam as videiras da praia até que se propiciasse a ondulação desejada. De acordo com um estudo arqueológico da autoria de John Francis Gray Stokes (1876-1960), existiria um antigo “heaiu” (templo) na Baía de Kahaluu na costa Kona da Grande Ilha do Havai – este edifício religioso, conhecido como o templo de Kuemanu, destacou-se dos demais por ter sido utilizado particularmente pelos “surfistas indígenas” que aí fariam as suas orações de forma a interceder para que os poderes naturais favorecessem a prática do seu desporto preferido.  
Outro desporto de água que terá sido praticado foi o “choroee”, modalidade em que os havaianos recorreriam a pequenas canoas, remando perante as águas do Oceano. 
Ninguém sabe quem inventou o surf ou quem se lembrou de fazer a primeira prancha de madeira para se aventurar em águas sempre imprevisíveis. Podemos apenas adiantar que as diversas tribos polinésias do Centro e do Sul do Pacífico foram as primeiras grandes dinamizadoras, e até provavelmente as criadoras, mas não se sabe em que território ou ilha nasceu esta prática, visto que os relatos orais não esclarecem este enigma. No Havai, o surf, então uma prática que já provinha do período “medieval”, ganharia uma dimensão emblemática que hoje é confirmada através de eventos de elevado prestígio.
Aquando do contacto oficial por James Cook em 1778, os nativos havaianos já possuíam clubes de surf (“huis”) que eram patrocinados pela realeza, participando assim em provas desportivas. Ou seja, os próprios indígenas tinham dotado o seu desporto predilecto com uma adequada organização. 
Contudo, a afluência europeia ao arquipélago durante o século XIX (embora o Havai conservasse ainda a sua independência) não trouxe boas notícias. Em primeiro lugar, os europeus trouxeram do seu próprio continente várias doenças de elevada ou média gravidade, e por conseguinte, suficientes para causar um drástico decréscimo populacional. Por volta da década de 1880, só existiriam 40 mil indígenas a viver no arquipélago, número que contrasta com as centenas de milhares que chegaram a existir nos séculos anteriores à chegada de James Cook. Por causa de tamanha mortandade, o surf perderia assim vários praticantes. Mas um mal nunca vem só – a maior parte dos missionários cristãos, com práticas conservadoras, não encara com bons olhos este arrojado desporto e tentarão mesmo desencorajá-lo. O Surf vivera assim o seu período mais conturbado no Havai porque as tribos estavam a perder a sua influência tradicional. No entanto, havia uma luz ao fundo do túnel – vários estrangeiros, então curiosos, que afluíam ao arquipélago começaram a sentir fascínio por aquele desporto que acabavam de conhecer e decidiram também praticar ou divulgar esta sua nova "descoberta". Até Mark Twain, célebre escritor norte-americano que esteve no arquipélago por volta da década de 1860, se rendeu àquela prática desportiva, relatando inclusive a sua primeira experiência na modalidade que, apesar de tudo, não lhe correra assim tão bem. 
Mesmo com a realidade crítica verificada durante o século XIX, o Surf sobreviveu ao contacto europeu e à anexação norte-americana (esta verificou-se entre 1898-1900!), e mais do que um desporto mundial, é hoje expressão dos seus antepassados que, para conquistarem outrora a admiração dos seus seguidores e das respectivas "musas" das suas tribos, não pensavam duas vezes em avançar sobre as ondas mais assombrosas. Desejavam eles que as suas proezas fossem registadas em poemas cantados e nas memórias orais dos seus descendentes. E talvez esse facto seja hoje o grande tesouro histórico do Havai. 





Imagem nº 6 - A prática desportiva e social do Surf conhece raízes bastante antigas no Havai.
Ilustração datada de 1873 - Wallis McKay :  




Imagem nº 7 - Os indígenas recorriam a pranchas de madeira para desfrutar do seu desporto oceânico preferido. Foto datada para o ano de 1900 (autor - Frank Davey).




Imagem nº 8 – Memorial sobre o venerado surfista havaiano Eddie Aikau que morreu tragicamente no "alto mar" em 1978, quando procurava auxílio (tentou em vão nadar até ilha mais próxima em busca de ajuda) para os restantes tripulantes que tinham visto o seu barco a ser derrubado por ondas implacáveis.
Foto da autoria de Jeff Divine



Notas-Extra

1- James Cook atribuiu ao Havai a designação de “Ilhas Sandwich” de forma a homenagear um nobre inglês - John Montagu, 4º conde de Sandwich, e na altura, Primeiro Lord do Almirantado da Marinha Real Britânica.
2- Em termos de armamento utilizado pelas antigas tribos nos inúmeros combates, destaque para a presença de armas de mão de madeira, lanças, punhais de madeira, armas cortantes (afiadas com dentes de tubarão), armas de arremesso (com um peso ligado a uma corda), fundas para atirar pedras. Em tempos de tréguas, os guerreiros exercitavam artes marciais, lutas livres, danças e corridas, o que favorecia a sua condição física.
3- Optamos pela designação cronológica medieval, porque interpretamos esta era de acordo com a nossa visão histórica europeia, embora reconheçamos que o caso do Havai tenha assumido as suas próprias vicissitudes, visto que a sua evolução foi radicalmente distinta. Muitas vezes, aconselhamos o leitor a pesquisar pela terminologia (também comum) de "Havai Antigo".



Referências Consultadas:

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Avicena, o "Príncipe dos Sábios"


Contexto

Ibn Sina, conhecido sob o nome latinizado de Avicena, foi um dos maiores génios da época medieval. A sua herança cultural manifestou-se em diversas áreas do conhecimento, em especial na Medicina e na Filosofia. Julga-se que terá escrito cerca de trezentos livros, discorrendo sobre diversas temáticas. Muitos afirmam inclusive que Avicena terá sido o mais talentoso médico do período situado entre a época do Império Romano e o surgimento da Ciência Moderna no século XVI. Os seus discípulos o designariam mesmo como o "Príncipe dos Sábios" ("Cheikh el-Raïs"). Mas quem seria então Avicena? Como teria sido o seu contributo para uma ciência que, no seu tempo, se encontrava ofuscada pela ignorância e pelas superstições que pareciam prevalecer entre as comunidades? O prestígio que hoje lhe é atribuído se ajusta fielmente aos seus feitos em vida? Estas e outras interrogações procuraremos responder neste artigo. 





Imagem nº 1 - Retrato de Avicena.




Nascimento e Educação

Avicena nasceu por volta do ano de 980 em Afshana, nas proximidades de Bucara (actual Uzbequistão), sendo esta última a capital dos Samânidas, uma dinastia persa que vigorava naquela altura na Ásia Central e na região do Coração (Khorasan).  A sua mãe, Setareh, era natural de Bucara, enquanto o seu pai, Abdullah, seria um sábio ismaelita proveniente de Balkh, tendo trabalhado para o governo samânida na localidade de Kharmasain.  
Ao ser proveniente de uma família muçulmana, é natural que Avicena tivesse começado a aprender o Corão, algo que o fará com excelência, visto que memorizará este livro sagrado quando contava apenas com dez anos de idade. Apesar de ser indiscutível a sua crença no Islamismo, a verdade é que será difícil enquadrar Avicena numa tipologia de fé. Os seus biógrafos não se entendem quanto às suas tendências religiosas, visto que uns o associam ao sunismo, enquanto outros o conotam com o xiismo ou até com o ismaelismo. Também poderá ter revelado algumas tendências afectas ao misticismo nalguns dos seus tratados que viriam a ser mais tarde compostos. 
No entanto, os seus estudos iniciais não se restringiram apenas ao Corão. Avicena aprendeu aritmética indiana através de um merceeiro/hortaliceiro indiano Mahmoud Massahi. Procurou igualmente inteirar-se dos princípios da jurisprudência islâmica ("Fiqh") contando para isso com a orientação do erudito sunita Ismail al-Zahid. Também terá usufruído de uma experiência de cariz medicinal juntamente com um sábio errante anónimo que ganhava a vida, curando os doentes e ensinando os mais novos. 
Além da Medicina e das Ciências Naturais, Ibn Sina demonstrou, desde cedo, uma paixão pela Filosofia. Neste âmbito, recorreu a um filósofo impopular Abu Abdullah Nateli, conseguindo ter acesso a diversas obras clássicas, nomeadamente a "Isagoge" ("Introdução") do filósofo romano Porfírio, "Os Elementos de Euclides" da autoria do célebre matemático e pensador grego do mesmo nome, e o "Almagesto" do matemático, geógrafo e astrónomo grego Cláudio Ptolemeu. Também se interessou em particular pela obra "Metafísica" da autoria de Aristóteles, tendo recorrido aos comentários de al-Farabi (filósofo turco que viveu entre os anos de 872 e 950), inseridos no dito trabalho, para decifrar o teor do pensamento seguido por aquele filósofo helénico dos tempos da Antiguidade.
Aos 16 anos, voltará a dedicar-se aos assuntos da medicina. Avicena não só assimilará novos princípios teóricos, como prestará atendimento gratuito aos doentes, tendo descoberto, através desta sua experiência, novos métodos de tratamento. O jovem médico começava a impressionar na região de Bucara devido à sua qualidade, visto que os seus tratamentos atingiam resultados superiores em comparação com aqueles que eram ministrados pela "classe médica" em geral. A sua ascensão prodigiosa não tardaria em suscitar a atenção das altas estruturas estatais. 





Imagem nº 2 - Ibn Sina demonstrou inúmeros talentos durante a sua juventude.




Ao serviço das cortes

No ano de 997, e contando com apenas 17 anos de idade, Ibn Sina foi recrutado pelo emir de Bucara, de modo a que este recuperasse de uma grave enfermidade. Avicena foi bem-sucedido nos seus serviços, ganhando em contrapartida acesso à biblioteca real dos Samânidas, onde aprofundaria os seus conhecimentos sobre matemática, astronomia e música. Em breve, este erudito já dominaria quase todas as ciências conhecidas. Devido ao seu prestígio, permaneceria como médico da corte e conselheiro de temas científicos até à queda do reino samânida em 999.
Já sem o seu pai que havia entretanto falecido, Avicena rumou a Urgench (no actual Turcomenistão), onde o vizir local, então promotor dos estudos de âmbito cultural, lhe assegurou o pagamento de um pequeno salário mensal. Todavia, a soma recebida não era suficiente para garantir a sua estabilidade, e por isso, não será de estranhar que Ibn Sina vagueasse de lugar para lugar, percorrendo os distritos de Nishapur e Merv e até as fronteiras da alargada região do Coração (Khorasan), de forma a encontrar uma melhor perspectiva de vida. Finalmente, o intelectual arribaria a Gorgan, terra situada nas proximidades do Mar Cáspio, onde encontraria Al-Juzjani que viria a ser seu secretário, escriba e biógrafo, sendo que este seu novo e favorito discípulo, além de possuir a sua própria casa, dispunha ainda de um pequeno edifício anexo onde Avicena usufruiria da oportunidade de estudar lógica e astronomia. 
No entanto, Ibn Sina voltaria a deambular por outras regiões da Pérsia. Sabemos que terá tido uma passagem por Rey (ou Rayy - localidade que se situava nas proximidades da moderna cidade de Teerão), onde terá composto 30 trabalhos de pequena dimensão. Também teria estado por pouco tempo em Qazvin, até chegar a Hamadan - cidade que testemunharia a criação de uma das suas duas principais obras - o "Kitab al-Shifa" ("O Livro da Cura"), uma enciclopédia de ciência natural, lógica e filosofia. Também o célebre "Al-Qanun Fil-Tibb" ("Canône de Medicina"), estudo que compilava uma longa listagem de centenas de drogas (seriam 760 ao todo!), tratamentos e receitas medicinais, terá começado a ser elaborado por Avicena ainda durante a sua estadia em Hamadan, embora tal projecto tivesse sido concretizado posteriormente em Ispaão (Ispahan). Durante a sua permanência em Hamadan, Ibn Sina começou por prestar serviços a uma dama de nascimento privilegiado, tendo sido posteriormente contratado por Shams al-Dawla, emir daquela região que, desde logo, se interessou pelos seus conhecimentos médicos. Avicena obteria um maior reconhecimento, tendo ascendido ao posto de vizir (ministro). Durante o dia, se empenharia para servir a causa pública, enquanto de noite, engolfava-se nos estudos científicos. 
Contudo, as quezílias e as intrigas que se disseminavam pela corte teriam entretanto levado o emir a querer expulsá-lo da cidade. No entanto, muito em breve, o emir Shams al-Dawla viria a padecer de uma grave doença, tendo sido forçado a recorrer novamente aos serviços de Ibn Sina que foi readmitido nas suas funções. Apesar do período turbulento, Avicena nunca deixou de estudar e até de ensinar todos aqueles que estavam predispostos a ouvi-lo. Não hesitava em partilhar com os seus discípulos as novidades das suas principais obras. Mesmo com o falecimento do emir Shams al-Dawla e com o seu consequente abandono do posto de vizir (cargo que então ocupava), o nosso biografado nunca abdicou de concentrar o seu foco nos seus trabalhos intelectuais. 
Pouco tempo depois, Avicena escreveria uma carta a Abu Ya'far, prefeito da cidade de Ispaão, oferecendo os seus préstimos. No entanto, o novo emir de Hamadan não gostou de ter conhecimento desta correspondência privada, encarcerando o reputado médico numa fortaleza. A rivalidade entre os governantes de Ispaão e Hamadan era intensa, e o conflito daí resultante culminaria com a vitória da primeira cidade em 1024. 
A um determinado momento, Ibn Sina conseguiu evadir-se da cidade de Hamadan, utilizando um traje ascético sufi como disfarce. Nessa fuga, seguiriam com ele o seu irmão, um discípulo favorito e dois escravos. Após uma perigosa jornada, chegariam a Ispaão, onde foram bem recebidos pelo príncipe local. O nosso biografado teria já mais de 40 anos de idade.





Imagem nº 3 - Avicena dedicou muito do seu tempo à investigação e à escrita.




Os últimos tempos

Os últimos anos da sua vida foram vividos no seio da corte do governante kakúyida Muhammad ibn Rustam Dushmanziyar (também conhecido pelo nome de Alā al-Dawla), senhor de Ispaão e de uma porção territorial da Pérsia Ocidental ("Jibal"). Avicena voltaria a exercer a profissão de médico e de conselheiro em matérias literárias e científicas. Chegava inclusive a acompanhar o seu senhor em campanhas militares, o que revela bem a confiança que em si era depositada. Nesses tempos derradeiros, Ibn Sina estudou obras literárias e filologia, mesclando nessa abordagem o seu criticismo. Foi um período profícuo para a sua produção de eruditismo. 
Entretanto, Ibn Sina viria a ser afectado por uma violenta cólica (possivelmente derivada de uma crise intestinal) quando as tropas kakúyidas marchavam novamente sobre Hamadan. A sua saúde começou a deteriorar-se rapidamente, embora tivesse acabado por chegar àquela cidade. O seu destino parecia estar irreversivelmente traçado. No seu leito de morte, doaria os seus bens aos pobres, devolveria ganhos injustos, libertaria os seus poucos escravos e leria de novo o Corão nos três derradeiros dias que precederam o seu desaparecimento terreno. Avicena faleceria no mês de Junho de 1037 (com 57 anos de idade) e seria enterrado em Hamadan, após uma vida marcada pela agitação inerente a imensas vicissitudes e pela exaustão resultante do seu empenho científico. 
Efectivamente, Ibn Sina deixou-nos centenas de trabalhos. Alguns autores salientam que ele teria redigido 300 livros, enquanto outros alegam que este génio terá sido responsável por mais de 450 trabalhos, embora só 240 teriam "sobrevivido" até aos dias de hoje. 
Avicena escreveu sobre medicina, filosofia, astronomia, alquimia, geografia, geologia, psicologia, teologia islâmica, lógica, matemática, física e terá composto alguma poesia. 
Este inigualável polímata foi um dos principais pensadores da Idade de Ouro Islâmica (séculos VIII-XIII), merecedor do prestígio que hoje lhe é confiado mundialmente pelos círculos intelectuais/científicos modernos. 





Imagem nº 4 - Outro retrato sobre Ibn Sina (980-1037).




Legado na Medicina

Como já havíamos mencionado ao longo deste texto, Avicena curou inúmeros pacientes e deixou-nos obras relevantes na área da Medicina, nomeadamente o "Al-Qanun Fil-Tibb" ("Cânone da Medicina"). Apesar de ser claramente influenciado por grandes vultos do passado da medicina ocidental greco-romana - Hipócrates, Dioscórides e Galeno, Avicena soube também introduzir as suas próprias descobertas bem como técnicas orientais já utilizadas por árabes, persas e indianos.
O "Cânone da Medicina" encontra-se dividido em cinco livros, assumindo uma organização por categorias. O primeiro livro contém quatro tratados: o primeiro tratado examina os quatro elementos vitais (terra, ar, fogo e água) e inclui igualmente um estudo de anatomia; o segundo aborda a etiologia (causa) e os sintomas; o terceiro analisa a higiene, a saúde, a doença e a inevitabilidade da morte; por fim, o quarto tratado do primeiro livro tem em conta a nosologia terapêutica bem como revela uma visão sobre os regimes e tratamentos dietéticos. O segundo livro incide sobre a "Materia Medica", enquanto que o terceiro livro foca em particular as doenças existentes desde a cabeça até aos dedos dos pés. O quarto livro visa as doenças que não são específicas de determinados órgãos (encontramos aqui os exemplos das febres e das patologias de humor). O último livro, o quinto, apresenta um alargado compêndio de drogas e receitas medicinais.
Do seu vasto pensamento intrínseco a esta área, realçamos então o facto de ter estudado de forma elaborada centenas de medicamentos, drogas, fármacos e receitas medicinais. Além disso, reconheceu o carácter contagioso da tuberculose, doença que na época ceifava inúmeras vidas, e ainda alertou para a disseminação de doenças a partir da água (esta não era devidamente controlada ou tratada na Idade Média!) e dos próprios ratos. Foi o primeiro a descrever, em traços gerais, a meningite e ainda aflorou com excelência a anatomia do olho humano. Também foi pioneiro na distinção entre a pleurisia, a mediastinite e o abscesso subfrênico. Descreveu as duas formas de paralisia facial (central e periférica). Também abordou a sintomatologia dos diabéticos bem como as diversas variantes da icterícia. Preconizou igualmente a introdução de tratamentos através de enemas retais. Foi ainda dos primeiros intelectuais a defender que o sangue era bombeado pelo coração para os pulmões, regressando depois posteriormente àquele órgão. Expôs, de forma precisa, o sistema dos ventrículos e da válvula do coração. Alguns o consideram ainda como o inventor da traqueostomia, embora este recurso tenha sido colocado em prática pelo cirurgião árabe Abulcasis de Córdoba (936-1013) que assim tratou de aperfeiçoar o referido procedimento que visava a criação de um orifício na frente do pescoço que daria acesso à traqueia, desobstruindo a passagem de ar, de forma a possibilitar a respiração nos casos em que esta é dificultada ou praticamente vedada.
Por outro lado, Ibn Sina propôs a utilização de vinho como curativo, algo que já era bastante frequente na era medieval. 
Não obstante, e além de querer conhecer detalhadamente o corpo humano bem como as doenças que o afectavam, Avicena também se preocupou em deixar conselhos que favorecessem a manutenção de um bom estado de saúde. Assim sendo, recomendou a prática desportiva e a hidroterapia, sendo esta última uma espécie de "medicina preventiva". Na área da psicologia, defendeu ainda a importância das relações humanas de forma a favorecer uma boa saúde mental. 
Avicena frisou que cada medicamento deveria ser utilizado num paciente que tivesse apenas contraído uma doença e que o mesmo teria de revelar eficácia de cura em (quase) todos os casos. O intelectual admitiu que os testes feitos em animais não seriam suficientes para provar a sua real eficácia nas pessoas. 
O seu "Cânone da Medicina" causou um elevado impacto, acabando por chegar ao Ocidente, provavelmente por intermédio das cruzadas ocorridas entre os séculos XII-XIV. Esta sua obra marcante, traduzida sucessivamente no continente europeu, influenciou o ensino e as práticas da medicina ocidental. Foi inclusive leccionada em várias universidades medievais tais como Montpellier e Leuven (Lovaina).




Imagem nº 5 - O "Cânone da Medicina" foi a obra-prima mais conhecida de Avicena.
Retirada de:




Pensamento/Filosofia

O "Kitab al-Shifa" ("Livro da Cura") constituiu o principal contributo de Avicena no campo da filosofia científica. Trata-se de uma enciclopédia monumental que nos permite caracterizar o seu pensamento.  
Dentro deste contexto, a filosofia de Avicena segue a tradição aristoteliana, embora mesclando influências neoplatónicas e princípios da teologia muçulmana. Avicena fala-nos de lógica, ética, metafísica, botânica, zoologia, música e psicologia.
No entender de Avicena, o Universo seria constituído por três ordens: o mundo terrestre (com o seu ponto mais alto a ser a alma humana), o mundo celeste (primeiro a ser criado) e Deus (cimo supremo)! Conforme nos indica o filósofo brasileiro Felipe Pimenta, Avicena explicava o mundo à maneira de Aristóteles, contudo propunha uma tese original sobre a inteligência humana - a existência de uma união entre o mundo material e o mundo celeste em 5 graus. Avicena acreditava que a nossa alma estaria separada do intelecto agente (embora existindo correlação ao nível da inteligência activa), sendo espiritual e imortal. A alma seria inteligente em potência, tornando-se só depois inteligente em acto. 
Este conceituado filósofo teve o cuidado de distinguir a existência da essência. A primeira refere-se a tudo o que existe, excepto Deus. Por seu turno, a essência é extrínseca e considera somente a natureza das coisas. Esta encontra-se num plano superior à realização física e mental, embora contribuindo, em momentos particulares, para uma inteligência supra-humana. Dado que a existência e a essência são conceitos distintos, Avicena conclui que a essência nem sempre pode ser inferida a partir de algo que existe. Por outras palavras, a existência de algo pode não implicar automaticamente a respectiva essência.
No campo da teologia, Avicena procurou ser fiel às suas convicções muçulmanas, embora tivesse tentando reconciliar o racionalismo da filosofia com a teologia islâmica. Por outras palavras, procurou provar a existência de Deus e a Sua criação do mundo através duma abordagem lógica e racional. Como já havíamos mencionado anteriormente, Ibn Sina tinha memorizado o Corão aos dez anos de idade, mas nunca deixara de efectuar diversas interpretações filosóficas e científicas sobre aquele livro sagrado para o Islão. Apesar de manter sempre um espírito aberto e crítico, Ibn Sina considerou os profetas do Islão portadores de um nível superior aos filósofos. No seu entender, os profetas possuiriam almas puras racionais, podendo extrair máximo proveito dos factores inteligíveis (que até são do seu próprio conhecimento) e dos próprios silogismos. No entanto, Avicena não deixou de vincar que a filosofia seria a ferramenta ideal que permitiria traçar a distinção entre a profecia real e a ilusão.
Por outro lado, Ibn Sina procurou através de algumas reflexões atestar a existência da consciência individual bem como da substância imaterial da alma. Este erudito acreditava que os seres humanos nunca deveriam duvidar da sua auto-consciência, mesmo em situações extremas onde não se verificasse qualquer expressão sensorial. Chega inclusive a sugerir, como exemplo, a posição de um indivíduo que, se achando de forma suspensa/solitária no ar e sem esboçar sentidos, acabaria sempre por revelar alguma noção da sua própria "existência". No seu entender, a inteligência humana activa seria uma hipóstase ou uma via pela qual Deus transmitiria a verdade à mente humana, conferindo ordem e inteligibilidade à natureza. A alma existiria, assumindo a sua própria auto-consciência e importando conceitos racionais através de um agente universal do intelecto. Ela seria composta por uma substância original e única (embora imaterial), e seria independente do mundo físico. Por outras palavras, o corpo seria sempre um elemento secundário nesta equação, enquanto a alma assumiria uma concepção perfeita, imortal e indestrutível.
Ibn Sina também se pronunciou sobre o destino das almas, afirmando que os actos e as escolhas tomadas por estas ao longo da vida terrena seriam decisivas para um desfecho póstumo de recompensa ou punição. O filósofo muçulmano acreditava que vivíamos num dos melhores mundos possíveis porque o mesmo era resultante da criação de um Deus bom. No entanto, não nega a existência do mal, mas defende que este deriva apenas da ausência do bem. Por outras palavras, os males particulares deste mundo seriam, na maior parte, consequências acidentais e extraviadas do próprio bem predominante.
No âmbito da filosofia da ciência, Avicena pugnou pelo estabelecimento do método científico de inquérito, de modo a apurarem-se os princípios basilares da Ciência. Além deste instrumento, o filósofo persa sugeriu ainda mais dois: o método aristoteliano de indução e o método de examinação e/ou experimentação. No entanto, Ibn Sina demonstrava cepticismo no que diz respeito às induções, alegando que estas poderiam não levar a premissas absolutas ou universais. Por isso mesmo, prefere o recurso ao método de experimentação como um meio bastante útil para a investigação científica.





Imagem nº 6 - Abu ‘Ali al-Husayn Ibn Sina foi um dos maiores pensadores da Idade Média.
Retirada de: http://quotesgram.com/ibn-sina-quotes/, (Snejta/ Sneghka).




Contributos verificados noutras áreas

Na Geologia, descreveu por exemplo a formação das montanhas. Na Lógica, desenvolveu um sistema que perdurou por bastante tempo - neste capítulo, reforçou a lei (ou princípio) da não-contradição proposta por Aristóteles, onde concluíra que o mesmo facto não poderia ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e no mesmo sentido da terminologia adoptada. Avicena argumenta mesmo que aqueles que negassem a lei da não-contradição deveriam ser espancados ou queimados até admitirem que ser espancado não é a mesma coisa que não ser espancado, e de que ser queimado não é a mesma coisa que não ser queimado.  
Ibn Sina acreditava que a luz teria uma velocidade, sendo esta presumivelmente finita (ainda que bastante elevada). Tentou ainda descrever o processo de surgimento do arco-íris, no entanto, não conseguiu ser bem-sucedido neste ponto em concreto.
Lançou ainda um duro ataque à astrologia num dos seus trabalhos. Ibn Sina duvidava do seu poder para prever o futuro, desconfiando ainda das reais capacidades daqueles que se intitulavam como astrólogos. Não obstante, acreditava que cada planeta teria imprimido alguma influência sobre a Terra, embora fosse impossível, no seu entender, determinar os efeitos exactos. 
Soube distinguir a astronomia da astrologia. Contrariou ainda a teoria de Aristóteles que alegava que as estrelas recebiam a sua luz a partir do Sol. Avicena contrapõe com a ideia de que as estrelas são auto-luminosas, embora também acreditasse, por outro lado, e aqui já de forma errónea, que os planetas seriam igualmente auto-luminosos. 
Avicena refutou ainda a crença da alquimia, tese que insinuava ser possível obter ouro a partir de metais básicos como o chumbo. O intelectual alegava que não seria possível transmutar as substâncias, embora fosse possível produzir nestas uma falsa aparência em caso de intervenção humana.
Por fim, Ibn Sina revelou ainda uma curiosa tendência poética, tendo elaborado alguns versos sobre temáticas medicinais. 
Em jeito de curiosidade, e como reconhecimento da sua vasta obra, o poeta florentino Dante Alighieri (1265-1321) o colocaria no Limbo da sua "Divina Comédia" juntamente com muitos outros virtuosos pensadores não-cristãos: Virgílio, Averróis, Homero, Horácio, Platão, Sócrates...





Imagem nº 7 - Avicena foi considerado por muitos como o "Pai da Medicina Moderna".




Notas-extra
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  1. Avicena atribuiu quatro faculdades fundamentais ao ser humano, nomeadamente a percepção ou senso comum, a retenção (da informação), a imaginação e a estimativa. Estas diferentes faculdades não comprometeriam a integridade singular da alma racional, aliás todas elas seriam parte integrante do processo intelectual individual.
  2. A obra multifacetada de Avicena inspirou grandes nomes do Mundo Ocidental. Por exemplo, a sua Teoria do Conhecimento e a sua contribuição na área da Psicologia inspirou eruditos tais como William de Auvergne (bispo de Paris entre 1228 e 1249) e Alberto Magno (frade dominicano germânico que viveria entre os anos de 1200 e 1280, e que seria considerado postumamente como "Doutor da Igreja" em 1931). O seu legado no sector da metafísica captaria ainda a atenção de Tomás de Aquino (frade dominicano, filósofo e teólogo italiano que viveria entre os anos de 1225 e 1274; também receberia posteriormente o estatuto de "Doutor da Igreja" em 1568). 
  3. Não obstante, o seu legado não foi consensual em todos os círculos, tendo merecido, por exemplo, críticas duras do teólogo e filósofo persa Al-Ghazali (1058-1111) que, algumas décadas mais tarde, rotularia o pensamento de Avicena como uma doutrina parcialmente herética. Muitos dos detractores de Avicena traçaram-lhe um perfil pouco abonatório, acusando-o de envolvimento sexual com as suas escravas e de apreciar demasiado o vinho. Contudo, os seus críticos, ao debaterem o seu pensamento, fizeram com que o mesmo chegasse (quase) intacto até aos dias de hoje, evitando que o tempo se encarregasse de o fazer diluir, na sua "amnésia universal", um dos maiores pensadores e médicos do Islão. 



Referências Consultadas:

domingo, 8 de maio de 2016

Muhammad al-Idrisi, o Dinamizador da Geografia Medieval



Contexto

Muhammad al-Idrisi foi um dos geógrafos ou cartógrafos mais bem-sucedidos da Era Medieval. Este intelectual árabe deixaria igualmente trabalhos nos campos da botânica e da literatura. Todavia, seriam os seus mapas, com elevada qualidade de desenho e precisão (pelo menos, no âmbito do contexto em que vivera), que suscitariam o interesse de vários reinos e aventureiros que procuravam apurar mais informações sobre esse mundo enigmático que os rodeava.
No decurso do século XII, al-Idrisi apresentaria algumas conclusões inovadoras ao nível da cartografia. Na Idade Média, o mundo conhecido abrangia apenas a Europa, o Norte de África, o Médio Oriente, a Pérsia e mais algumas regiões da Ásia. Por outro lado, desconhecia-se a existência dos continentes da América e da Oceânia, e a maior parte da área continental de África estaria ainda por explorar! Foi nesse mar de incertezas que al-Idrisi mergulhou, tentando rumar contra as “marés supersticiosas e ignorantes” do seu tempo. 





Imagem nº 1 - Estátua de Muhammad al-Idrisi em Ceuta, sua terra natal.  Nesta escultura representativa, o cartógrafo muçulmano exibe um mapa do mundo.




A sua vida inicial

Al-Idrisi nasceria por volta do ano de 1100 na cidade de Ceuta (na altura, baptizada de “Sebta” ou “Sabta”). Provinha de uma família com ramificações antigas no Norte de África e no próprio al-Andalus (conjunto das possessões muçulmanas na Península Ibérica). Durante a sua juventude, Idrisi iria percorrer estas duas regiões, obtendo assim informações detalhadas. Aliás, ele estudaria inclusive em Córdova, um dos prestigiados centros culturais da “Espanha Muçulmana” que congregava a nata intelectual daquele tempo. No entanto, o percurso de Idrisi não se ficaria por aqui. Aos 16 anos, teria visitado igualmente a região da Anatólia, e julga-se que, no decurso da sua vida, procuraria conhecer melhor a dimensão física do continente europeu através de viagens realizadas aos Pirenéus, à costa atlântica francesa, à Hungria e a York da Nortúmbria (hoje Yorkshire – norte de Inglaterra). Ninguém poderia negar o seu contacto com variadas culturas e até com os intelectuais da sua época. Além disso, é plausível que Idrisi tivesse acedido, em algumas das suas paragens, a documentos com conteúdos de natureza geográfica.

Imagem nº 2 - Retrato atribuído a al-Idrisi (1100-1165/1166).




A “Tabula Rogeriana” – o seu célebre “mapa-mundi”

A recorrente instabilidade política no al-Andalus motivou al-Idrisi a procurar um novo ciclo para a sua vida. Dentro deste contexto, o intelectual passará a residir no reino normando da Sicília, servindo na corte do rei Rogério II. A mudança teria ocorrido possivelmente em 1138.
No ano de 1154, Muhammad al-Idrisi apresentaria a célebre “Tabula Rogeriana”, espécie de “mapa-mundi” colorido que ilustrava os continentes europeu e asiático, bem como o Norte de África. Por outras palavras, o nosso cartógrafo tentou desenhar aquele que seria, na altura, o mundo até então conhecido. Como já disséramos anteriormente, o mapa pautava-se pela qualidade do desenho e por uma minúcia surpreendente para a época em questão. Para concretizar este prodigioso trabalho, al-Idrisi teve naturalmente de realizar viagens (já elencámos algumas delas no sub-tópico anterior!), de consultar mapas e descrições geográficas antigas, e de estabelecer contactos privilegiados com mercadores e exploradores muçulmanos (estes conheceriam, por exemplo, algumas zonas de África, a região asiática junto ao Oceano Índico ou até mesmo o Extremo Oriente) e ainda com viajantes ou aventureiros normandos (provenientes do Norte da Europa). O mapa resultante de toda esta investigação complexa incluiria ainda comentários e legendas em arábico. As suas conclusões, contidas no documento cartográfico que então criara, seriam seguidas por diversos geógrafos muçulmanos tais como Ibn Battuta, Ibn Khaldun e Piri Reis. O seu mapa também seria levado, mais tarde, em especial consideração pelos célebres navegadores Cristóvão Colombo e Vasco da Gama que pretendiam conhecer bem a realidade em que estavam inseridos.










Imagem nº 3 - A Tabula Rogeriana, obra-prima de al-Idrisi concretizada em 1154, pouco tempo antes do rei Rogério II falecer.
Mapa-Mundi atribuído a al-Idrisi.




Caracterização do seu Mapa-Mundo

No Mar do Norte (ou no "Atlântico Norte", se procurarmos ser mais abrangentes), al-Idrisi assumiu como natural a existência de um importante conjunto de ilhas: a Inglaterra, a Irlanda, a Islândia e até a Gronelândia (a qual designa de “Grande Irlanda”). Aqui a precisão esteve longe de ser a ideal até porque esta não era uma região que al-Idrisi havia conhecido tão bem ao longo da sua vida.
O mesmo não podemos dizer da Península Ibérica, da França, do Mar Mediterrâneo e das suas ilhas, da Anatólia, da Península Arábica, da Pérsia e do próprio Norte de África que surgem minimamente bem retratados, tendo em conta as ínfimas informações disponíveis na época em que al-Idrisi aceitara este desafio tremendo. Também o Oceano Atlântico, o Mar Adriático, o Estreito de Bósforo, o Mar Negro, o Mar Cáspio, o Mar Vermelho, o Golfo Pérsico e o Oceano Índico são realçados no mapa.
Relativamente ao continente asiático, o desenho está longe das configurações hoje conhecidas, o que é natural tendo em conta o facto de, naquela época, este extenso território não ter sido ainda inteiramente desvendado pela civilização ocidental. Aliás, o conceituado explorador veneziano Marco Polo ainda não tinha sequer nascido! Confrontado com esta realidade obscura, al-Idrisi terá ficado refém das informações nem sempre exactas dos mercadores que teriam alguma participação nas rotas asiáticas. Não obstante, este cartógrafo não excluiu a China do seu mapa, efectuando menção aos seus barcos que transportavam seda, couro, peles, ferro e espadas. Além disso, teria feito alusão às vidrarias da cidade de Hangzhou e à produção especializada de seda em Quanzhou. Detalhes que atestam o esforço de al-Idrisi em compilar todos os dados então obtidos.
O seu mapa-mundo conheceu ainda a particularidade de ter sido apresentado em sentido inverso (com o sul em cima e o norte em baixo), embora na ilustração em cima, o mesmo esteja já readaptado conforme os ditames actuais (o norte em cima, e o sul em baixo).





Imagem nº 4 - Rogério II (ou Roger II, em inglês) reinou na Sicília entre 1130 e 1154. A ele se deve o início da dinastia normanda na ilha que deixaria então o anterior estatuto de condado para se tornar num reino reconhecido pelas instâncias católicas. O seu pai, Rogério I, conde da Sicília (1072-1101), havia expulsado os sarracenos que antes dominavam aquele território. Além de ser fiel à faceta belicista e à política centralizadora do seu progenitor, Rogério II também procurou rodear-se de intelectuais de diversas nacionalidades, cultivando assim as artes e a cultura. Demonstrou ainda especial interesse pelo conhecimento da vertente marítima.
Retirado de: https://www.geni.com/




Nuzhat al-Mushtaq

Muhammad al-Idrisi apresentaria uma segunda obra – o Kitab Nuzhat al-Mushtaq Fi’khtiraq al-‘afaq (“O livro dos prazerosos viajantes até terras longínquas”). Esta obra foi preservada em nove manuscritos, sendo que sete dos quais contêm mapas. Este seu novo trabalho albergava ainda descrições textuais de natureza geográfica, disponibilizando assim conteúdos relevantes sobre determinadas terras, serras, montanhas, rios, mares...
Na introdução, Idrisi indicou os nomes de dois famosos intelectuais que o inspiraram no aprimoramento das coordenadas geográficas – Cláudio Ptolomeu e “um astrónomo” que deverá ter sido Ishaq Ibn al-Hasan al-Zayyat. Al-Idrisi cruzou igualmente testemunhos orais de diversos informadores de modo a almejar um sentido de consistência.
Esta obra de al-Idrisi fornece-nos também um importante testemunho sobre o Oceano Atlântico. Recorrendo a alguns testemunhos da época, o cartógrafo árabe admite os seus perigos desconhecidos, nomeadamente as terríveis tempestades, as gigantescas ondas, as dimensões intermináveis, as névoas traiçoeiras e as “feras mortíferas”. Todavia, al-Idrisi interroga-se sobre o que este oceano poderia esconder nos seus confins, embora estando ciente que, pelo menos, existiriam muitas ilhas (habitadas ou desertas) no seu seio.
Dentro deste contexto, al-Idrisi conta a velha história (verídica ou somente fantasiosa?) de um grupo de aventureiros (“Mughamarin”) saídos de Lisboa (quando esta ainda estaria sob domínio árabe) que tentaram satisfazer a sua curiosidade sobre os mistérios do inexplorado Oceano Atlântico. De acordo com o relato, estes ousados viajantes teriam alcançado uma ilha habitada, ao fim de 12 dias de navegação em águas desconhecidas. Aí teriam sido feitos prisioneiros por um grupo tribal que os cercara através das suas barquetas. Todavia, acabariam por ser transportados até à costa continental, onde seriam libertados junto a um lugarejo (berbere?). Tendo em conta a limitada duração da viagem e o facto de um dos indígenas dominar minimamente o idioma arábico (segundo o relato compilado), é tentador afirmar que estes aventureiros teriam estado nas ilhas de Grande Canária ou Tenerife que seriam habitadas por tribos guanches que mantinham contactos esporádicos com a costa marroquina islamizada. No entanto, estes testemunhos também dão azo à possibilidade de muitos destes ousados viajantes terem chegado a outros arquipélagos (embora desabitados e ainda não identificados pelo homem) como a Madeira, Cabo Verde e até Açores.





Imagem nº 5 - Outro mapa da autoria de al-Idrisi. O norte surge retratado em baixo, enquanto o sul está em cima. Ou seja, a sua interpretação deve seguir uma lógica invertida. É de realçar a configuração esférica que atribuiu ao nosso planeta.
Mapa-Mundi atribuído a al-Idrisi









Imagem nº 6 - Al-Idrisi descreve textualmente a Finlândia. Provavelmente, o geógrafo terá recorrido a informações reportadas por aventureiros normandos que agora mantinham relações comerciais e políticas muito próximas com a Sicília.
Direitos - Wikipédia




Contribuições nas áreas da Botânica e da Literatura

O “Kitab al-Jami-li-Sifat al-Nabatat” (“Manual simples das plantas medicinais”) foi um dos outros trabalhos atribuídos a al-Idrisi. O prestigiado geógrafo árabe interessou-se ainda pela área da botânica, canalizando maior atenção para o conhecimento das plantas medicinais. Idrisi teria procedido à listagem e descrição dos nomes de medicamentos em diversas línguas como o berbere, o siríaco, o persa, o hindi, o grego e o latim. Além de possuir elevados conhecimentos ao nível dos idiomas e das plantas medicinais, o nosso cartógrafo teria ainda analisado com especial atenção a zoologia e a fauna das diversas regiões que visitara no âmbito das suas viagens.
Al-Idrisi teria igualmente manifestado interesse pela literatura do seu tempo, algo que o terá influenciado a compor prosa e poesia arábicas. No entanto, pouco se sabe sobre o seu legado nesta área do saber.




 

Imagem nº 7 - Exemplar antigo de um tratado árabe de botânica.




Morte e Legado

Entre os anos de 1165 e 1166, Muhammad al-Idrisi faleceria na ilha da Sicília, depois de ter trabalhado vários anos junto da corte sediada em Palermo. Outros historiadores acreditam que o local da sua morte teria sido em Ceuta, cenário que sugeria um eventual retorno à sua terra natal. Contudo, a primeira hipótese parece-nos mais credível, visto que a influente família dos al-Idrisi sempre motivara algum desconforto ou constrangimento a determinados sultões muçulmanos (ver notas-extra nº 2 e 4). Assim sendo, e após a realização de viagens importantes, Idrisi teria provavelmente permanecido na Sicília até ao seu falecimento.
No que diz respeito ao seu legado, Al-Idrisi defendeu igualmente a esfericidade da Terra. De acordo com um comentário da sua autoria, “a terra é redonda como uma esfera, e as suas águas se aderem a ela e se mantêm nela através do equilíbrio natural que não sofre variação”. Todavia, é justo reconhecer que o cartógrafo árabe não foi o primeiro intelectual a defender esta teoria, contudo ele faria parte de uma linha restrita de intelectuais que ousadamente afrontara, desde cedo, o mito popular (bastante enraizado) de que a Terra seria plana. A saga dos Descobrimentos (séculos XV-XVIII) comprovaria que al-Idrisi e outros não estavam equivocados relativamente às teses que haviam proposto e que seriam alusivas à configuração redonda do planeta.





Imagem nº 8 - Muhammad al-Idrisi apresenta, na corte de Palermo, um dos seus trabalhos a Rogério II, rei da Sicília.




Notas-extra: 

  1. O seu nome completo seria: Abu Abd Allah Abdullah Muhammad ibn Muhammad ibn Ash Sharif al-Idrisi. Os biógrafos propõem o seu nascimento para os anos de 1099 e 1100 (no texto em cima, optámos por esta última data).
  2. Muhammad al-Idrisi descenderia de uma linhagem de antigos príncipes, califas e de importantes vultos religiosos conotados com o Profeta Maomé. Os seus antepassados, os hamúdidas, chegaram a ter alguma influência na Espanha Muçulmana (através do domínio de algumas taifas) e no Norte de África. A queda de Málaga em 1057 levou os seus antepassados a abandonar a Península Ibérica, rumando à região de Marrocos.
  3. O nosso biografado explorou numa sequência de jornadas aventureiras várias regiões da Península Ibérica, incluindo Portugal e a zona norte de Espanha. Al-Idrisi registou ainda rotas e/ou itinerários integrados nos Caminhos de Santiago.
  4. A um dado momento da sua vida, al-Idrisi tentou afastar-se da instabilidade política existente no al-Andalus e no próprio Norte de África. Mas porque é que teria escolhido a ilha de Sicília como destino para o seu refúgio? A resposta a esta pergunta poderá residir nalgum aconselhamento familiar, visto que existiam hamúdidas a viverem naquele reino normando, gozando da protecção do rei Rogério II (este governou entre 1130 e 1154). A família de al-Idrisi porteava um passado intimamente associado às prestigiadas esferas do poder, facto que poderia granjear invejas e rivalidades da parte de alguns reis ou governadores muçulmanos. O rei Rogério II teria garantido segurança bem como uma respeitosa pensão a al-Idrisi, propondo-lhe talvez como contrapartida a criação de um mapa-mundo.
  5. Durante a sua estadia na corte siciliana de Palermo, al-Idrisi terá composto um planisfério (ou um disco?) de prata onde exibia um mapa do mundo. Consta-se que esta obra teria desaparecido no decurso do século XII, situação talvez provocada por um saque promovido por alguns nobres normandos de má-fé durante o ano de 1161. Foi-lhe ainda atribuído um pequeno tratado geográfico (trabalho também desaparecido) durante o reinado de William I (ou Guilherme I; reinou entre 1154-1166), sucessor de Rogério II.


Referências Consultadas: