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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Flávio Belisário, o estratega bizantino "esquecido" que vingou Roma


Contexto


No ano de 476 d. C., Roma caía nas mãos dos hérulos, e posteriormente, no poder dos ostrogodos. As invasões bárbaras provenientes do além-Reno destruiriam gradualmente o Império Romano do Ocidente. As ancestrais instituições imperiais caíram na ruína total e o progresso civilizacional aparentava estar comprometido. 
O Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente) conseguiu formar alianças estratégicas ou até firmar tréguas (assente no pagamento de tributos) com os povos vizinhos e serviu-se da sua posição estratégica, praticamente inexpugnável, de modo a assegurar a sua sobrevivência. A cadeia de montanhas que caracterizava a topografia oriental, dificultava, ao máximo, qualquer campanha de invasão. Além disso, a localização bem como as estruturas e recursos defensivos da capital - Constantinopla dissuadiam os inimigos mais acérrimos de eventuais expedições contra o soberano basileu. Mas houve ainda outras razões que justificariam a sobrevivência deste estado, nomeadamente a manutenção dos contactos comerciais com a Ásia e a África, a posse de elevados recursos económicos e a habilidade dos governantes bizantinos em introduzir oportunas reformas fiscais que, por vezes, aliviariam os impostos e assim agradariam à classe popular, colocando-a do seu lado.
Nesses tempos, a principal ameaça prendeu-se com a devastadora campanha dos indomáveis hunos que deixaram igualmente a marca das suas depredações macabras nas regiões do leste europeu. Com o desaparecimento desta confederação euro-asiática, alguns sobreviventes da expedição de Átila ingressaram, enquanto mercenários, nas fileiras gregas.
A paz regressou a Bizâncio, não obstante o declínio recente. A glória doutros tempos parecia ser apenas um registo exclusivo das crónicas antigas, as quais degradadas e repletas de pó condiziam com a conjuntura agora dormente e passiva do Império. O futuro aparentava ser imprevisível e a equação para o sucesso dependeria essencialmente do carisma, da competência e da eloquência dos imperadores e generais vindouros.
Dentro deste contexto, e entre os potenciais caminhos de prestígio ou fracasso, um homem subirá ao trono e causará um impacto decisivo no rumo da história. Graças a ele, o orgulho grego seria recuperado e se reergueriam, embora não por muito tempo, os últimos resquícios da cultura romana. 
Efectivamente, com o reinado de Justiniano I (527-565), o estado bizantino reinaugurará um ciclo prestigiante que se repercutirá nos mais diversos domínios. O novo basileu revela ambição e uma elevada dose de cultura e visão política. Assim sendo, reformará e centralizará a administração, aperfeiçoará o cerimonial de corte, submeterá a hierarquia eclesiástica e empreenderá grandes construções (por exemplo, é no seu tempo que será construída a Basílica de Santa Sofia em Constantinopla). 
Um dos sonhos deste imperador radicava no restabelecimento do velho esplendor de Roma que outrora iluminou a Europa Antiga e que agora jazia dormente sobre o domínio bárbaro. Para atingir esse propósito, Justiniano está disposto a promover campanhas militares de grande envergadura em diversos territórios. Todavia, o sucesso bélico requeria a participação de generais experimentados ou versados na arte da guerra. Neste âmbito específico, Flávio Belisário reunirá todos os requisitos necessários para engrandecer o Império agora repensado pelo novo imperador reformista. Apesar do seu nome ser relegado para segundo plano em comparação com outros grandes nomes da História Militar, a verdade é que os seus êxitos atestam a sua elevada capacidade de liderança e de gestão estratégica. A parceria estabelecida entre Justiniano e Flávio seria uma das mais bem sucedidas de sempre.





Imagem nº 1 - Mosaico que espelha o vulto de Justiniano I, o Grande - o imperador bizantino que se propôs a restaurar o apogeu "romano" de outrora.




Os primeiros feitos de vida do general audacioso



Flávio Belisário nasceu no ano de 505 na localidade de Sapareva Banya (actual Bulgária). Desde jovem, se alistou no exército onde iniciaria uma carreira recheada de sucessos até então impensáveis ou de aparente concretização irrealista. Após a morte do imperador Justino em 527, o poder passaria para um novo soberano - o supracitado Justiniano I que inicialmente integraria Flávio na sua guarda imperial, mas que acabaria depois por nomeá-lo general e comandante das forças bizantinas no Oriente. Estas enfrentavam, naquela altura, a difícil tarefa de conter, a todo o custo, a ofensiva do império persa pré-islâmico (também designado de "sassânida"). Em causa estava essencialmente o controlo da Ibéria (reino situado no Cáucaso - actual Geórgia) - região disputada por bizantinos e os mencionados persas. Os primeiros confrontos iniciam-se em 527, mas o engajamento final entre os dois exércitos só ocorreria três anos depois. Durante este período, o general bizantino teve a oportunidade de aprimorar os seus bucellarii - unidade privada de cavalaria pesada superiormente treinada para os desafios bélicos mais exigentes. Esta força especial era normalmente constituída por centenas de cavaleiros, mas em caso de guerra, poderia atingir a fasquia dos milhares.
Efectivamente, em 530, Flávio conhece a sua primeira prova de fogo na batalha de Dara. Os bucellarii integram o sector nevrálgico da armada bizantina, mas também do lado persa existem soldados hábeis e preparados para a frente de combate. O conflito irá arrastar-se por dois longos dias. No primeiro, há provocações e até duelos entre os campeões (cavaleiros/combatentes mais tenazes) bizantinos e persas. Mas o choque colectivo só se materializará no segundo dia. Neste âmbito, os persas tomam então a iniciativa e atacam o flanco esquerdo bizantino. Apesar de terem atravessado algumas trincheiras defensivas, os seus atacantes são repelidos e por conseguinte obrigados a recuar. Mesmo assim, os persas não deixam de acossar o inimigo, e tentam agora aniquilar o flanco direito grego, recorrendo aos "imortais", os seus lanceiros de elite. Agora sim conseguem fazer retroceder o exército bizantino, causando algumas baixas. Contudo, Flávio Belisário reagiu imediatamente, concedendo ordens à sua tropa especial (os bucellarii) para proceder a uma ofensiva contra as linhas persas, as quais acabaram imediatamente por colapsar diante do impacto trucidante e fugaz da cavalaria pesada. De acordo com as estimativas de Tony Bunting, 10 mil persas tombariam nesta batalha, e os planos de expansão sassânida ficaram irremediavelmente comprometidos para o decurso dos próximos anos.
Apesar duma derrota posterior em Callinicum, os gregos acabariam por chegar a um acordo com a Pérsia, à qual tiveram de pagar um tributo, o preço a pagar pela paz e pela defesa dos superiores interesses de ambos os estados. Mesmo assim, nada nos impede de concluir que Flávio tinha prestado as primeiras provas do seu inegável valor, demonstrando total perícia numa campanha adversa em que os próprios persas aparentavam encontrar-se, desde o início, numa fase bélica ascendente.
No ano de 532, dá-se a Revolta de Nika em Constantinopla. Nesta circunstância em particular, a população estava cansada dos elevados impostos e da "contagiante" miséria, e não hesitou em rebelar-se a pretexto duma corrida de cavalos ocorrida no hipódromo. Os rebeldes descarregaram a sua fúria por quase toda a cidade, massacrando a guarda imperial. Justiniano pensou em deixar o trono, mas foi demovido pela sua mulher Teodora. Depois de ponderar sobre o que fazer, o imperador recorreu imediatamente aos serviços do general Flávio Belisário para travar a onda gigantesca de contestação. Este cercou o hipódromo e, sob ordens imperiais expressas, aniquilou cerca de 30 mil revoltosos. A partir deste momento, Justiniano governará sem qualquer oposição à altura o que logicamente se traduzirá na consolidação definitiva do seu poder.





Imagem nº 2 - Flávio Belisário assegurou uma vitória assinalável na Batalha de Dara (530) diante dos persas, e segurou ainda o Imperador Justiniano no poder, aquando da Revolta de Nika (532).




A Invasão ao Norte de África: a destruição do reino vândalo


Após os últimos acontecimentos, Justiniano começou a depositar naturalmente toda a sua confiança neste seu súbdito habilitado na vertente militar, e para iniciar o projecto de renascimento da glória e esplendor "romanos" tem em mente uma meta ambiciosa - apoderar-se do Norte de África, cenário que lhe possibilitaria o controlo duma extensa parte do Mar Mediterrâneo. Para viabilizar o seu sonho, delega novamente a liderança da expedição no seu general Flávio Belisário, cuja lealdade estava acima de qualquer suspeita.
O pretexto é convidativo - o reino vândalo (localizado no Magrebe) encontra-se dividido numa crise interna. O anterior soberano Hilderico tinha abandonado o Cristianismo ariano (encarado pela Santa Sé como uma filosofia ou interpretação teológica herética) para abraçar o Catolicismo. Além disso, Justiniano mantinha relações amigáveis com este rei. Todavia, a sua deposição em 530 pelo nobre ariano Gelimer consumou um virar de página nas relações diplomáticas existentes entre os responsáveis vândalos e bizantinos. Muitos cristãos que seguiam o credo católico (em vez das tendências arianas) lamentaram o desfortúnio do anterior soberano (Hilderico seria morto três anos depois) e fugiram em várias direcções (muitos acabaram por aportar em Constantinopla, capital bizantina) pois temiam que Gelimer, o novo rei de crença ariana, os viesse a perseguir. Efectivamente, este contexto atribulado favorecia os planos ousados de Justiniano que sempre sonhou incorporar aqueles domínios. O momento para a ofensiva era propício e não havia tempo a perder.
Em 533, uma frota de 50 navios comandada por Flávio Belisário aporta em terras actualmente líbias. Ao todo, estima-se que a sua armada é composta por 15 mil homens. Após o desembarque, este exército empreende uma marcha triunfante em direcção às periferias de Cartago, a capital do estado vândalo. Nas proximidades do marco que assinalava as 10 milhas de distância (daí a designação da batalha com Ad Decimum) em relação àquela cidade histórica, os dois exércitos - vândalos e bizantinos - enfrentam-se pelo controlo da região. As forças de Belisário excediam, em termos numéricos, os contingentes liderados pelo rei  Gelimer. Apesar desta vantagem de pendor quantitativo, a batalha não começou nada bem para os invasores gregos que quase foram cercados pelo adversário. Contudo, o soberano vândalo não soube rentabilizar o seu ascendente, optando por pausar as hostilidades em curso, de modo a sepultar o seu irmão Ammatas que havia falecido em combate. Flávio Belisário teve tempo para reagrupar as suas tropas e lançar um feroz contra-ataque, o qual destroçaria o exército vândalo e capturaria Cartago, cuja população, maioritariamente romana, acolheu bem os seus "donos de outrora". O general bizantino somará posteriormente novo sucesso militar ao vencer novamente os vândalos na batalha de Tricamarum travada em Dezembro de 533. As cargas da cavalaria grega voltariam a ser decisivas. Gelimer sofreria novo desgosto, ao deparar-se com outro seu irmão morto (o respeitado general - Tzazon) durante os combates. O soberano vândalo teve novamente que bater em retirada, consciente da superioridade técnica do adversário cuja liderança e disciplina militares imprimiam as bases necessárias para o sucesso. Pouco tempo depois, Gelimer acordou a rendição, salvaguardando algumas condições que lhe seriam benéficas. Assim sendo, ele acabaria por viver o resto da sua existência em terras da Galácia (Anatólia Central) que lhe foram oferecidas para usufruto por parte do imperador bizantino Justiniano.
Mas nunca é demais ressalvar o papel crucial de Flávio Belisário nesta campanha, o homem que tinha desembarcado nas terras áridas do Norte de África, enfrentando realidades (geográficas, climáticas, políticas, culturais...) que estaria provavelmente longe de conhecer. A sua bravura e conhecimento militar abriram-lhe as portas de Cartago.
Efectivamente, estes triunfos bélicos viabilizaram o controlo bizantino sobre uma grande área do Norte de África e a zona ocidental do Mediterrâneo. Uma etapa necessária para o soberano de Constantinopla que ambicionava restaurar o apogeu romano, recriando se possível um novo "Império Romano do Ocidente".
Por outro lado, um dos povos carrascos do antigo Império Romano - os vândalos, aqueles mesmo que em 455 saquearam Roma durante duas semanas terríveis, acabavam agora de ser aniquilados neste ano de 533 por um comandante que tinha devolvido credibilidade e esperança ao povo de Constantinopla. Todavia, a inveja e a intriga não tardariam em principiar nas altas instâncias bizantinas, com personagens influentes a difundirem rumores mal intencionados a respeito de Flávio Belisário - um deles (obviamente falso) era o de que este general ponderou em tornar-se rei dos vândalos, atraído pela eventualidade de recomeçar uma nova dinastia. Uma mentira que, na altura, não surtiu o efeito desejado pelos seus detractores, mas que era um prenúncio do que lhe poderia vir a acontecer num futuro não muito distante.





Mapa nº 1 - Na batalha de Ad Decimum (533), os vândalos tentaram cercar as forças comandadas por Belisário mas acabariam por fracassar pois os bizantinos reagiriam energicamente, rompendo com as linhas inimigas e motivando assim a sua desorganização fatal.





Imagem nº 2 - A glória dos bizantinos alcançava agora o Norte de África após o triunfo no âmbito da Guerra Vândala.




A Invasão da Península Itálica e a Guerra com os Ostrogodos


Findo o domínio vândalo do Norte de África e garantida a inclusão destes territórios no Império, Justiniano decidiu confiar, mais uma vez, em Flávio Belisário a condução de uma nova campanha - esta ainda mais ambiciosa do que a anterior - tomar a Península Itálica e Roma, a antiga capital do Império Romano. Os ostrogodos  (outro povo de raiz bárbara) tinham instalado o seu próprio reino nessa região, e estavam dispostos a defendê-lo até ao derradeiro suspiro. A guerra iria ser penosa pautada por avanços e recuos. Se o controlo pelo Magrebe ficou logo decidido entre os anos de 533 e 534, o conflito pela posse da Itália da Alta Idade Média começaria em 535 e arrastar-se-ia até 554, totalizando quase 20 anos de hostilidades!
O comandante até então preferido do imperador bizantino começa a sua complexa empresa com uma vitória na Sicília. Segue-se uma entrada em território italiano, mais concretamente em Rhegium (Calábria), e depois coloca cerco à cidade de Nápoles que cairia nas mãos das tropas invasoras durante o Outono de 536.
Entusiasmado pelos recentes êxitos, Belisário dá agora ordem de marcha até Roma, a cidade das sete colinas e, sem dúvida alguma, a urbe mais prestigiante daquela era. Paradoxalmente, a entrada do general em Roma decorre de forma categórica sem sinais de grande resistência no dia 9 de Dezembro de 536. Mas tudo não passava então dum ardil ou esquema concebido pelos ostrogodos que, sabendo da empatia da população romana para com os invasores (que se declaravam herdeiros do Império Romano), permitiram a entrada dos soldados bizantinos naquela cidade, para posteriormente os cercarem. 
Ao ter conhecimento da estratégia de retaliação do inimigo, o general natural da Trácia aprontou os preparativos necessários à sua defesa e mandou inclusive cavar fossos nas zonas imediatamente exteriores às muralhas, de modo a impedir ou, pelo menos, dificultar a aproximação ostrogoda junto das estruturas defensivas de Roma. 
Todavia, o cerco iria ser bastante duro, e pela primeira vez, o conquistador Flávio Belisário teria a obrigação de defender uma grande cidade diante dum exército respeitoso. No imediato, os ostrogodos erguem sete acampamentos/campos em torno de Roma, e destroem os aquedutos que transportavam água fresca. Ao fim de mais de duas semanas, os sitiadores bárbaros recorrem a torres de cerco para tentar o assalto aos muros, mas são forçados a recuar após violentas escaramuças com a guarnição bizantina. 
O comandante das forças imperiais apercebe-se da gravidade da situação, e consegue enviar mensageiros que envidarão esforços no exterior para garantir a afluência de novos reforços que forçassem o exército ostrogodo a levantar o assédio. Além do mais, Belisário projecta algumas sortidas de forma a tentar desmoralizar gradualmente o oponente.  
Após várias semanas de intensos combates, chegaram finalmente as forças de auxílio requeridas pelos bizantinos. Os ostrogodos ainda tentaram a via diplomática, propondo que Roma voltasse às suas mãos a troco de algumas regiões do sul da Itália que seriam oferecidas a Justiniano. Contudo, não houve qualquer espécie de acordo a esse respeito.
Entretanto, o cenário nos sete acampamentos inimigos era caótico devido à proliferação da fome e de pragas. Desesperados, os ostrogodos tentam um grande assalto colectivo às muralhas com uma determinação carregada de brutalidade mas sofrem uma pesada derrota que culminou no registo dum número bastante elevado de baixas. Naquele tempo, uma armada romana comandada por João causou igualmente imensos dissabores aos interesses dos godos. Ao fim de 400 dias de cerco, os últimos contingentes "bárbaros" abandonam finalmente o cerco de Roma. Belisário e os seus homens terão perseguido impiedosamente muitos desses combatentes até à Ponte de Mílvio já no exterior de Roma.
Dotado de sabedoria e dum espírito incansável, Belisário voltaria à ofensiva, tomando Milão e ainda a capital ostrogoda - Ravena, onde aprisionaria o rei godo Vitiges. Os domínios bizantinos tinham aumentado consideravelmente na região itálica. 
Entre os anos de 541 e 542, o general bizantino, atendendo às novas ordens de Justiniano, abandona temporariamente a campanha italiana, para dirigir outra no Oriente de modo a travar nova ofensiva movida pelos Persas. Os resultados desta empresa oriental foram inconclusivos, mas o processo terminaria com um compromisso de não-agressão entre ambas as partes para os próximos cinco anos, o que permitiu a Belisário retornar ao palco anterior.
Quando regressa, os ostrogodos tinham já recuperado alguns territórios importantes entre 540 e 541. O seu novo rei - Totila tinha mesmo conseguido expulsar os bizantinos de Roma, porém não seria por muito tempo, porque Flávio Belisário voltaria a repor em breve o domínio sobre aquela grande cidade. 
Entretanto, crescia a inveja dos seus detractores internos e até o próprio imperador começou a recear o seu excessivo protagonismo. Dentro deste contexto, o comandante deixou de receber o devido apoio imperial, sobretudo ao nível do abastecimento de provisões e de contingentes militares, o que o obrigou a abandonar o seu projecto em solo italiano. Seria substituído no comando pelo eunuco Narsés (com 74 anos na altura), um general igualmente competente, que sairia vitorioso nas batalhas de Taginae (552) e Volturnus (554), o que encerrou definitivamente a conquista bizantina da região itálica.





Mapa nº 2 - A Campanha de Belisário em solo italiano.
Retirada de Wikipédia (http://en.wikipedia.org/wiki/Belisarius)





Imagem nº 3 - Flávio Belisário chega triunfantemente a Roma, um episódio marcante no âmbito da Guerra Gótica.




Os últimos anos de vida em Constantinopla


Em 559, Belisário voltará a exercer um papel militar relevante ao enfrentar uma armada de eslavos e búlgaros que cruzaram o Danúbio, semeando infindáveis medos nos responsáveis de Constantinopla e nas populações das terras em redor. Recorrendo a uma força de veteranos, o general volta a evidenciar-se, contribuindo para a anulação daquela séria ameaça. Foi o último suspiro de glória deste general agora cinquentenário. 
O fim de vida não lhe reservaria o devido reconhecimento pelos seus serviços prestados ao Império Bizantino. No ano de 563, Flávio Belisário foi acusado de corrupção ou até de eventual conspiração contra Justiniano, tendo sido condenado em Constantinopla num julgamento aparentemente realizado pelo prefeito e historiador Procópio de Cesareia (este mantinha na altura uma relação azeda com Belisário, apesar de ter sido no passado seu assessor ou conselheiro). Cumpriu pena de prisão por algum tempo, mas foi perdoado pelo Imperador que ordenou a sua libertação. Não parece conter qualquer fundamento a lenda (então falsa) de que o imperador bizantino teria mandado cegar Belisário, o qual, segundo esta narração pouco credível, teria passado os seus últimos dias a pedir esmola nas ruas. Mesmo assim, este mito, desprovido então de qualquer fundo verídico, tende-nos a transmitir a ideia de que o comandante não teve direito ao tratamento que justificou merecer pelos serviços que cedeu ao Império. Se por um lado é (quase) certo que Flávio não encerrou a sua existência na condição precária dum marginal ignorado pela sociedade, por outro, não podemos negar a sua passagem pela prisão, momento que comprovadamente aconteceu e que terá sido bastante humilhante para um homem que deu tudo de si para concretizar vários dos sonhos do seu chefe máximo - o basileu. É certo que acabaria por ser libertado em breve, mas o crédito de que outrora gozava já não parecia ser o mesmo.
O imperador Justiniano e o seu leal general Flávio Belisário faleceriam ambos em 565, talvez separados por poucas semanas. Os dois tinham aumentado em 45% a extensão territorial do Império Bizantino. O empenho de ambos resultou no ressurgimento dum novo apogeu digno do saudosismo romano.






Imagem nº 4 - Mosaico na Basílica de São Vital em Ravena que apresenta as principais figuras do reinado de Justiniano (527-565). O imperador encontra-se obviamente no centro. O homem imediatamente ao seu lado direito é Flávio Belisário (isto visto a partir da perspectiva da posição ocupada pelo imperador, mas para quem visualiza a imagem a partir do prisma exterior como aqui no nosso blog, Flávio encontra-se logicamente logo ao lado esquerdo de Justiniano, ostentando cabelo e barba compridos).






Imagem nº 5 - Flávio Belisário (já de idade avançada) é reconhecido por um soldado que lhe presta reconhecimento. Nesta gravura, o pintor François-André Vincent alimenta o mito (erróneo) do conquistador ter sido cegado pelo imperador, vivendo os últimos dias na miséria.
Quadro de François-André Vincent (1776)





Mapa nº 3 - O Império Bizantino atinge a sua máxima extensão no reinado de Justiniano que deve muito deste mérito ao seu general Flávio Belisário.
Retirada de: http://www.preceden.com/timelines/6605-edad-media-i--bizancio-y-el-imperio-carolingio, (F. Javier Villalba Ruiz de Toledo - Universidad Autónoma de Madrid)




"Nenhum General desde César conquistou tantas vitórias com recursos tão limitados de homens e fundos; poucos o superaram na estratégia ou táctica, na popularidade com os seus homens e misericórdia para com os seus inimigos; talvez os seus méritos façam notar que os maiores generais - Alexandre, César, Belisário, Saladino, Napoleão - encontraram clemência num poderoso motor de guerra" (Will Durant citado em: http://www.ancient.eu/Belisarius/)



"Esquecido pela História e traído pelas pessoas mais próximas, fez renascer o sonho romano de reconquistar as terras perdidas para os Bárbaros. Dono de uma das carreiras militares mais respeitáveis de todos os tempos, Flávio Belisário foi o responsável pela expansão do Império Romano do Oriente em meados do século VI. Apagado dos livros de história, seu nome foi temido e celebrado do Oriente Próximo até ao norte da Itália. Suas tácticas de guerra levaram-no a bater inimigos numericamente superiores" (Beto Gomes in http://guiadoestudante.abril.com.br/)




Referências Consultadas:





Nota-extra: O apogeu logrado nos tempos do laureado e formidável imperador Justiniano não se prolongaria por muito tempo. Por volta de 570, isto é, 5 anos depois do falecimento do basileu e do seu general), terá nascido em Meca - Maomé, um profeta com elevado carisma e notável oratória, que estará na génese do Islamismo. A idade de ouro muçulmana irá iniciar-se entre os séculos VII e VIII vislumbrando-se inúmeras conquistas, espalhando assim os princípios do Alcorão pelas regiões submetidas. Os seguidores de Maomé obterão várias vitórias no Médio Oriente, Norte de África e inclusive se apoderarão da Península Ibérica (invasão ocorrida em 711), onde o decadente e dividido reino visigodo tombará facilmente. Essa era culminará evidentemente na acumulação de derrotas por parte dos bizantinos que perderão assim muitos dos seus territórios, ficando confinado o império a uma extensão bem mais modesta do que aquela que fora produto do reinado de Justiniano, o Grande e do seu célebre general destemido Flávio Belisário.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A Batalha de Teutoburgo (9 d. C.) e o prenúncio do desastre romano na Germânia


1- O Contexto


Nos primórdios do século I d. C., reinava o imperador Caio Otaviano (governou desde 27 a. C. até 14 d. C.), mais conhecido como Augusto. Uma personalidade que merece figurar nos anais da História pela sua liderança prestigiante que contribuiu indubitavelmente para o apogeu romano.
Foi no seu tempo que se anexou o Egipto, a Dalmácia, a Panónia, a Nórica e Récia, além de avanços relevantes na Hispânia, na Germânia e ainda em África. Excluindo as guerras (de alargamento ou protecção) de fronteiras, o Império Romano até usufruiu momentos de paz e estabilidade internas ("Pax Romana"). Graças a Augusto, desenvolveu-se igualmente uma nova rede de estradas, foi estabelecido um exército permanente, aperfeiçoou-se o Direito Romano (por acção dos magistrados), criou-se a guarda pretoriana, promoveram-se as artes e letras (por exemplo: Caio Mecenas protegeu um notável círculo de intelectuais) e implementaram-se várias construções na capital - Roma, renovando o seu perfil arquitectónico.
A civilização romana, recheada de esplendor e dinamismo, agradecia aos seus deuses pagãos a prosperidade económica e junto deles intercediam por novos progressos, como por exemplo, na vertente militar.
Todavia, se a expansão romana reivindicou um corolário de glória nos tempos de Augusto, a verdade é que um desaire monumental poderia alertar para potenciais perigos vindouros. Neste âmbito, a guerra pelo controlo total ou definitivo da Germânia assumia-se como uma meta difícil de concretizar, dada a confluência de várias tribos ou povos nativos com alguma capacidade autónoma e belicista. Mesmo assim, nos primeiros anos do séc. I d. C., a situação aparentava ser mais pacífica do que era costume, com grande parte da Germânia submetida e pacificada por três poderosas legiões romanas. Mas um episódio iria cambiar esta tendência alegadamente favorável.





Mapa nº 1 - As conquistas no reinado de Caio Otaviano Augusto (a verde). 




2 - A Batalha de Teutoburgo


Os romanos já tinham encetado alguns progressos a leste do Reno, mas a incorporação destas novas terras no Império estava longe de ser um dado adquirido. À frente do governo da Germânia, encontrava-se o general romano Públio Quintílio Varo, um oficial com experiência ao nível de cargos públicos. Do seu "currículo" ressalta-nos à vista uma liderança exercida com mão-de-ferro. Por exemplo, no ano 4 a. C., Varo tinha mandado crucificar 2 mil judeus em Jerusalém que se tinham rebelado contra o domínio romano. Sabe-se que também se destacou na vertente política pois, durante a sua carreira, fora nomeado governador, primeiro da Província de África, e depois da Síria. Mas é na Germânia que viverá os últimos tempos da sua vida, onde como disséramos, tinha sido nomeado governador. 
A relativa acalmia conquistada pelas campanhas anteriores não parecia beliscar os interesses e objectivos do novo responsável romano da região. Contudo, a harmonia não passava duma perigosa ilusão que iria "engolir", sem piedade, todos aqueles que subestimaram aquelas tribos indomáveis.  
Neste contexto bastante incerto, Varo é alertado para uma potencial revolta contra a sua liderança. Quem lhe confidenciou essa informação foi Armínio, chefe do povo "Cherusci" (querusco) que contava com 25 anos de vida. Apesar das suas origens tribais germânicas, este Armínio estava acima de qualquer suspeita. Tinha vivido por alguns anos em Roma, onde gozara duma educação sólida e assimilaria assim diversos conteúdos de natureza militar. Imediatamente, teve direito à cidadania romana e chegou inclusive a integrar, enquanto auxiliar, as legiões romanas.
Contudo, Armínio não era de confiança e, como veio a saber-se mais tarde, estava a preparar uma cilada a Varo, atraindo-o à densa Floresta de Teutoburgo, o lugar ideal para a concretização duma mega-emboscada. De modo a concretizar esse plano, o responsável germânico conseguiu formar uma aliança com as maiores tribos da região, preparando discretamente os contornos do ataque surpresa.
Evidentemente, o governador Varo desconhecia estes planos e decidiu atender às instruções de Armínio. No Outono do ano 9 d. C., o general romano deixa a sua base, próxima de Minden (a noroeste da Germânia), e marchou com as três legiões para reprimir a rebelião. Ao todo são 36 mil homens que se deslocam para repor a ordem. Armínio seguia com eles, mas aquando da travessia na Floresta de Teotuburgo, consegue escapulir-se e juntar-se à sua armada que aguardava agora pelo sinal para o choque final. Quando este se deu, um número elevadíssimo de guerreiros bárbaros (até então privilegiadamente posicionados em cima duma colina) caiu em cima da extensa coluna romana que foi apanhada desprevenida, sem haver lugar a tempo para se colocar em formação militar. Em simultâneo, dardos e flechas sobrevoam impiedosamente o céu, surpreendendo as forças romanas. Muitos soldados tombam sem sequer enxergar o que realmente estava a acontecer. Nesta emboscada inicial, estima-se que metade das tropas romanas tivesse sido exterminada. Em jeito de guerrilha, os combatentes germânicos muniam-se de lanças, escudos e dardos, e recorreram sistematicamente a ataques relâmpagos nos dias seguintes para causar o terror e o pânico nas linhas defensivas romanas que ainda restavam.
Já os sobreviventes "latinos" marcharam, no dia seguinte, em direcção a sul mas depararam-se com uma muralha de madeira erguida pelos germanos (onde fica hoje Kalkriese). Aí os romanos passaram ao ataque, mas acabaram por ser repelidos, dada a ferocidade e resiliência do oponente. A cavalaria romana dispersou-se e acabou por ser gradualmente aniquilada pelas emboscadas constantes que se sucederam na floresta no decurso dos dias seguintes. O próprio general Varo decidiu suicidar-se para não ser capturado ou morto pelos germanos. Outros oficiais imitaram-no nesse comportamento fatídico. Os que foram capturados por estas tribos, seriam maioritariamente destinados à escravatura, enquanto uma minoria foi sacrificada em honras consagradas aos deuses germânicos. 
Apenas um grupo de sobreviventes, talvez na ordem das centenas, logrou escapar da floresta da mortandade, alcançando a fortaleza de Aliso, onde puderam juntar-se à guarnição existente. Aí permaneceram até ao irromper do Inverno, estação que obrigou os germanos a retornarem aos seus lares, permitindo assim o regresso dos primeiros ao território romano que tiveram a prontidão de comunicar o sucedido às altas patentes do Império.
O resultado não deixava sombra para dúvidas. Armínio tinha planeado uma traição sangrenta, mas não podemos retirar-lhe algum mérito na forma como conseguiu derrotar três legiões bem armadas. Ele conhecia as tácticas militares romanas (a sua educação permitiu-lhe assimilar as estratégias bélicas que estavam em voga naquela era) tal como a natureza da sua mobilização. E soube tirar máximo proveito da principal desvantagem que os romanos manifestaram naquele momento: o desconhecimento do terreno. Por outro lado, o factor surpresa inerente a qualquer emboscada de grande envergadura também foi um elemento decisivo que tramou o exército romano de Varo. 
De acordo com a tradição, o imperador Augusto, ao saber do desaire, terá lamentado bastante a ocorrência, acabando por repetir várias vezes este desabafo:



"Varo, dá-me as minhas legiões de volta!"




Local: Floresta de Teutoburgo
Data: Outono de 9 d. C. (Setembro?)
Forças Beligerantes

 

Império Romano
(Três Legiões)

 

Tribos Germânicas
Comandantes/Generais
Públio Quintílio Varo
Armínio
Número de Combatentes
36 000
25 000
Baixas Estimadas
35 000 (entre mortos e escravos)
Reduzidas – (1 000, 2 000?)
Resultado:  As três legiões romanas foram atraídas por Armínio a uma emboscada fatal na Floresta de Teutoburgo, o que causaria o seu aniquilamento. Públio Quintílio Varo preferiu suicidar-se com a sua espada em vez de cair eventualmente nas mãos do inimigo.
Tabela nº 1 - As estatísticas estimadas para o desfecho da Batalha de Teutoburgo.



Imagem nº 1 - A Batalha na Floresta de Teutoburgo culminou na destruição das três legiões romanas que controlavam a Germânia e no suicídio do seu governador - Públio Varo.




Epitaph des Marcus Caelius.JPG

Imagem nº 2 - Cenotáfio de Marco Caélio/Célio (Marcus Caelius), um oficial romano que também sucumbiu às emboscadas germânicas lançadas na Floresta de Teutoburgo.





Imagem nº 3 - Monumento a Armínio, o vencedor da batalha da Floresta de Teutoburgo.
Foto de Klaus Beermann (www.fotos.sc)




3 - Consequências


A derrota foi parcialmente abafada pelas altas instâncias imperiais de forma a não preocupar a plebe romana que vivia um período de considerável crescimento. Não obstante as baixas verificadas, o Império ainda não enfrentaria uma fase crítica ou ameaçadora à sua segurança interna. Contudo, a derrota de Teutoburgo colocaria para sempre em causa as pretensões de domínio romano na Germânia, sobretudo no que diz respeito aos objectivos de expansão a leste ou nas terras do além-Reno. Quase quatro séculos depois começariam as invasões bárbaras que dali partiriam para destruir o Império Romano do Ocidente. 
Mesmo assim, não podemos ignorar que decorreram nos anos vindouros campanhas que almejariam alguns êxitos. Atento às derradeiras ocorrências, o imperador Tibério (que sucedeu a Augusto) depositou confiança nas qualidades militares do seu sobrinho - Júlio César Claudiano (que ganharia o epíteto de "Germânico") que promoveu assim diversas expedições na Germânia contra os intentos libertadores de Armínio. Varo e os seus oficiais foram mesmo vingados na Batalha de Idistaviso (16 d. C.), embora Armínio tivesse conseguido escapar, deixando 15 mil dos seus guerreiros mortos para trás. O líder querusco tinha perdido apoios, e veria a sua autoridade a ser disputada. Seria assassinado por opositores que supostamente viviam no seu meio (é possível que Segestes estivesse envolvido no conluio). Apesar do fim fatídico, o seu vulto seria engrandecido, na posterioridade, pela corrente do nacionalismo alemão.
Apesar destes sucessos imediatamente posteriores, os romanos jamais se empossariam da totalidade da Germânia, e o desastre em Teutoburgo manifestou-se nas décadas e séculos seguintes como uma experiência traumática, ou melhor, espelhou uma das maiores derrotas militares até então testemunhadas no Império Romano.





Imagem nº 4 - Destacamento romano em formação "tartaruga" de forma a garantir a sua protecção mediante eventuais projécteis arremessados pelo inimigo.




Referências Consultadas:

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O Grito de Revolta de António de Montesinos

Em 1492, Cristóvão Colombo atingia as Antilhas, e em breve, Américo Vespúcio alcançaria as margens da extensa área continental até então desconhecida e que se baptizaria inspirada no seu nome (o nome Américo esteve assim por detrás da designação da América).
Após a descoberta deste Novo Mundo, procedeu-se à conquista, colonização e exploração dos novos territórios. Um processo que culminou na cristianização dos gentios que abandonariam então as suas anteriores convicções pagãs e/ou xamanísticas. Contudo, nem todos os colonos assumiram, desde cedo, uma conduta civilizada ou humanitária. Muitos dos nobres europeus estavam sedentos de ouro, alguns deles obcecados com o mito do El Dorado, a portentosa e luxuosa cidade construída por aquele valioso metal que inspirava o imaginário dos aventureiros europeus. Um número interminável de índios foram torturados (e até assistiram à amputação dos seus próprios membros) pelos novos colonos que exigiam saber onde aqueles guardavam o ouro, a prata, as pedras preciosas e os demais objectos de valor. Outros eram ainda instrumentalizados ou coagidos pelos colonizadores a mergulhar nas águas perigosas de rios traiçoeiros para acharem as tão ambicionadas pepitas de ouro. A escravatura foi ainda uma realidade inegável nas Américas, e daí surgiram as encomiendas (criadas pelos espanhóis para explorar um grupo ou comunidade de indígenas) e mitas (sistema de origem inca que consistia na exploração de homens no trabalho das minas) que foram "testemunhas" dos mais diversos abusos. Os índios eram forçados a serviços manuais inenarráveis, sendo que muitos, não habituados ao trabalho pesado, acabariam por perder as forças e tombariam lamentavelmente. 
O processo de colonização espanhola terá sido o mais polémico de todos, com muitos investigadores a atribuírem a destruição ou chacina de comunidades indígenas pela força das armas ou pela exploração sistemática da mão-de-obra. Em simultâneo, decorria um processo de aculturação que esteve longe de ser harmonioso e pacifico. A mensagem cristã não foi só espalhada pela oratória ou catequização pacífica (à imagem daquilo que sempre fora preconizado por Jesus Cristo), mas também pelo sangue, ódio e violência dos novos conquistadores. De acordo com o poeta chileno Pablo Neruda, "a espada, a cruz e a fome iam dizimando a família selvagem"





Imagem nº 1 - A colonização espanhola pautou-se por vários horrores e atrocidades contra os índios nativos das Américas.
Quadro da autoria de Theodor de Bry (1528-1598)




Apesar de alguns sectores clericais da altura se terem mostrado parcialmente coniventes com as transgressões infames praticadas, a verdade é que a defesa dos direitos e da integridade dos indígenas seria corajosamente concretizada por alguns missionários ou freires que não hesitaram em colocar a sua carreira em risco para afrontar os poderosos interesses até então instalados. No caso espanhol, temos de citar o legado incontornável do frade dominicano Bartolomé de Las Casas que denunciou várias atrocidades contra os índios das Américas, e no panorama da colonização portuguesa, não poderíamos deixar de mencionar a herança imaterial do padre jesuíta António Vieira. Mas ambos foram precedidos nesta causa humanitária por um homem sobre o qual pouco sabemos da sua história de vida, mas cuja oratória se evidenciaria luminosa e memorável neste "palco histórico".
António de Montesinos era um freire espanhol da Ordem de São Domingos que possivelmente antes de ingressar na congregação teria frequentado os seus estudos na Universidade de Salamanca. Em 1510, é um dos primeiros quatro dominicanos que têm a oportunidade de arribar ao novo continente. Os membros desta ordem pautavam-se pela sua vocação reformista, e claro que demonstraram total pavor com o panorama que se lhes deparou nas Caraíbas. Foi precisamente na ilha La Española (actualmente ilha de São Domingos que abrange o Haiti e a República Dominicana) que testemunharam o lado mais negro do processo de colonização que estava em curso. A população nativa estava em vias de desaparecer. Todos os líderes dos gentios haviam sido mortos, e os demais sobreviventes eram utilizados como escravos, além de serem tratados sem dignidade. Diego Colombo, filho de Cristóvão Colombo, autorizava inclusive raides que visassem a captura de índios para aqueles fins desumanos. Estes pereciam na miséria, muitos deles vítimas de novas doenças que até então desconheciam e que foram, embora sem premeditação, introduzidas pelos europeus. Os colonizadores ignoravam esta realidade medonha, concentrando apenas o seu interesse nas riquezas abundantes que as novas terras lhes poderiam proporcionar.
As estimativas modernas não deixam de validar toda esta conjuntura negra. De acordo com dados fornecidos por Martin Dreher, dos 300 mil índios que viviam na ilha La Española em 1492 (ano da chegada de Cristóvão Colombo), só restavam 60 mil em 1508. Era necessário que alguém tivesse o arrojo e a ousadia suficientes para repudiar este ciclo infernal, mesmo que essa pessoa usufruísse dum estatuto até então modesto ou pouco influente. Esse momento iria chegar...
No dia 21 de Dezembro de 1511, o freire António de Montesinos subiu ao púlpito para pregar o célebre "Sermão do Advento" naquela referida ilha, e cujo conteúdo surpreenderia oficiais, conquistadores e colonos espanhóis que se encontravam na assistência e que não esperavam ser o alvo principal do discurso que havia sido previamente preparado e acordado pelos restantes missionários dominicanos da ilha. Parte do conteúdo dessa pregação inolvidável é apresentada em seguida, e revela-nos ainda o carácter dum homem que não tolerou a omissão ou o silêncio contagiante dos factos horrendos que tinham de ser denunciados publicamente.



"Para lhes dar a conhecer eu subi aqui, eu que sou a voz de Cristo, no deserto desta ilha; e, portanto, convém que com atenção (...), com todo o vosso coração e com todos os vossos sentidos, a ouçais; a qual será a mais nova que nunca ouvistes, a mais áspera e dura e a mais espantosa e perigosa que jamais pensastes ouvir. Esta voz vos diz que todos estais em pecado mortal e nele viveis e morrereis, pela crueldade e tirania que usais para com estas gentes inocentes. Dizei - Com que direito e com que justiça tendes em tão cruel e horrível servidão estes índios? Com que autoridade têm feito tão detestáveis guerras a estas gentes que estavam nas suas terras mansas e pacíficas, donde tão infinitas delas, com a morte e estragos nunca ouvidos tereis consumido? Como os mantendes tão oprimidos e cansados, sem dar-lhes de comer nem curá-los das suas enfermidades que, dos excessivos trabalhos que lhes dais, incorrem e morrem e, para melhor dizer, os matais para extrair e adquirir ouro em cada dia? E que cuidado têm de quem os doutrine e conheçam a seu Deus e Criador, sejam baptizados, ouçam missa, observem os feriados e os domingos? Estes não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Isto não o entendeis? Isto não o sentis? Como estais dormentes numa intensa profundidade dum sonho tão letárgico? Tende por certo que no estado em que estais, não vos podereis salvar tal como os mouros ou turcos que carecem e não querem a fé de Jesus Cristo".



António de Montesinos
21 de Dezembro de 1511





Imagem nº 2 - Estátua de António de Montesinos localizada na actual República Dominicana.
Escultura do mexicano Antonio Castellanos
Retirada de: http://iniciativas.dominicos.org (Também presente no Wikipédia, autor da foto: Wilmer)




A reacção não se fez esperar. Descontentes e indignados, os colonos espanhóis exigiram aos dominicanos a punição imediata, ou pelo menos, a retratação pública de António de Montesinos. Contudo, os membros da ordem (eram já 15 ao todo os que ali estavam) não cederam às ameaças, afirmando que António tinha pregado em nome deles todos. 
No Domingo seguinte (28 de Dezembro de 1511), o mesmo freire subiu ao púlpito. Devido à semana agitada, os colonos esperavam que os dominicanos reconsiderassem a sua posição e renegassem o discurso anterior. Contudo, mais uma vez acabariam por ser surpreendidos. Na sua homilia, António de Montesinos não só reafirmou novamente o que havia sido dito previamente, como deixou bem claro que ele e os seus companheiros dominicanos se recusavam a ouvir as confissões dos colonos escravistas, os quais não eram mais do que salteadores de estradas.
As queixas e pressões contra estes missionários avolumaram-se repentinamente, e solicitava-se a sua expulsão da ilha de La Española. Ao que apuramos, os dominicanos foram, pelo menos, proibidos de predicar sobre aquele assunto.
Na própria metrópole (Espanha), produziu-se um intenso debate sobre a natureza ética da colonização em curso nas regiões ameríndias. O dominicano António de Montesinos regressou a Espanha e teve a oportunidade de relatar junto do rei D. Fernando tudo aquilo que conseguiu apurar na sua primeira missão pelo Novo Mundo. O soberano espanhol terá ficado horrorizado com os detalhes que lhe foram transmitidos, e convocou imediatamente um grupo de teólogos e juristas para tomarem uma posição sobre esta problemática. Como resultado das reuniões protagonizadas por estes especialistas, saíram as Leis de Burgos de 1512 que conferiram alguns direitos básicos aos indígenas (nomeadamente ao nível da protecção teórica da sua integridade física, por exemplo: eram proibidos os maus-tratos), embora aquelas tivessem acabado por legalizar a prática das encomiendas. A aplicação dos regulamentos considerados favoráveis aos índios esteve longe de ser uma realidade verificada no terreno até porque o seu controlo ou fiscalização assentavam em bases medíocres. A distância entre a metrópole e as suas colónias no Novo Mundo era alimentada por um extenso Oceano Atlântico, o que dificultava ainda mais a introdução ou observação daquelas regras.
Em 1513, e já de regresso ao Novo Continente, António de Montesinos tentou resolver, sem sucesso, um diferendo em Chiribichi (Venezuela), onde o colonizador Gomez de Ribera tinha capturado o cacique local (Alonso - tinha sido baptizado poucos anos antes), a sua mulher e alguns membros da tribo que entraram "ingenuamente" (foram induzidos numa errónea cortesia) num barco espanhol que os destinaria à escravatura. Dois dominicanos foram deixados para trás juntamente com os nativos enraivecidos pelo acontecimento. Aqueles missionários acabaram por ser tomados como reféns e seriam mesmo mortos, porque Alonso e os seus companheiros jamais seriam devolvidos às suas origens. Apesar dos seus esforços incansáveis, António de Montesinos não conseguiria salvar os seus colegas nem evitar o destino negro daqueles indígenas capturados.
Nos anos situados entre 1526 e 1528, o nosso biografado volta a desempenhar algumas missões nas regiões actuais da Carolina do Sul e da Venezuela, embora não encontremos menções pormenorizadas sobre os resultados verificados. Também terá passado em algum momento por Porto Rico, onde projectou a construção dum novo convento.
Acredita-se que terá morrido (martirizado?) por volta do ano de 1545, contudo desconhecem-se pormenores exactos sobre os momentos derradeiros da sua vida.
O seu legado em prol da defesa dos índios inspiraria muitos dos futuros missionários e abriria definitivamente os olhos para uma matéria até então ocultada ou excluída da análise dos novos ocupantes do continente americano. Bartolomé de Las Casas, um encomendero até então pouco conhecido, ouviu o sermão virtuoso de António de Montesinos em 1511, e inspirado pela sua revelação, libertou-se dos escravos que tinha ao seu dispor e abraçou também ele, com total emotividade e abnegação, a defesa dos direitos dos indígenas.
O caminho seria ainda bastante longo (com mais recuos do que progressos nos primeiros tempos), mas a primeira pedra da fraternidade - essa já estava lançada.





Imagem nº 3 - Memorial na Venezuela em honra do freire dominicano António de Montesinos (também designado como Anton de Montesino).





Imagem nº 4 - Bartolomé de Las Casas (sentado e em estado reflectivo) recorda o sermão inspirador do dominicano António de Montesinos que teve a oportunidade de ouvir e que o faria mudar a sua perspectiva sobre os gentios. Também Bartolomé ingressaria na Ordem Domincana para proteger os direitos dos índios.
Retrato da autoria de Francis De Blas




Referências Consultadas:


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

João Garcia de Guilhade, um trovador medieval português

Em Guilhade, lugar da freguesia de Milhazes (Barcelos), nasceria um dos primeiros vultos da literatura portuguesa. Trata-se de João Garcia de Guilhade, um nobre com talento invulgar para o ofício da escrita. 
No século XIII, a maior parte esmagadora da população portuguesa era iletrada ou analfabeta, pelo que a cultura evidenciada por esta personalidade inseria-se no círculo restrito das sábias excepções. 
João Garcia (ou Joan Garcia) estava incluído no grupo de cavaleiros que terá servido a nevrálgica linhagem dos Sousa. A partir das suas composições poéticas, depreende-se igualmente que teria frequentado, em algum momento, a corte castelhana de Afonso X. Poucos dados mais se apuraram sobre a sua existência, contudo deixou-nos os seus manuscritos, onde nos confidencia as suas paixões, emoções, sentimentos, desavenças, ironias...
As origens da arte trovadoresca galego-portuguesa remetem-nos para a emancipação dos trovadores provençais, responsáveis pelo movimento artístico que irrompeu no sul da França entre os finais do século XI e os inícios do século XII, e que posteriormente se difundiu por outras regiões da Europa. Após serem compostas, as cantigas seriam cantadas nas cortes e casas aristocráticas que procuraram proteger e patrocinar esta nova tendência. O reino de Portugal não foi alheio a estas novas influências culturais. Inclusive, até o próprio rei português D. Dinis iria compor as suas próprias trovas. 
Enquanto trovador, João Garcia de Guilhade cultivou os géneros da época: cantigas de amor, de amigo e de escárnio e mal dizer. O seu espírito satírico e mordaz é, por exemplo, merecedor do nosso apontamento. Privilegiou ainda a temática do amor cortês, imbuído da própria originalidade (ou estilo pessoal) do poeta, e valorizou ainda o poder criador da sensualidade. Ao todo, conservaram-se 53 ou 54 textos deste erudito (datados talvez de meados do século XIII), sendo que um dos mais conhecidos é o que listamos de seguida.
João Garcia seria mesmo digno de figurar nas páginas da nossa literatura por vários séculos, embora os seus dados biográficos sejam praticamente nulos.




Cantiga de Escárnio e Mal Dizer


Ai dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louv'en[o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei todavia;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
  
Dona fea, se Deus mi perdom,
pois havedes [a]tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero já loar todavia;
e vedes qual será a loaçom:
dona fea, velha e sandia!
  
Dona fea, nunca vos eu loei
em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já um bom cantar farei
em que vos loarei todavia;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!




Imagem nº 1 - Os trovadores medievais portugueses abrilhantaram a literatura nacional nos primórdios da sua existência.





Anotações sobre o poema - "loar" significa louvar; "sandia" é sinónimo de louca; "loação" - louvor.



Referências Consultadas: