Este site foi criado com o intuito de divulgar os feitos mais marcantes no decurso da história mundial

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Pedro I, o derradeiro e prestigiante rei cruzado do Chipre


1- Contexto e a ascensão de Pedro ao trono do Chipre

A dinastia dos Lusignan (de origem francesa) havia sido imposta no Chipre desde os tempos da Terceira Cruzada (1189-1192), quando Ricardo Coração de Leão se apoderou do Chipre (sendo que posteriormente venderia este reino a Guido de Lusignan, soberano cessante de Jerusalém, o qual seria preterido na Terra Santa pelo protagonismo crescente do seu novo rival Conrado de Montferrat) ainda antes de aportar na costa levantina, onde seria bem sucedido na tomada de São João de Acre e nas batalhas de Arsuf e Jaffa. Mas este empreendimento militar só adiou o que aconteceria cerca de 100 anos depois,  quando o último grande bastião (São João de Acre) dos cruzados cai violentamente nas mãos do implacável sultão mameluco al-Ashraf Khalil  em 1291. Pouco tempo depois era extinta, de forma polémica, a Ordem dos Templários, uma organização nuclear da guerra santa cristã. O prestígio das cruzadas já não era tão apelativo, e por isso, os grandes reis da Cristandade começaram a desinteressar-se pelos assuntos inerentes à Terra Santa.
Foi após esse contexto que Pedro nasceu em 1328 na cidade cipriota de Nicósia, e tornar-se-ia mais tarde num dos soberanos mais bem-sucedidos da história daquela pequena, embora estratégica, ilha mediterrânica. Era o segundo filho do rei Hugo IV do Chipre, todavia o falecimento do seu irmão mais velho Guido em 1343 colocou-o no topo da linha sucessão a seu pai, sendo que este ainda reinaria até 1359.
Sobre os seus anos iniciais, pouco se conseguiu apurar. A tradição refere que o ainda infante teria realizado uma viagem secreta à Europa, embora não se conheçam exactamente os detalhes que envolveram este procedimento. Em 1347, é designado conde nominal de Tripoli, cidade portuária que já havia caído em 1289 às mãos dos mamelucos. Tratava-se apenas dum título formal desprovido de qualquer viabilidade governativa ou executiva.
Em 1359, ocorre a morte de Hugo IV e, como consequência, Pedro é coroado na Catedral de Santa Sofia em Nicósia como novo rei do Chipre. Iniciava-se agora um novo ciclo da história cipriota. Hugo havia sido um rei culto, versado na aplicação da justiça e demonstrando interesse pelas artes, literatura e filosofia, mas Pedro debruçava-se sobre novas prioridades, exibindo energia e valentia para empreender campanhas militares na tentativa de travar o avanço muçulmano que era já bastante evidente até no Mar Mediterrâneo. Sonhava ainda com a recuperação de Jerusalém, ele mesmo que em 1360, tinha sido coroado em Famagusta como rei nominal de Jerusalém que tinha deixado de estar na mão dos cristãos desde 1244, quando os turcos corésmios tomaram a Cidade Santa, desde então inalcançável para os cristãos. Por outras palavras, desejava reviver o espírito de cruzada. O Chipre era na altura o posto mais avançado da Cristandade na guerra contra os temíveis turcos.
O primeiro pedido de auxílio adveio do reino arménio da Cilícia que se encontrava em total declínio dado o avanço das forças turcas. Através do envio de frotas, os cipriotas auxiliam imediatamente na defesa bem conseguida de Coricos (cidade portuária arménia que estava a ser sitiada pelos invasores) e ainda aproveitaram tal campanha para conquistar Adália (também conhecida como Antália), uma das importantes fortalezas dos turcos. Por fim, saquearam ainda Myra. Estas acções decorridas entre 1361-1362 favoreciam os interesses dos mercadores cipriotas (estes desejavam tirar proveitos das trocas comerciais com a Ásia Menor) bem como as intenções de segurar um futuro e potencial território de desembarque para uma campanha de elevadas dimensões, o que não veio efectivamente a suceder-se dado o desinteresse das principais forças europeias em lançar uma grande expedição rumo à Ásia Menor.
Efectivamente, veremos Pedro a rumar novamente ao continente europeu em 1362, procurando apoios para a sua causa cruzadística. A viagem bem como as burocracias inerentes obrigaram-no a ficar quase três anos a vaguear pelos reinos cristãos do Ocidente. Pedro foi recebido em pompa e circunstância pelas cortes de França, Inglaterra, Flandres, Polónia e Hungria. Teve ainda uma audiência com o Papa em Avinhão. Mas os resultados foram aquém dos esperados pelo soberano cipriota. É verdade que o rei João II de França revelou algum interesse no projecto cruzadístico, mas faleceria antes de tomar qualquer parte numa potencial expedição. Como se não bastasse, a Guerra dos Cem Anos ocupava os soberanos franceses e ingleses, acrescendo ainda a clara indiferença do imperador germânico. Por conseguinte, Pedro teve de se contentar apenas com uma pequena força de soldados veteranos que zarpou de Veneza e se juntou assim à sua causa. Para alcançar este destacamento limitado mas útil, o rei cipriota teve de mostrar as últimas cartas (que acabara de receber do Oriente) ao Papa Urbano V, alertando que a recém-conquistada Adália estava a ser alvo dum novo ataque turco que visava recuperar esta fortaleza, além disso, há conhecimento do desembarque de algumas forças turcas no norte do Chipre, ilha essa que estava ainda a ser alvo duma terrível peste. Apesar destas desmoralizantes notícias, Pedro I do Chipre prometia retaliar e demonstraria que um rei dum pequeno território jamais poderia ser subestimado pelos principais líderes do mundo daquele tempo.





Imagem nº 1 - O rei Pedro I do Chipre alcançaria várias façanhas no plano militar, embora na vertente diplomática, não tenha reunido os apoios necessários para colocar em marcha os grandes planos que tinha em mente.
Fresco da autoria de Andrea de Bonaiuto (século XIV) num templo de Florença (in Wikipédia)




Imagem nº 2 - As Cruzadas deixaram de ser apelativas no Levante e na Ásia Menor. Neste quadro da autoria de Karl Friedrich Lessing (1808-1880), veja-se um cruzado idoso, isolado e com o estandarte rasgado, juntamente com um cavalo tristonho.
Retirada de: http://forum.paradoxplaza.com/forum/showthread.php?615411-The-Stuff-of-Kings-A-House-of-Burgundy-AAR


2 - A Cruzada de Alexandria (1365)


Depois da aventura europeia, a qual se traduziu em escassos resultados diplomáticos, Pedro passa por Rodes, procurando igualmente o auxílio dos hospitalários para a sua campanha de retaliação. Alguns emires turcos, nomeadamente os de Jonia, temendo que o ataque se dirigisse à Ásia Menor, acordaram imediatamente pagar um tributo ao rei cipriota desde que este não os atacasse. Mas Pedro, ao contrário do que muitos previam, não tinha em mente um novo ataque à costa da Anatólia, mas sim perpetrar uma acção militar num dos territórios mais poderosos do Islão: o Egipto, onde estava enraizada a poderosa dinastia mameluca que havia causado a queda dos últimos redutos cristãos na Palestina, na segunda metade do século XIII. Além disso, o Chipre suspeitava igualmente um ataque iminente dos egípcios ao seu território, e por isso, não desconfiava apenas dos turcos, seus inimigos tradicionais.
O secretismo da expedição determinaria um ponto favorável aos cipriotas e seus aliados (hospitalários e a pequena força de venezianos): o factor surpresa. Ninguém poderia prever a ousadia de tais planos, nem mesmo os espiões ao serviço do sultão egípcio. Pedro iria promover uma guerra preventiva para dissuadir os líderes egípcios de qualquer ambição futura dum potencial ataque aos domínios cipriotas. O alvo estava decidido: a cidade milenar de Alexandria, outrora a capital do Egipto antes do domínio muçulmano.
Estávamos em Outubro de 1365, Pedro apesar de ter desejado mais reforços, conseguiu mesmo assim juntar uma força estimada em 10 mil soldados (entre os quais cerca de 1400 cavaleiros) que integravam uma frota de 165 barcos, de acordo com a projecção do historiador John France. Indiscutivelmente, dispunha de meios suficientes para causar sérios danos a um dos inimigos mais temíveis daquele tempo, mas o seu exército era, em simultâneo, claramente insuficiente para colocar em marcha uma ambiciosa campanha que intentasse tomar o Egipto e recuperar a Terra Santa para os cristãos. Efectivamente, ainda hoje se debate qual fora o principal motivo que conduziu o rei cipriota a esta campanha: terá sido apenas uma acção de guerra preventiva, ou o seu fervor cruzadístico ambicionava mesmo a conquista do Egipto e da Terra Santa, ou será que Pedro desejava apenas forçar um acordo político e comercial benéfico com os egípcios, de forma a inverter o declínio económico do Chipre?
O que se sabe é que no dia 9 de Outubro, as tropas do rei cristão desembarcam diante de Alexandria, surpreendendo os responsáveis daquela cidade. Terá ocorrido imediatamente uma batalha inicial, na qual Pedro I do Chipre liderou com mestria o ataque campal, talvez no exterior da urbe, derrotando os destacamentos militares egípcios de Alexandria. De acordo com alguns cronistas muçulmanos (visão partilhada por Van Steenbergen que abordou este conflito), as forças cristãs criaram vários pontos de diversão, procedendo a desembarques múltiplos e faseados em diferentes espaços da costa alexandrina. Por exemplo, suspeita-se que um importante contingente de cruzados chegou a esconder-se num cemitério até aguardar ordens expressas para auxiliar no ataque final. Esta tese explicaria facilmente a vitória total dos cipriotas que assim atacariam por todas as frentes as forças defensivas que haviam saído em direcção ao porto, ignorando estas a existência de outros destacamentos cristãos que já haviam desembarcado noutros pontos da costa de Alexandria. O cenário de encurralamento dizimou vários soldados egípcios e trouxe o pânico total à cidade. É muito provável que após este cenário de desorganização defensiva, a guarnição egípcia tivesse acabado imediatamente por desertar, sendo que também há a hipótese dos seus elementos terem tombado quando também saíram em defesa da sua urbe. Assim se explicaria a penetração imediata das forças cristãs no interior da cidade, recorrendo à pilhagem durante dois ou três dias (até 12 de Outubro). 
De acordo com manuscritos antigos, teriam tombado 20 mil egípcios e 5 mil foram feitos cativos e destinados posteriormente à escravatura. Todavia, estes números adiantados são interpretados como claramente exagerados. Quanto às baixas do lado cristão, desconhecemos estimativas, mas é provável que tivessem sido reduzidas. Os estragos materiais em Alexandria também foram evidentes, com templos, mercados e até a sua conceituada livraria a pagarem um elevado preço pela ira dos invasores que agora se dedicavam ao saque dos tesouros daquela cidade.
Apesar do êxito imediato, os responsáveis desta cruzada rapidamente se consciencializam que não detêm envergadura militar suficiente para se lançar à conquista do Egipto. Afinal não era verdade que, com forças numericamente bem superiores, o cardeal português Paio Galvão (ou Pelayo Gaitán, para aqueles que defendem as suas origens leonesas) e o rei nominal de Jerusalém - João de Brienne, na Quinta Cruzada (1217-1221), e o soberano francês Luís IX, na Sétima Cruzada (1248-1254), não haviam fracassado estrondosamente quando tentavam rumar ao Cairo, depois de terem tomado a cidade portuária de Damieta? A força conjunta de cipriotas, venezianos e hospitalários de Rodes poderia estar bem organizada, contando com um líder valente e impetuoso, mas não estava seguramente preparada para enfrentar um ciclo de sucessivas e duras batalhas perante exércitos egípcios mais coesos e bem organizados, os quais para além de serem numericamente superiores, contariam ainda com o decisivo conhecimento do terreno. Face a esta realidade incontornável, Pedro sentiu-se impotente, mais ainda quando constatou que os barões que o acompanhavam não o incentivavam sequer a tentar apenas segurar a cidade conquistada nestes dias. Estavam pois ansiosos em deixar solo egípcio com os seus ricos despojos. Entretanto, chegaram rumores de que um importante exército egípcio já rumava em direcção a Alexandrina, factor que terá apressado o abandono da cidade. Em 12 de Outubro, isto é, 3 dias depois de terem tomado a cidade, as forças cristãs deixavam Alexandrina deserta, com muitos edifícios em ruína e sem vários dos seus tesouros...
O sultão egípcio sentiu-se humilhado pelo escândalo, e em jeito de represália, encetou uma perseguição aos mercadores cristãos que desempenhavam o seu ofício no Egipto e na Síria.
Pouco tempos depois, e aconselhado pelo Sumo Pontífice que não tinha conseguido convencer os reis europeus a juntarem-se ao soberano cipriota, o rei Pedro teve de acordar tréguas pouco sólidas com o Egipto, pois existiram, pelo meio, provocações militares mútuas que atrasaram este processo de entendimento.




Imagem nº 3 - A entrada triunfante das forças cristãs em Alexandria.


3- Anos finais e Assassinato


Em 1368, Pedro é novamente visto na Europa, demonstrando uma vez mais o interesse de recrutar novos reforços militares e pedindo desta feita a instauração dum novo dízimo na Cristandade para financiar o seu ambicioso projecto de cruzada que sempre desejara colocar em prática. Tal como das outras vezes, o rei do Chipre teve pouca sorte. Entretanto, os arménios voltaram a solicitar-lhe ajuda, enviando uma delegação de chefes que o encontrariam em Roma, aquando da estadia daquele pelo Ocidente. Sem surpresa, Pedro acedeu novamente aos seus pedidos e prometeu enviar em breve uma armada para combater as forças turcas. Todavia, quando regressa ao Chipre para preparar uma eventual expedição à Ásia Menor, constata que a sua mulher - a rainha Leonor de Aragão não lhe havia sido fiel e como tal, começa a perseguir os favoritos da sua esposa, distanciando-se assim de vários barões influentes e até dos seus irmãos. O isolamento ser-lhe-ia fatal, pois as intrigas internas determinariam o seu fim. Em Janeiro de 1369, seria assassinado à traição nos seus aposentos por um grupo de nobres que tinha conspirado contra a sua pessoa. Foi sucedido pelo seu filho Pedro II que à data do seu falecimento só contava 12 ou 13 anos de idade.
Pedro I do Chipre fora ainda responsável pela fundação da "Ordem da Espada" do Chipre, a qual teoricamente era dedicada ao sonho da recuperação da Terra Santa, embora só se tivesse contentado com incursões marítimas no Mediterrâneo Oriental ou na defesa do território cipriota contra os ataques dos muçulmanos (turcos ou egípcios).





Imagem nº 4 - Ao fim de cerca de 10 anos de reinado, Pedro I do Chipre (1359-1369) acabou por ser alvo duma conjura que resultou no seu assassinato.
Iluminura do século XV - Biblioteca Nacional de França (in Wikipédia)



Referências Consultadas:

  • FRANCE, John - The Crusades and the Expansion of Catholic Christendom, 1000-1714. Taylor & Francis, 2005.
  • HILL, George - A History of Cyprus. New York: Cambridge University Press, 2010.
  • SETTON, Kenneth Meyer (ed.) - A History of the Crusades. Vol. III - The fourteenth and fifteenth centuries. Londres: The University of Wisconsin Press, 1975.
  • http://weaponsandwarfare.com/?p=28223, (Consultado em: 29-09-2014).
  • http://www.cypnet.co.uk/ncyprus/history/lusignan/3pierre1.htm, (Consultado em: 29-09-2014).
  • Wikipédia (embora seja uma fonte electrónica que mereça da nossa parte alguma cautela, dado o facto de qualquer pessoa, com conhecimentos ou não sobre a matéria em questão, poder redigir qualquer artigo, a verdade é que nos artigos sobre Pedro I do Chipre e a Cruzada Alexandrina (versões espanhola e inglesa), extraímos um número, embora limitado, de detalhes que consideramos úteis, até porque na nossa pesquisa, efectuada em círculos próximos, não conseguimos detectar obras e artigos electrónicos que se debruçassem de forma alongada sobre a biografia deste soberano cipriota que acabamos de abordar). Este site poderá ser evidentemente utilizado como uma ferramenta útil, desde que os textos aí citados sejam minimamente credíveis na óptica do utilizador (o que poderá ser atestado com referências citadas ou uma descrição lógica dos acontecimentos que deva bater certo com livros ou outros artigos consultados), o que parece ser o caso, quando estudei este capítulo específico da História do Chipre, um reino sobre o qual não há muita informação nas bibliotecas mais próximas.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Esmoriz - uma terra com história multifacetada

Esmoriz é actualmente uma cidade (estatuto que detém desde 1993; antes era vila desde 1955) que pertence ao Concelho de Ovar - Distrito de Aveiro, e que alberga uma população cifrada em mais de 11 mil habitantes. 
Em termos históricos, esta localidade dá-se a conhecer ao mundo em variadas vertentes, a saber:

  • A indústria da Tanoaria. A arte de fabricar pipas ou barris que envolviam o vinho do Porto e outros produtos começa a florescer em Esmoriz nos inícios do século XX, embora já tivéssemos conhecimento anterior de tanoeiros esmorizenses que, nos séculos XVIII e XIX, exerciam este ofício em tanoarias fora da freguesia (por exemplo: em Gaia). Apesar da decadência recente deste ofício tradicional, ainda hoje restam duas ou três unidades que se dedicam a preservar este legado. É, por exemplo, o caso da Tanoaria - JOSAFER. Existe ainda na cidade um imponente monumento dedicado a este artífice.
  • A Barrinha de Esmoriz. A primeira referência documental sobre este espaço encontra-se datada para o século IX, onde é designada por Lagoa de Ovil, talvez pela sua proximidade em relação ao Castro de Ovil, este sito em Paramos. Enquanto fonte de recursos, foi acerrimamente disputada por nobres e povo, como o demonstram as inquirições de D. Dinis de 1288. No século XIII, a lagoa (que se prolongava então até Cortegaça) possuía ainda um porto de abrigo para pequenas ou modestas embarcações. Nestes tempos mais recuados, a prática pesqueira (aqui sobressaía o interesse pelas enguias, tainhas, linguados, lampreias, mugens e solhas) e a procura de madeira (para fins habitacionais), juncos, ervanços, muinha, rapilho, estrume, (para necessidades agrícolas) no meio envolvente também constituíram uma realidade frequentemente visível. Mais tarde, e depois de vários pleitos pela sua disputa (como mencionamos, a lagoa antigamente era cobiçada enquanto sítio repleto de recursos), a Barrinha tornou-se numa atracção turística, acolhendo banhistas portugueses e estrangeiros que se deliciavam nas suas águas calmas. Numa das obras de Júlio Dinis (vulto do Romantismo Português do século XIX), há referência a uma antiga ponte sobre a lagoa (da qual só restam hoje as ruínas decrépitas dos seus alicerces ou pegões, embora esteja em equação um projecto para a reconstrução duma nova passagem) que fazia a ligação entre Esmoriz e Paramos que partilham entre si este espaço natural. O seu  meio envolvente é ainda conhecido pela biodiversidade em termos de fauna (por ex.:há mais de uma centena de aves documentadas, entre as quais, podemos elencar águias, falcões, gaivotas, garças-reais, patos...) e flora (a jasione lusitânica constitui um exemplar curioso na área da vegetação). Nas últimas décadas, a Barrinha foi uma vítima fácil da praga da poluição doméstica e industrial, o que inviabilizou a prática pesqueira e os saudáveis banhos que até então maravilhavam multidões. O seu antigo cais que outrora servia para transportar as pessoas desde a Estação da CP até à Praia de Esmoriz ficou votado ao abandono e a um inevitável desaparecimento.
  • Os Palheiros. Edifícios palafíticos antigos que se "plantaram" na zona à beira-mar e que se erguiam sobre estacas. Foram construídos maioritariamente por pescadores que aí garantiam o seu alojamento (embora em condições precárias) e guardavam as redes e demais materiais de pesca. É um dos típicos cartões de visita de Esmoriz.
  • A arte Xávega. Pesca artesanal de arrasto com recurso a um extenso pano de rede (de cerco) o qual visa capturar o maior número possível de peixes. Todo este aparelho de pesca é lançado por uma embarcação ao mar, e depois puxado na praia por um tractor, ou antigamente, pelo recurso à tracção animal ou força braçal. Ressalva-se novamente o papel da actividade piscatória em Esmoriz, não sendo por isso de estranhar a existência dum outro monumento erguido relacionado sobre esta prática tradicional bastante visível em muitos dos pontos do litoral.
  • Os templos cristãos. Esmoriz é uma terra com elevada religiosidade na vertente católica. Atestam-no actualmente a Igreja Matriz (remontará nas suas origens ao século XVI, embora tivesse sido completamente reedificada em 1895), a Capela de Nosso Senhor das Febres (ou comummente conhecida como Capela/Igreja de Gondesende), a Capela de Nosso Senhor dos Aflitos (ou tradicionalmente designada como Capela da Praia) e a Capela de Nossa Senhora da Penha (esta tem as suas origens no século XVII, e apesar das suas humildes dimensões, ostenta no seu interior, um altar esplendoroso de  talha dourada no estilo barroco. O ponto alto da localidade são as Festas do Mar em honra de Nosso Senhor dos Aflitos e Nossa Senhora da Boa Viagem, as quais testemunham a presença de milhares de fiéis, correspondendo assim à festividade mais popular da localidade.
  • A rocha magmática de Gondesende. Pelos vistos, foram encontrados exemplares desta pedra cujas origens remontam há mais de 600 milhões de anos. Este lugar que faz parte de Esmoriz é ainda conhecido por albergar uma necrópole medieval, agora soterrada, que deve pertencer ao período suevo-visigótico (séculos V-VIII), isto para além da sua antiga toponímia indiciar a existência de monumentos megalíticos (nomeadamente mamoas pré-históricas) cujo rasto ou localização exacta é hoje impossível de precisar.
  • Legado cultural. Esmoriz é uma terra que acolheu poetas de notável gabarito: Florbela Espanca (embora natural de Vila Viçosa) viveu aqui cerca de 2 anos talvez por volta de 1925; Boanerges Cunha e Isabel de Sá, naturais de Esmoriz, também se destacaram na arte de compor versos. Além da poesia, a cidade dá cartas no teatro, contando actualmente com colectividades de qualidade inegável (casos do Grupo de Teatro Renascer e d'Os Arautos) que foram igualmente antecedidas no passado por outros grupos que também se dedicaram à especialidade da representação. Na música, o Grupo de Bandolins de Esmoriz expressa o talento duma vertente musical singular que tem cativado multidões.
  • Tradição Desportiva. O voleibol é o desporto por excelência, com o Esmoriz Ginásio Clube no papel duma instituição desportiva laureada com diversos títulos nas camadas jovens, além de dois campeonatos nacionais e uma taça de Portugal em séniores masculinos. O futebol conta com a participação do Sporting Clube de Esmoriz que nos seus píncaros chegou a disputar a antiga II divisão B. Por fim, destacamos o surf que atrai a adesão de praticantes portugueses e estrangeiros. Não menos importante, destacamos ainda a figura da esmorizense de nascimento Maria Joaquina Flores que, no atletismo veterano feminino, tem representado com grande categoria o nosso país nas competições internacionais (europeus e mundiais) em solo estrangeiro, coleccionando várias medalhas de ouro, prata e bronze.

Além destas premissas que tornam a história e o património de Esmoriz bastante singulares, a verdade é que esta localidade se distingue ainda pela sua majestosa praia e pelas aprazíveis esplanadas à beira-mar que convencem muitos dos turistas a visitar esta localidade. Também o Novo Parque Ambiental do Buçaquinho, um parque ambiental de lazer inaugurado no dia 25 de Abril de 2013, oferece ao visitante a possibilidade de usufruir um contacto calmo e harmonioso com a Natureza.
Como observamos, os momentos mais altos da história de Esmoriz parecem situar-se nos últimos dois ou três séculos. Todavia, isto não impede o nosso raciocínio de incutir a esta localidade raízes antigas. Possivelmente, terão existido monumentos megalíticos (cuja existência apenas foi registada pela toponímia posterior) em Gondesende. Totalmente comprovada está a presença duma necrópole (ou cemitério) dos povos bárbaros que deverá ter sido erguida e utilizada na Alta Idade Média. No período da Reconquista, detectamos imediatamente menção ao conde cristão Gundesindo, o homem que esteve na origem da designação toponímica de Gondesende. Tratou-se pois dum cavaleiro que viveu no século IX ou X (a datação não é inteiramente precisa) e que foi igualmente conhecido por ter fundado alguns mosteiros (nomeadamente o de Azevedo em S. Vicente de Pereira - Ovar, e o de Sanguedo na Vila da Feira). Sobre a origem do topónimo de Esmoriz, subsistem várias interrogações, Aires de Amorim, autor duma extensa e concisa monografia sobre a terra, menciona que tal designação adveio de Ermerico, outro nobre cristão da Reconquista cuja identidade desconhecemos por completo. Todavia, também temos de ponderar a possibilidade desta designação se ter baseado no nome do primeiro rei suevo da Galécia - Hermerico, uma personalidade que marcou uma nova era na Península Ibérica, e sobre o qual já elaboramos neste blog uma sucinta nota biográfica. 
Esmoriz é efectivamente uma pequena cidade que concilia contribuições de várias eras, o que a torna entusiasmante para quem deseja conhecer um pouco mais sobre a sua evolução ao longo dos tempos. 




Imagem nº 1 - A tanoaria é um ofício tradicional que se destacou com grande repercussão em Esmoriz.
Foto da autoria de José Fangueiro




Imagem nº 2 - Monumento de Homenagem ao Tanoeiro no centro da cidade.
Foto da autoria de Belmiro Teixeira
(Retirada de: http://www.eurekabooking.com/fr/guide/portugal/esmoriz/photos.html, veja-se ainda o site Panoramio)




Imagem nº 3 - A Barrinha de Esmoriz foi parte integrante da história da localidade.
Foto da autoria de Magda Moreira (Movimento Cívico Pró-Barrinha)



Imagem nº 4 - A lagoa visto do lado da Praia. No seu meio-envolvente, podemos testemunhar uma clara biodiversidade.
Foto da minha autoria




Imagem nº 5 - A Barrinha está habitualmente em contacto com o mar, embora exista, nos dias de hoje, um dique fusível que assegura a sua abertura ou fechamento, podendo assim interromper a sua ligação natural.
Foto da autoria de Rubim Almeida (Movimento Cívico Pró-Barrinha)



Imagem nº 6 - Exemplar dum Palheiro típico de Esmoriz (zona da Praia).
Retirada de: http://altasensibilidade.blogs.sapo.pt/56088.html, (Dâmaso Faria)





Imagem nº 7 - Monumento à Arte Xávega em Esmoriz. A actividade piscatória foi muito intensa nesta terra plantada no litoral diante do Oceano Atlântico.
Foto de Paulo Oliveira, retirada de:
 http://www.camping.de/de/pl%C3%A4tze/europa/portugal/unbekannt/esmoriz/camping_cortegaca.html




Imagem nº 8 - Igreja Matriz de Esmoriz e seu adro envolvente, o qual é coroado com um cruzeiro.
Foto da autoria de Santos Faria, retirada de: http://altasensibilidade.blogs.sapo.pt/tag/esmoriz





Imagem nº 9 - O interior da Igreja Matriz de Esmoriz, reedificada nos finais do século XIX.
Foto da autoria de Santos Faria, retirada de: http://altasensibilidade.blogs.sapo.pt/tag/esmoriz






Imagem nº 10- O exterior da Capela de Nossa Senhora da Penha, templo que vê as suas origens a remontar às décadas iniciais do século XVII.
Foto da minha autoria





Imagem nº 11 - O altar de talha dourada da Capela de Nossa Senhora da Penha.
Foto de M. Pires Bastos, Retirada de: http://artigosjornaljoaosemana.blogspot.pt/2012/11/algumas-notas-toponimicas-ovarenses.html




Imagem nº 12 - Florbela Espanca terá vivido cerca de 2 anos em Esmoriz, nos lugares da Casela e da Estrada Nova.
Retirada de: http://www.mensagenscomamor.com/poemas_e_poesias_de_florbela_espanca.htm




Imagem nº 13- Foto sobre o Centro urbano da Cidade.
Foto da minha autoria




Imagem nº 14 - Vista a partir do posto de observação sobre o Novo Parque do Buçaquinho (Esmoriz-Cortegaça).
Foto da minha autoria




Imagem nº 15 - Praia de Esmoriz.
Foto da minha autoria




Imagem nº 16 - O fluxo turístico na época balnear é considerável.
Foto da autoria de Henrique Araújo


Referências Consultadas:


  • AMORIM, Aires de - Esmoriz e a sua história. Esmoriz: Comissão de Melhoramentos, 1986.
  • HENRIQUES, Pedro - Esmoriz - Desde a Idade Média até à actualidade. Uma perspectiva sobre os estudos de Aires de Amorim. Publicação Electrónica, Esmoriz, 2013. Veja-se: http://pt.scribd.com/doc/149566930/Esmoriz-Desde-a-Idade-Media-ate-a-Actualidade
  • http://visao.sapo.pt/tanoaria-o-tesouro-da-cidade-de-esmoriz=f759821, (artigo da autoria de Ricardo Marques, consultado em: 25-09-2014).
  • Edições variadas do Jornal A Voz de Esmoriz e do Malho Tanoeiro.

Nota extra - Sobre a tipologia concreta da rocha magmática encontrada em Gondesende, não conseguimos apurar ainda mais dados em específico (até porque é uma matéria que não está directamente relacionada com a nossa área de investigação histórica), embora a sua existência tem sido bastante veiculada por vários cidadãos esmorizenses.

domingo, 21 de setembro de 2014

Santa Isabel da Hungria - A princesa dos pobres

Nascida em 1207 na Hungria, era filha do rei magiar André II (o qual havia participado nos primórdios da malograda Quinta Cruzada) e da rainha Gertrudes. Talvez com 4 ou poucos mais anos de idade, Isabel deixou a Hungria para viver na Turíngia (Germânia central), onde como veremos, contrairia matrimónio.
Desde cedo, começou a nutrir uma notável afeição pelo culto cristão, sentindo-se realizada quando visitava muitas das igrejas e capelas da região. Isabel era uma criança dócil, simples, pura e inocente. A sua mãe faleceria quando ela nem sequer tinha 10 anos de idade. Pouco tempo depois, era a vez do Duque Herman, responsável pela sua protecção e que era igualmente pai do seu futuro esposo, falecer repentinamente. Com apenas 13 ou 14 anos (o que era muito habitual na Idade Média), casou-se com o influente Duque Luís da Turíngia, formalizando o matrimónio que já havia sido prometido desde a tenra infância. Houve quem tivesse feito de tudo para evitar este casamento, porque Isabel era uma jovem piedosa e desligada da sumptuosidade que coloria a corte, não seguindo assim os regulamentos de etiqueta. Foi mesmo perseguida e alvo de discriminação e maus tratos, contudo o duque Luís (tal como o seu falecido pai Herman) eram cristãos justos e convictos e, como tal, admiravam muito o valor da jovem, estando dispostas a protegê-la dos maus olhares e da inveja.
Graças ao seu específico carácter, a princesa não esbanjou as suas posses ou rendas para concretizar os seus caprichos, pois sabia que eram muitos aqueles que atravessavam sérias dificuldades no seu tempo. Por isso, começou a distribuir esmolas e alimentos pelos pobres, e inclusive chegou ao ponto de ceder o seu próprio quarto para tratar das chagas dum leproso que desesperadamente pedia uma moeda junto à porta do castelo. O prestígio de Isabel crescia nos meios populares, mas na corte as críticas eram muitas, porque acusavam-na de estar a delapidar o património em causas pouco significantes (no entender dos seus detractores).
Isabel estaria ainda a par da divulgação dos ideais franciscanos, os quais teriam influenciado a sua visão sobre a vida. Dentro deste contesto, os exemplos de Francisco e Clara de Assis encorajaram-na a seguir um modelo de simplicidade e humildade.
No ano de 1226, uma grande crise instalou-se na Alemanha, sentindo-se fortemente os efeitos mais negros na Turíngia. A fome assolou a região e causou inclusive um número considerável de mortes. Pelos campos e estradas, visualizavam-se cadáveres dispersos de quem não tinha conseguido ultrapassar aquele momento crítico e cruel. Aproveitando-se da ausência do seu marido (estava em Itália com o imperador germânico Frederico II), Isabel deu ordens expressas para que se socorressem os mais necessitados. Investiu o dinheiro do tesouro ducal na caridade e no cuidado dos doentes. Contra à vontade de alguns administradores, mandou também abrir os celeiros do castelo, para que assim muitos conseguissem ter, pelo menos, acesso a uma ração diária. Terá ainda promovido a fundação de três hospitais para auxiliar os enfermos. Apesar dos seus inúmeros e incansáveis esforços de generosidade, viu muita gente a morrer à sua frente por fraqueza ou doença. Depois do período de desolação, cedeu sapatos, roupas e ferramentas a muitos dos trabalhadores, que haviam resistido àquele ano difícil, e assim puderam voltar aos campos para cultivar o trigo e demais produtos fundamentais para a subsistência das comunidades.




Imagem nº 1 - A princesa Isabel da Hungria praticou vários actos de caridade, cedendo várias esmolas e alimentos.



No ano de 1227, o seu marido procura acompanhar novamente o imperador germânico Frederico II, desta feita na jornada da Sexta Cruzada. Embora não tivesse havido lugar a qualquer derramamento de sangue, mas sim um acordo diplomático com o sultão egípcio al-Kamil que garantia o retorno de Jerusalém às mãos cristãs, a verdade é que Luís, duque da Turíngia e esposo de Isabel da Hungria, faleceria (vítima de peste) antes deste tratado, muito provavelmente na localidade italiana de Otranto, ainda antes da concretização da viagem marítima rumo à Terra Santa, cenário que abalou profundamente a situação da sua mulher.
Sem a protecção de Luís, Isabel ficava à mercê dos dois cunhados (Henrique e Conrado) que nunca a acolheram bem para além de denunciarem os seus actos excessivos de caridade. A partir deste momento, é expulsa do castelo com os seus três filhos sem terem direito a levar nada consigo. Para além disso, foi proibido que qualquer habitante da região lhes desse abrigo. A mendicidade esperava a ainda jovem duquesa, embora se desconheçam os contornos exactos desta experiência difícil. De acordo com alguns biógrafos, terá existido um morador que não resistiu em recompensar a sua bondade, e mesmo temendo consequências duras, cedeu-lhe um lugar, embora a princesa e os seus filhos tivessem que se esconder numa espécie de cavalariça ou chiqueiro, convivendo com os porcos e demais animais. De acordo com esta linha teórica, o seu refúgio acabaria por ser descoberto algum tempo depois, acabando por ser posteriormente aprisionada, em péssimas condições, numa das dependências do castelo. Outros biógrafos referem que ela recusou um casamento vantajoso para escapar daquela terrível conjuntura. Porém, é imperioso alertarmos os nossos leitores que pouco se sabe sobre esta fase específica da vida da santa, a qual como veremos foi temporária. Apenas podemos aceitar que Isabel, após ser expulsa pelos seus cunhados, vagueou em condições miseráveis na procura do alimento para si e seus filhos.
Certo é que esta enorme injustiça de que ela e os seus filhos tinham sido alvo iria conhecer o seu próprio fim. Henrique e Conrado, talvez influenciados pela reprovação corajosamente feita pelos recém-chegados cavaleiros da Turíngia (que regressavam do Oriente e transportavam ainda os restos mortais do seu senhor - o duque Luís), demonstraram arrependimento pela conduta odiosa que tiveram para com a esposa e filhos do falecido cruzado e duque da Turíngia - Luís. A princesa voltou a ser aceite no castelo e os seus bens restituídos.
Na Sexta-feira Santa de 1229, Isabel da Hungria ingressou na Ordem de São Francisco, e tomou o hábito das Clarissas. Empregará os seus recursos na construção de igrejas, hospitais e de abrigos para crianças orfãs e deficientes. Para além de se dedicar à meditação e à caridade, despendeu várias horas a cuidar dos doentes pobres. No plano transcendental, o qual não pode ser confirmado pelo método científico, foram-lhe atribuídas algumas curas milagrosas.
Antes de entrar na Ordem, preocupou-se igualmente em assegurar o futuro dos seus três filhos: Herman seguiu a vida da corte e sucedeu assim ao seu falecido pai Luís IV na liderança da Turíngia, Sofia foi educada num convento mas tornar-se-ia duquesa de Brabant, e por fim, Gertrudes seguiu mesmo a vida religiosa num mosteiro feminino.
Praticamente dois anos depois, Isabel adoeceu com gravidade e acabou por falecer no dia 17 de Novembro de 1231. Em 1235, foi canonizada pelo Papa Gregório IX. O legado de compaixão que transmitira ao seu povo granjeou-lhe uma elevada popularidade que ainda hoje é visível na Hungria e na própria Alemanha (visto que ela viveu a maior parte da sua vida na Turíngia).
A sua história de vida é muito semelhante à da posterior santa homónima portuguesa (rainha e esposa de D. Dinis) que prestava actos de caridade pelos mais pobres. Aliás, ambas partilham a façanha do célebre Milagre das Rosas. Todavia, a princesa Isabel da Hungria viveria apenas 24 anos, mas todos eles suficientes para que fossem considerados exemplares e enriquecedores. Apesar da sua posição no topo da hierarquia medieval, ela preocupou-se com as necessidades do seu povo. Não suportava ver a fome, a doença e o sofrimento daqueles que a rodeavam.





Imagem nº 2 - Isabel da Hungria demonstrou uma generosidade invulgar para com os mais carenciados.






Imagem nº 3 - Amada pelo povo, Isabel da Hungria ajudava sempre que podia aqueles que mais necessitavam.




Imagem nº 4 - Isabel prestou cuidados a vários enfermos. 
Retirada de: Wikipédia ("StElisabethKošiceAltar" por Of)



Referências Consultadas:






Nota extra - Os duques ou governadores medievais da Turíngia eram designados como Landgraves, título germânico. Optamos no artigo pelo termo "duque" que, embora não sendo totalmente preciso, é o que mais se assemelha àquele estatuto germânico, e assim sendo, seleccionamos esta designação de forma a torná-la mais compreensível aos olhos dos nossos leitores.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A pureza de São Francisco de Assis


Até nas épocas mais obscuras da história, a Humanidade foi agraciada pela existência de seres "luminosos", cujas estadias terrenas se traduziram num impacto purificador. A história de São Francisco de Assis revela-nos as peregrinações dum homem que, com vestes modestas e totalmente desinteressado pelo poder, defendeu o primado da paz e do amor nas comunidades que visitava. Pregava a sua fé com uma convicção inabalável.  



Os primeiros anos de São Francisco de Assis: a irreverência


Francisco nascera entre 1181-1182, na localidade de Assis (província da Umbria - actual Itália). Era filho de Pietro Bernardone (próspero mercador de tecidos que exercera negócios rentáveis em Provença na França) e Pica Bernardone. Inicialmente, fora baptizado com o nome de João, mas Pietro mudou de ideias e acabou por lhe colocar o nome de Francisco. A criança teve acesso a uma educação cristã sólida, embora na sua juventude, deveras activa, tivesse praticado variados comportamentos mundanos e nem sempre devidamente regrados, isto apesar da sua boa índole que sempre o acompanhara.
De acordo com muitos biógrafos, Francisco era um jovem alegre que adorava música, festas e banquetes. Gostava ainda de cantar serenatas para as damas mais esbeltas da sua cidade. Integrava então um grupo de jovens que adorava bastante a diversão. 
Naqueles tempos, a Península Itálica vivia uma grande instabilidade a nível político, e algures entre 1201-1202, Francisco de Assis, incentivado pelo seu pai e talvez pela hipótese de ascensão nobiliárquica, combateu pelo interesses da Comuna de Assis contra as intenções dos senhores feudais da vizinha cidade de Perúgia. Acabou por ser capturado e levado para cativeiro durante um ano em Perúgia. Esta experiência decorrida na prisão terá sido dolorosa, embora Francisco tenha procurado reconfortar e reanimar os seus companheiros de cela.
Depois de libertado, Francisco voltou para a sua terra natal - Assis, onde voltou a usufruir dos entretenimentos típicos da juventude e colaborando ainda nas actividades comerciais de seu pai. Todavia, não seria por muito tempo, pois aquela etapa difícil passada em cativeiro começou a moldar-lhe a visão sobre a realidade. Em breve, e muito provavelmente devido ao enfraquecimento do seu organismo, situação que herdara do clima insalubre da prisão, o jovem, na altura com cerca de 20 anos, é atingido por uma grave enfermidade que o coloca numa situação bastante crítica, acabando por recuperar com muita dificuldade.  Nestes tempos de inquietação (situados entre 1203 e 1205), Francisco de Assis começou a ter visões e procederia então a uma grande reflexão, equacionando seguir um novo rumo de vida, cansado já dos vulgarizados prazeres terrenos. Efectivamente, Francisco não nascera santo, mas lutou bastante para o vir a ser.





Imagem nº 1 - São Francisco de Assis, antes de se entregar aos desígnios do Cristianismo Primitivo, teve uma juventude irreverente, onde usufruiu de vários divertimentos.
Retirada de: http://dissertationreviews.org/archives/2353 (Gravura meramente exemplificativa)




Imagem nº 2 - A casa em Assis onde o jovem Francisco nasceu e vivera os seus primeiros anos.
Retirada de: Wikipédia ("Casa-de-sao-francisco" by Tetraktys)



A Fase da Maturidade e da Adopção dum novo estilo de vida


Francisco não escondia agora um grande vazio dentro de si. As festas, bebedeiras e guerras já não lhe satisfaziam. Começou a privilegiar a vertente espiritual procurando a mensagem de Deus. Por isso, dedicar-se-à, cada vez mais, às orações e meditações. Percorrerá ainda florestas e campos, lugares absolutamente tranquilos, completamente afastados dos espaços citadinos repletos de algazarra que outrora frequentava, e naqueles meios verdejantes que agora explorava, ele reflectia incessantemente sobre o sentido da vida.
No ano de 1205, dirigiu-se a Roma para visitar a tumba do Apóstolo São Pedro. Aí compadeceu-se daqueles que viviam na miséria, tendo dispensado várias moedas de ouro para aqueles que mais necessitavam. Além disso, trocou o seu rico traje pelas vestes esfarrapadas dum mendigo. Regressava depois a Assis, seguindo uma postura de pobreza e humildade, até então inéditas no jovem Francisco. O seu pai, um comerciante bem sucedido, e até os seus amigos não se conformavam com os últimos comportamentos de Francisco que eram considerados sinistros, tendo em conta aquilo que sempre fora na juventude.
Algures entre 1205 e 1206, Francisco abraça e beija, de forma amigável, um leproso nas campinas de Assis, gesto talvez inspirado na seguinte passagem bíblica "Tudo o que fizerdes ao menor de meus irmãos, é a mim que o fazeis”. Como se sabe, os leprosos eram marginalizados pela sociedade medieval, e não podiam aproximar-se sequer das urbes (devido à possibilidade de contágio; os leprosos tinham de levar um pequeno sino para avisar as outras pessoas de forma a que estas se afastassem), seguindo uma vida isolada e sem direito sequer a um mínimo de atenção por parte das comunidades - é como se fossem "mortos" que ainda vagueavam pelas serras ou florestas até finalmente cair para o lado. Naquela era supersticiosa, muitos acreditavam que a lepra era um castigo divino aplicado àqueles que haviam pecado com gravidade, o que reforçava mais a discriminação social. Por isso, a atitude de Francisco não deixava de ser inovadora e corajosa, acudindo àqueles que eram constantemente ignorados e até desprezados pela sociedade do seu tempo.
Entretanto, e sem autorização do seu pai mas talvez motivado por uma visão (surgida a partir do crucifixo de São Damião, do qual alegaria ter ouvido uma voz de Jesus Cristo que o motivava a restaurar a sua igreja), Francisco investe o dinheiro da  casa comercial de seu pai na reabilitação da Capela de São Damião (em Assis) que estava num estado bastante degradante. Pietro Bernardone, seu pai, não lhe perdoara tal atrevimento, pois o dinheiro servia para o sustento da família, isto para além de ser o máximo responsável pelos negócios. Francisco acabaria por ser encarcerado num cubículo por debaixo da escada da própria casa paterna, sendo depois libertado pela sua mãe, católica fervorosa e sobretudo movida de compaixão, que o deixou seguir o seu destino.
Todavia, o seu pai exigia explicações e decidiu recorrer ao bispo de Assis, e o julgamento foi mesmo realizado na praça comunal daquela localidade. Pietro exigiu que o filho lhe devolvesse tudo o que havia perdido com o desfalque anterior. Todavia, Francisco citou a seguinte afirmação das Sagradas Escrituras "Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais que a Mim, não é digno de Mim", e logo de seguida libertou-se das vestes e do dinheiro que caíram aos pés de seu pai, e reiterou que só prestaria contas a partir de agora ao Pai Celeste. O bispo acolheu Francisco, envolvendo-o com seu manto, de forma a cobrir a nudez. Com cerca de 25 anos, tinha acabado de tomar uma decisão irreversível que o acompanharia para o resto da vida. Renunciara aos bens materiais, e em simultâneo, iniciaria oficialmente um caminho de espiritualidade.
Dentro deste contexto, afastou-se da família e dos amigos, e entregou-se amavelmente ao serviço dos leprosos e participou na reconstrução de Capelas e Oratórios. Tinha deixado definitivamente o materialismo e o egoísmo para trás para agora privilegiar os grandes actos de altruísmo e humildade. Francisco tinha mudado bastante nestes últimos tempos, e o exemplo de Jesus Cristo fascinava-o. A pobreza, acompanhada pelo amor, era o caminho para a glória e salvação.
Claro que foi apoiado por alguns que começavam a ver ali alguém que realmente se importava com a vida dos mais carenciados, mas por outro lado, também foi alvo de troça por parte de outros que o achavam louco, por ter abdicado de todas as regalias familiares. Além disso, no Inverno de 1206, enquanto vagueava sozinho pelas matas foi espancado por dois assaltantes que o deixaram em muito mau estado, com muitas feridas e abandonado ao frio implacável. Por sorte, conseguiu reerguer-se e dirigiu-se assim a um mosteiro próximo onde foi tratado.
As suas pregações atraíram os primeiros seguidores - Bernardo de Quintaval foi um dos mais prestigiados que se rendeu às palavras puras de Francisco e não hesitou em vender todos os bens e repartir o dinheiro pelos mais pobres da cidade de Assis. Seguiram pois rigorosamente os ensinamentos de Jesus Cristo no Evangelho, e procederam à sua divulgação. Sem ter uma verdadeira noção da influência de tais pregações, Francisco desconhece ainda que está a lançar as bases duma nova e grandiosa ordem ou irmandade religiosa que se prolongaria até aos dias hoje. O primeiro sacerdote "franciscano" terá sido Silvestre, um homem já de idade avançada que desejou imitar o estilo de vida dos cristãos primitivos. Muitos outros seguiriam este exemplo nos tempos posteriores. A nova irmandade, liderada por Francisco, era composta por um grupo de mendigos voluntários que oravam, pregavam, cantavam e trabalhavam em prol das comunidades, e que muitas vezes recolhiam-se em choupanas, modestos abrigos e alvos fáceis em caso de alterações climáticas adversas. Mas faltava-lhes ainda o consentimento e a bênção do Sumo Pontífice de Roma para que as suas acções fossem totalmente legitimadas aos olhos da Igreja. Poderia não ser uma tarefa muito acessível visto que o modo de vida radical destes novos "monges" colidiria com a comodidade de outros sectores clericais bem mais influentes daquele tempo. Por outro lado, as linhas que separavam naquela era o catolicismo oficial dos movimentos heréticos poderiam ser bastante ténues. Tudo iria depender do contexto específico e da receptividade (ou não) do sumo pontífice da altura.
No ano de 1209, Francisco e o seus companheiros dirigiram-se até Roma, para obter a autorização e o reconhecimento do Sumo Pontífice Inocêncio III. Por coincidência, o bispo de Assis, o qual era grande admirador do novo grupo de pregadores mendigos, também estava simultaneamente em Roma, e como tal, intercedeu junto do Papa para que os recebesse. Também é justo salientar aqui o papel do cardeal-bispo de Sabina - João de São Paulo (ou Giovanni de San Paolo) que usufruindo duma maior proximidade diante do Papa, tentou igualmente convencer este a conceder uma audiência.
Inocêncio ficou admirado pela firmeza e convicção de Francisco de Assis, e autorizou que ele e o seu grupo pregassem nas igrejas ou fora delas. Não conhecemos todos os detalhes que rodearam esta decisão: a tradição relata que o Papa terá alegadamente tido um sonho favorável à aceitação da nova ordem e da sua regra, outros referem que a sinceridade e a modéstia de Francisco e daqueles missionários mendigos terá causado um impacto bastante positivo em Inocêncio. O que é certo é que o seu paradigma religioso tinha sido aprovado pela Santa Sé.
A partir desse momento, o grupo bem como os seus ideais conhecerão uma difusão rápida, com os seus membros a viajarem por vários territórios, pregando a necessidade de se regressar ao Cristianismo Primitivo e aos ideais de humildade e pobreza. Tudo isto fora possível porque São Francisco acreditava totalmente no projecto que encabeçava.




Imagem nº 3 - São Francisco de Assis defendia o regresso ao Cristianismo Primitivo, o qual assentava na simplicidade, solidariedade e total altruísmo.




Imagem nº 4 - São Francisco de Assis e seus seguidores. O Santo admirava ainda a Natureza bem como os animais que a compunham, pois todos faziam parte da Criação Divina.




Imagem nº 5 - São Francisco beija um leproso. Dedicou-se a sarar muitas das feridas de quem padecia desta doença que era motivo suficiente de discriminação social na Idade Média.



Imagem nº 6 - De acordo com a tradição, o Papa Inocêncio III indeciso sobre a pureza ou posição herética do grupo, terá tido um sonho onde viu Francisco a erguer e a segurar a Catedral de Roma. Numa era supersticiosa, acometida por visões aos quais também Francisco não foi alheio, o factor transcendental era levado muito a sério. Por isso, este sonho ou visão, se efectivamente aconteceu como relatam algumas fontes, poderá também ter contribuído para a aceitação da nova ordem por parte do Sumo Pontífice.
Quadro da autoria de Giotto (1266-1337)



A sua digressão pelo Egipto e Terras do Oriente


Oficializada e reconhecida a irmandade, era necessário divulgá-la pela Cristandade e até por terras mais longínquas. Em breve, os novos franciscanos já não se cingirão apenas às cidades de Assis ou de Perúgia, pois serão empreendidas novas missões dirigidas a outras regiões. Em 1217, dá-se, por exemplo, a primeira viagem além-Alpes com o intuito de procurar novos seguidores que estavam dispostos a curvar-se sob a doutrina pura do Cristianismo Primitivo. Os primeiros capítulos gerais da nova ordem começam a realizar-se já nesta altura, imprimindo assim alguma organização ao movimento cristão nascente. 
Nos anos subsequentes, os membros da nova Ordem tentaram atingir vários lugares para além do solo italiano, nomeadamente Espanha, Marrocos e até a Síria, embora estas 3 últimas campanhas de missionação não tenham decorrido duma forma muito produtiva.
Francisco desejava partir pessoalmente para o Médio Oriente, passar pela Palestina e visitar os lugares sagrados da Terra Santa que haviam sido percorridos por Jesus Cristo. Todavia, e antes de atingir esse objectivo, desembarca no Egipto, palco da Quinta Cruzada (1217-1221), onde as forças cristãs lideradas por Paio Galvão (cardeal-bispo de Albano) e João de  Brienne (rei de Jerusalém) procuram forçar a queda da cidade portuária de Damieta. A brutalidade da guerra terá causado um cenário horripilante, tanto no acampamento cristão como na cidade egípcia, o que seguramente terá marcado negativamente São Francisco que não estava integrado nas hostes. O pregador considerava que a conversão à fé católica não deveria ser feita com recurso à espada, mas pelo caminho do amor e da palavra. Dentro deste contexto, ele e um outro seguidor seu decidem sair do acampamento cristão, mesmo ao serem desaconselhados pelos responsáveis cruzados que falavam em missão suicida e ingénua, e rumam, de forma desprotegida, à presença do sultão do Egipto - al-Kamil (que acabava de suceder ao recém-falecido al-Adil). Pelo caminho, são interceptados por muçulmanos que os levam à presença do líder egípcio, todavia quando aqueles descobrem os verdadeiros intentos de Francisco (que passavam por tentar a conversão de al-Kamil ao Cristianismo) começam a troçar dele e a maltratá-lo, embora o santo tivesse alcançado o seu destino.
Diante do sultão que, acampado nas proximidades de Damieta, intentava defender a sua terra da recente invasão dos cruzados, Francisco de Assis não revela receio nem medo do desafio imprevisível que terá de enfrentar, e por isso, pregará a religião cristã na tenda real egípcia. Logicamente, os mulás, oficiais ou conselheiros religiosos, que aí estavam presentes, começaram imediatamente a pedir a cabeça do missionário, pois estavam indignados pelas suas afirmações teológicas. Mas al-Kamil não atendeu aos protestos veementes, pois demonstrava espanto pela coragem, pureza, humildade e firmeza evidenciadas por Francisco. Sabia que ao executá-lo, estaria a privar o Mundo dum grande valor humano, e além de tudo, aquele pregador, com trapos esfarrapados e rotos, era absolutamente pacífico e inofensivo.
O que se terá passado depois é evidentemente discutível, do ponto de vista científico. De acordo com algumas fontes (embora posteriores à data dos acontecimentos), Francisco esteve mesmo disposto a enfrentar um julgamento pelo fogo (ordália), demonstrando confiança de que ultrapassaria este obstáculo sem ser queimado pelas chamas, o que asseguraria a pureza do seu espírito e da crença cristã. Terá mesmo desafiado os mulás a realizarem também esta prova de risco que assim determinaria qual a religião acertada e de que lado estaria então a razão. Aqueles oficiais muçulmanos recuaram naquele momento, enquanto Francisco insistia em enfrentar o dito julgamento pelo fogo. Todavia, o sultão dispensou-o de tal desafio dramático, relembrando a todos os que estavam presentes que era contra a lei do Corão efectuar tal prática. Mas al-Kamil, que apreciava discussões filosóficas e culturais, tinha ficado agradavelmente surpreendido com a argumentação e a persistência de Francisco. É claro que o líder muçulmano não se converteu ao Cristianismo, fracassando assim a principal intenção do missionário naquele encontro, mas autorizou Francisco a pregar a sua religião nos lugares santos da Palestina (que estavam sob a influência do sultanato do Egipto). Outros manuscritos tardios acrescentam ainda que al-Kamil teria alegadamente solicitado, em privado, a Francisco para que este rezasse à sua maneira pela salvação da sua alma. Contudo, ressalvamos a ideia de que estas duas supostas situações (a prova de fogo de Francisco e o pedido final de al-Kamil) ainda não foram totalmente comprovadas, do ponto de vista histórico.
Certo é que logo após este encontro com o sultão, Francisco regressou, com segurança, às linhas cristãs e depois terá deixado o solo egípcio, embarcando rumo à Terra Santa. Aí terá visitado os lugares sagrados, mas desconhecem-se os resultados da sua pregação nessa região. Sabemos apenas que terá permanecido durante pouco tempo, pois chegaram-lhe entretanto mensagens que veiculavam diferendos internos em Itália no seio da ordem que acabara de criar. Ainda em 1220, Francisco faria então a sua viagem de regresso.




Imagem nº 7 - São Francisco (à direita) e a suposta Prova de Fogo, diante do sultão e dos mulás.
Retirada de: http://www.wikiart.org/nl/tag/st-francis-of-assisi, quadro da autoria de Giotto




Imagem nº 8 - Outro quadro que retrata aquele acontecimento no Egipto.
Retirada de: http://www.wikiart.org/nl/tag/st-francis-of-assisi, quadro da autoria de Giotto.



A morte e o seu legado para posterioridade


Aquando do seu regresso a Itália, deparou-se com uma crise de identidade no grupo que havia fundado. Alguns dos irmãos aderentes começaram a cair na tentação da luxúria, da não-observação da castidade, da compra de livros (objectos de luxo para aquela época), o que terá desagradado a Francisco que desejava uma entrega totalmente espiritual, renegando os bens materiais. Mas as divisões internas não eram fáceis de resolver. O rigor exigido pelo mentor não agradava a muitos dos irmãos franciscanos. A muito custo e após várias conversações, Francisco teve de aceitar a reforma da Ordem que, embora respeitando o ideal de pobreza, distanciava-se agora do radicalismo inicial. 
Entretanto, Francisco adoeceria, com alguma gravidade, a partir de 1224. As melhorias são praticamente nulas, e os tempos que iam passando comprometiam-se a esgotar ainda mais as suas débeis energias. O seu sofrimento prolongou-se até 3 de Outubro de 1226, data do seu falecimento em Porciúncula (Perúgia). Foi sepultado na Igreja de São Jorge, em Assis. Em 16 de Julho de 1228, seria canonizado pela Santa Sé. 
Após a sua morte, o reconhecimento da sua imensa obra pastoral foi inegável, o que contribuiu para que fosse universalmente admirado. Francisco tinha abdicado duma vida faustosa que usufruíra na sua juventude para se dedicar ao próximo com humildade e simplicidade. Ficou conhecido pela compaixão que nutria pelos mais pobres, leprosos e até pelos animais que muitas vezes encontrara no seu longo e árduo caminho de peregrino. Francisco aprendeu a amar a paz, a harmonia, a justiça e o altruísmo. Defendia que a mensagem de Jesus deveria ser seguida nos moldes originais, repudiando qualquer relaxamento ou extravagância no modelo de religiosidade que pretendia aplicar.
A sua áurea motivou o alastramento da ordem por todos os cantos do mundo, desenvolvendo mesmo, por exemplo, um papel determinante na conversão dos gentios da América aquando das descobertas da Era Moderna. A ordem franciscana, que ainda hoje perdura, contou com muitos santos que tentaram seguir as pisadas do seu mentor: Santo António de Lisboa, Frei Galvão, Santa Clara de Assis, os cinco frades mártires de Marrocos (perecidos numa missão em 1220), São Francisco Solano, entre outros.
São Francisco de Assis deixou-nos há quase 800 anos, mas a sua obra continua hoje bem viva, tendo inspirado inclusive o actual papa argentino - Jorge Bergoglio que adoptou a sua designação nominal e que tenta impor as ideias humildes daquele santo na liderança da Igreja.


File:Bartolomé Esteban Murillo - St Francis of Assisi at Prayer.JPG

Imagem nº 9 - São Francisco de Assis a meditar. 
Quadro da autoria de Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682).



Imagem nº 10 - Os últimos momentos de vida de São Francisco de Assis.
Retirada de: http://nobility.org/2013/10/03/st-francis-of-assisi/, (quadro da escola flamenga - séc. XVI).



Imagem nº 11 - Painel da morte do santo na Igreja de São Francisco em Évora.



Referências Consultadas:




segunda-feira, 15 de setembro de 2014

As luzes da "Reforma Gregoriana" (séculos XI-XIII)

Na segunda metade do século XI, a Igreja assistirá a uma enorme revolução interna, ao nível da sua organização e prioridades assumidas. É um novo ciclo instaurado que se repercutirá em várias vertentes. Trata-se evidentemente da então designada (embora de modo impreciso) "Reforma Gregoriana" que se prolongará até ao século XIII, a qual tentará alcançar diversos objectivos, entre os quais destacamos os seguintes:


  1. A afirmação do poder supremo da Igreja.  No plano político, a instituição reclama a supremacia universal, exigindo a obediência ou a vassalagem dos restantes reis e do imperador germânico. Por outro lado, o poder de decisão que anteriormente cabia às grandes famílias romanas e ao imperador alemão foi anulado, assegurando-se assim a eleição interna sem pressões exteriores. O Papa está acima de qualquer outro soberano da Cristandade, e só presta contas a Deus. A Igreja declara assim a sua independência perante o poder imperial que nos séculos anteriores fora responsável por diversas intromissões.
  2. Abolição de ritos pagãos introduzidos nos padrões da religiosidade católica. Ao nível do rito, a Igreja procura assegurar uma uniformidade ou conformidade dos rituais católicos (liturgia), evitando disparidades devido a influências culturais alheias. O canto gregoriano é uma das novidades que adquire exponencial destaque nesta era.
  3. Combate às práticas desviantes da simonia e do nicolaísmo. Por outras palavras, as transacções de cargos clericais ou o não-cumprimento do celibato jamais poderiam ser tolerados, e a Reforma Gregoriana canalizará assim uma maior atenção para punir estas irregularidades que, em nada, dignificavam a instituição clerical. Neste capítulo moral, procurou-se ainda regressar ao Cristianismo Primitivo.
  4. Repúdio da investidura laica. Antigamente, muitos nobres ingressavam na Igreja por mera influência das suas famílias, contudo muitos o faziam sem deterem formação e vocação prévias, cenário que propiciava habitualmente um desempenho limitado daqueles novos clérigos.
  5. A eleição pontifícia realizada pelo Colégio Cardinalício. Os cardeais da Igreja Romana passariam a participar, de forma independente e interna, na eleição do novo sumo pontífice, evitando assim ingerências do exterior.



Imagem nº 1 - A "Reforma Gregoriana" (designamos sempre a mesma entre aspas, devido à limitada precisão de tal designação, pois a reforma não se deveu apenas a Gregório VII) garantiu o início dum novo e importante ciclo histórico para a Igreja Romana.



Os Grandes Papas Reformistas do Século XI


Apesar do Papa Clemente II (1047-1048) ter procurado adoptar as primeiras acções contra a simonia, a verdade é que o seu pontificado foi demasiado curto (cerca de 9 meses de pontificado) para ser considerado um pioneiro indiscutível do espírito reformista que engrandeceria a Igreja Católica. Por isso, não o incluímos na lista que apresentaremos de seguida, embora fiquem bem patentes as suas primeiras tentativas para garantir um futuro melhor à instituição que servia.


Papa
Pontificado
Feitos Reformistas
Leão IX
1049-1054
Um grupo de importantes reformadores acompanhou-o em muitas das decisões que teria tomado no decurso do seu pontificado: Frederico da Lorena, Hugo o Branco, Pedro Damião, Humberto de 
Moyenmoutier e São Hugo de Cluny. Contará ainda com a importante colaboração do monge germânico Hildebrando (futuro Gregório VII). Combateria a simonia (troca de dinheiro por favores eclesiásticos ou venda de cargos clericais) e defende intransigentemente a castidade clerical. Foi o primeiro papa do seu tempo que conseguiu implementar os ideais reformistas.
Vítor II
1055-1057
Continuou a obra do seu antecessor. No concílio de Florença (1055), condena o concubinato/nicolaísmo, a simonia e a usurpação dos bens da Igreja.
Estevão IX
1057-1058
Zelou pela autonomia da Igreja e, de novo, condenou a simonia a qual se atribuía à ingerência laica.
Nicolau II
1059-1061
Estabelece poderes únicos aos cardeais-bispos para que estes elejam os futuros pontífices de forma autónoma e privada (começam a ser então construídas as bases do nascente Colégio Cardinalício). Criticou novamente as práticas nefastas já referidas que corroíam a credibilidade da Igreja. Enviou ainda diversos legados em inúmeras viagens para que nas variadas regiões se assegurasse a imposição duma liturgia ou rito católico unificado na Cristandade.
Alexandre II
1061-1073
Prosseguiu com as causas defendidas pelos papas antecessores. Implementou ainda a missa comunitária nos mosteiros. A ruptura com o Poder Imperial foi total no seu pontificado. Condenou as investiduras feitas sem autorização superior e procurou proibir a presença de sacerdotes, que não tinham respeitado o voto de castidade, nas missas. O raio de acção da Igreja será agora maior durante estes anos.
Gregório VII
1073-1085
O principal vulto da Reforma, embora não tivesse sido o único pontífice a zelar pela causa. Com o nome de nascimento de Hildebrando, é factual que já teria prestado uma contribuição importante nos pontificados anteriores. Fora ainda monge da célebre abadia de Cluny.
Seria eleito Papa muito devido ao grande apoio popular.
Defendeu a primazia da Igreja de Roma no plano universal e a infalibilidade papal, condenou o concubinato, a simonia e as investiduras laicas. Pretendeu impor rigor máximo nas eleições eclesiásticas. É do seu tempo – o famoso documento do Dictatus Papae, onde a Igreja Romana é considerada como detentora do poder supremo. Pugnou até à exaustão por tais ideais, enfrentando os sectores clericais mais acomodados ou relaxantes e os nefastos interesses imperiais. Chegou mesmo a ser detido em 1075, todavia o povo revoltou-se de tal forma que Gregório VII acabaria por ser libertado.
As relações com o imperador germânico Henrique IV (apesar da penitência deste em Canossa, o entendimento durou pouco tempo) não foram as melhores, e Gregório VII foi mesmo obrigado a deixar Roma, quando as tropas alemãs tomaram esta cidade entre 1083-1084. Todavia, a sua morte no exílio em Salerno não seria em vão, pois os seus ideais e a sua glória asseguraram a continuidade da linha reformista. No leito da sua morte, terá dito “Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso morro no exílio”.
Vítor III
1086-1087
Antigo monge beneditino. Contra a sua própria vontade, tornou-se Papa com uma idade algo avançada e uma saúde debilitada. Destacou-se pela sua generosidade e serenidade.
No seu pontificado é excomungado o anti-Papa Clemente III, apoiado pelo partido germânico/imperial, bem como é confirmada a excomunhão de Henrique IV. Também Roma voltaria a ser recuperada através duma força normanda que expulsaria a milícia imperial, todavia a enorme instabilidade da época fez com que Vítor terminasse os seus últimos dias no mosteiro de Montecassino.
Urbano II
1088-1099
Pontífice enérgico que voltou a condenar as investiduras laicas, o nicolaísmo e a simonia. Novamente, envolveu-se em conflitos com o imperador Henrique IV, o qual pretendia controlar os assuntos da Igreja, o que não ia de encontro às pretensões de independência e supremacia da instituição católica. Em 1092, teve de abandonar Roma, todavia conseguiria voltar no ano seguinte.
A manifestação poder papal tornou-se clara quando chegou o pedido de auxílio do imperador bizantino Aleixo I (líder daquele império cristão oriental que tinha perdido vários territórios nas últimas décadas para os turcos seljúcidas), e que em jeito de resposta,  Urbano II mandou convocar o Concílio de Clermont, o qual promoveria o lançamento e a pregação da Primeira Cruzada. Este empreendimento militar foi um sucesso, com a Cidade Santa de Jerusalém a ser recuperada pelos cruzados em 1099, poucos dias antes da morte de Urbano II.


Tabela nº 1 - Os pontífices reformistas da segunda metade do século XI.




Imagem nº 2 - Embora o termo "Reforma Gregoriana" seja impreciso porque existiram outros Papas que contribuíram para a revolução da Igreja, a verdade é que não podemos negar que Gregório VII (na imagem) foi a personalidade que talvez alcançou maior destaque, contribuindo para o amadurecimento dos ideais reformistas.
Retirada: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/DIS_SD_640525_saogregorio7dictatuspapae.htm#.VBbRj_ldVRE, (veja-se aqui ainda as disposições do Dictatus Papae)




Evidentemente, a Reforma da Igreja Romana (talvez uma designação que achamos mais correcta, abrangente e eficaz do que o término "Reforma Gregoriana") prosseguiu nos pontificados seguintes, bem como as querelas entre Papado e Império. 



Referências Consultadas:


  • GUIJARRO-RAMOS, Luis Garcia - Papado, cruzadas y ordenes militares: siglos XI-XIII. Madrid: Cátedra, 1995. Este escritor defende, e bem no nosso entender, que o termo "Reforma Gregoriana" é demasiado restrito, e por isso, os feitos reformistas não se cingem apenas a Gregório VII, apesar da contribuição igualmente decisiva deste pontífice.
  • ORLANDIS, José - Historia de la Iglesia: La Iglesia antigua y medieval. Madrid: Ediciones Palabra, 2003.
  • http://www.infopedia.pt/, Infopédia, Porto Editora. Aqui encontramos igualmente descrições sobre a Reforma bem como a vida e obra dos seus pontífices empreendedores.
  • http://www.infoescola.com/historia/reforma-gregoriana/, (artigo da autoria de Antonio Gasparetto Júnior, consultado em: 15-09-2014).