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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Abu Imrane Almertuli, o poeta sufi de Mértola


Quantas coisas digo que não faço

quantas voltas sem me decidir a pôr meu pé em terra.



Critico os meus olhos e não se convencem;

aconselho minha alma, não aceita os meus conselhos.



Ai quantas coisas se desculpam, dizem:

“talvez mais tarde”. Quantas se demoram.



Em quantas coisas confio

que terei longa vida, e me atraso.

Mas a morte não se atrasa.

Todos os dias brada entre nós



o pregoeiro da caravana: “Alto!”

Depois de setenta e nove anos,

deverei esperar uma vida longa? (…)



Poema da autoria de Abu Imrane Almertuli
Tradução de Elias Terès Sàdaba (espanhol) e Garcia Domingues (português)



Estes são talvez os versos mais conhecidos de Abu Imrane Almertuli, um poeta e místico sufi que havia vivido, durante o século XII, em Mértola, junto às margens do Rio Guadiana. Infelizmente, não encontrámos muitos elementos biográficos a seu respeito. Apenas sabemos que a sua morte respeita duas propostas cronológicas, isto é, terá ocorrido entre 1194-1195 ou somente se terá verificado em 1207. Julga-se ainda que terá chegado a privar, em algum momento, com Al-Uryani, mestre sufi de Loulé (este tinha ainda fama de taumaturgo), e até com o califa almóada Ya'qub al-Mansur. De acordo com António Borges Coelho, este último teria-lhe enviado ainda um mensageiro que deveria proceder à oferta de uma determinada quantia, gesto que Abu Imrane Almertuli terá declinado respeitosamente, retorquindo diante do estafeta - "O teu senhor tem mais necessidade desse dinheiro do que eu. Toma cem dinares de proveniência lícita. Diz-lhe que, para a sua manutenção pessoal, gaste só deste dinheiro e obterá a vitória".
Através deste pequeno relato, é possível extrairmos mais algumas ideias. O biografado não viveria em condições desafogadas, pelo que terá suscitado alguma sensibilidade da parte do poderoso califa que o visitara e que viria a ser reconhecido pelo seu percurso militar irrepreensível na Península Ibérica. Ya'qub al-Mansur foi, por exemplo, o grande vencedor da batalha de Alarcos em 1195, isto depois de ter recuperado muitas praças aos cristãos.
Esta situação económica individual presumivelmente desfavorável também encontra eco no estilo religioso adoptado por Abu Imrane Almertuli. O sufismo era uma corrente mística e contemplativa do Islão, estando muito associada à humildade espiritual e a uma pobreza inequívoca no plano material. Os sufis tentavam desenvolver uma relação íntima, sincera, directa e contínua com Deus, utilizando inúmeras práticas espirituais ensinadas pelo Profeta Maomé, orações e jejuns. Estes movimentos poderiam igualmente incluir rituais de música, dança e cânticos.
No que diz respeito ao poema citado, é possível retirarmos alguns apontamentos sobre o pensamento do autor. Tal como Omar Khayyam (notável polímata persa que viveu entre 1048-1131), também Abu Imrane Almertuli se debruça sobre temáticas existencialistas, procurando abordar o sentido da vida e da morte. Através destes versos, o poeta sufi de Mértola critica o desperdício de tempo por parte dos seres humanos que invariavelmente adiam para mais tarde as acções que haviam planeado para serem concretizadas num determinado momento a brevíssimo prazo. Para Abu Imrane, a morte está sempre omnipresente, sobretudo numa época onde a esperança média de vida era bem inferior à actual. Por conseguinte, seria então aconselhável ou recomendável não deixar para amanhã aquilo que de importante se poderia fazer hoje. Efectivamente, esta é ainda uma visão muito actual nas sociedades contemporâneas e que se encontra revestida de um sentido lógico. O tempo não pára, pelo que não devemos acomodarmo-nos à sombra dos ponteiros do relógio, ou inundar as valiosas horas que temos pela frente com acções fúteis e inconsequentes. 
O poema incorpora igualmente metáforas e ainda imagens secularmente inscritas na tradição cultural árabe. A caravana corresponde ao percurso colectivo de todos os seres humanos ao longo das suas vidas. Refere-se às suas escolhas e aos seus rumos. Por seu turno, o pregoeiro personifica a morte porque só ele pode fazer parar a caravana (ou esse percurso), visando o ser humano que a "integra".
Estamos perante um dos versos mais bem elaborados do período cultural do al-Andalus, o qual nos remete para reflexões profundas.





Imagem nº 1 - O Sufismo foi uma das expressões religiosas contemplativas do Islão. Os seus mestres preconizavam uma veneração incondicional a Deus, distanciando-se de qualquer tentação material.
Abu Imrane Almertuli também integrou esta corrente, além de se ter dedicado à poesia, tal como fizera, embora com dimensão universal, Maulana Rumi.




Nota-Extra - Al-Uryani, mestre sufi de Loulé, foi um dos principais tutores de Ibn al-Arabi em Sevilha. De acordo com António Borges Coelho, também Ibn al-Arabi, vulto que viria a adquirir um notável carisma intelectual no seio do al-Andalus (com provas dadas na poesia, filosofia e mística sufi), terá chegado, um dia, e no âmbito de um "episódio concreto", a procurar conselhos espirituais ou teológicos junto de Abu Imrane Almertuli. 



Referências Consultadas:

  • COELHO, António Borges - Portugal na Espanha Árabe. Vol. IV. Lisboa: Seara Nova, 1975.
  • COELHO, António Borges - Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Andalus. Lisboa: Instituto Camões/Colecção Lazúli, 1999.
  • https://distractos.wordpress.com/2014/06/10/este-deserto-this-desert/, (Artigo da autoria de António Sá, consultado em 26/01/2017).

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Abdalá Ibne Uázir, o derradeiro poeta e governador muçulmano de Alcácer do Sal

A história do al-Andalus não foi apenas construída por prodigiosos vultos, mas também por pequenos poetas que não deixariam de expressar, através dos seus versos, os sentimentos e as vivências que fizeram parte da sua existência.
Abdalá Ibne Uázir (também denominado como Abdallah ibn Wazir) é certamente um desses exemplos. Infelizmente, não logramos reunir muitas informações sobre a sua vida, mas ainda assim compilámos alguns elementos biográficos.
De acordo com o especialista em estudos islâmicos, António Borges, o biografado pertenceria à família dos Banu Uázir de Beja. No auge da sua carreira, terá desempenhado as funções de alcaide (estatuto equiparável ao de governador) na praça muçulmana de Alcácer do Sal (al-Qasr).
Em 1217, Abdalá Ibne Uázir é surpreendido pela chegada das tropas de D. Afonso II (embora o rei português não tivesse estado presente no empreendimento militar) que são engrossadas por um importante exército de cruzados (sendo que estes, na sua maioria, seriam combatentes germânicos e flamengos que estavam integrados na campanha da Quinta Cruzada que deveria rumar ao Egipto). Apesar de quatro soberanos muçulmanos (provenientes de Sevilha, Córdoba, Jaén e Badajoz) terem vindo em auxílio do governador islâmico de Alcácer, a verdade é que estes foram derrotados pelos cristãos numa batalha travada no exterior. Os muçulmanos que resistiam a partir da guarnição da praça não tiveram outra hipótese senão apresentarem a sua rendição diante dos novos invasores. Confrontado com a nova realidade, Abdalá Ibne Uázir simulou uma conversão ao cristianismo, de forma a tentar ludibriar os novos ocupantes da cidade. Pouco tempo depois, e logo que teve oportunidade, conseguiu fugir para o Garbe Muçulmano.
Pelo que apuramos, este oficial administrativo não se inteirou apenas da gestão financeira, política, judicial e militar da sua praça, como parece também ter velado pela cultura a nível local. Abdalá Ibne Uázir não era um governante ignorante que não sabia ler ou escrever, como acontecia recorrentemente na distendida Idade Média. O analfabetismo atingia números assombrosos, sendo transversal ao povo e até à própria nobreza. Apenas as pessoas ligadas ao clero (independentemente do credo professado) e alguns profissionais liberais (caso dos magistrados) detinham alguns conhecimentos linguísticos porque tal seria fundamental para o exercício das suas funções.
Abdalá Ibne Uázir era portanto uma feliz excepção à regra, uma personalidade digna de integrar uma minoria de intelectuais da sua época, mesmo que a sua obra literária não tivesse sido uma das mais marcantes do al-Andalus.
O alcaide foi efectivamente um poeta. Os seus versos visavam, em especial, a realidade envolvente. Aliás, a crítica social e política do seu tempo estão implícitos ao longo da sua obra. Mas num dos seus poemas, Abdalá mostra-nos também um lado mais humanista, e inclusive amigo dos animais, visto que chegara a confessar a sua tristeza pelo facto de o seu cão de caça ter morrido durante uma caçada nas florestas de Alcácer.
Infelizmente, não temos mais dados a reportar sobre a sua vida. Contudo, conseguimos encontrar um pequeno poema da sua autoria onde nos é revelado um pouco da sua tendência para a sátira social.
Até porque a poesia não se refugia apenas nos enclaves sentimentais do amor, da tristeza ou da amizade, assumindo-se igualmente como uma ferramenta capaz de denunciar vícios e abrir novos caminhos mais luminosos para as sociedades que lhe são contemporâneas!



"Não desesperes"

Não desesperes de chegar a califa
Pois Ibne Amr foi nomeado inspector das alfândegas.
Desgraçada época em que se fazem coisas 
Como esta:
Colocar altos cargos nas mãos de um limpador
De esgotos.



Versos da autoria de Abdalá Ibne Uázir
(Poema compilado e preservado pelo historiador Ibne Saide Al-Magribi)
Posteriormente traduzido por Teres Sàdaba (espanhol) e Garcia Domingues (português)





Imagem nº 1 - A Poesia e a Música constituíram partes integrantes do dinamismo evidenciado por alguns centros culturais do al-Andalus.



Referências Consultadas:

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Duas visões distintas sobre a Reforma Manuelina dos Forais

D. Manuel I foi um dos reis mais carismáticos da História de Portugal. Durante o seu reinado, estabelecido entre 1495 e 1521, os navegadores portugueses descobririam o caminho marítimo para a Índia, arribariam ao Brasil, e também atingiriam as Molucas no Extremo Oriente. Esboçava-se assim uma primeira pintura daquilo que viria a ser um império grandioso que aglutinaria possessões nos continentes africano, americano e asiático. Seria igualmente no seu tempo que se verificariam as primeiras grandes transformações no âmbito religioso. Em 1496, o monarca português assinaria um decreto que ordenava a expulsão dos judeus e muçulmanos que não se convertessem à fé católica. O cenário de implementação futura da Inquisição em Portugal começava então a ganhar forma. 
Por outro lado, o soberano assumiu um papel notável na promoção da cultura, tendo criado novos planos educativos e bolsas de estudo. No seu tempo, desenvolveram-se diversas áreas, muitas delas inspiradas pelas directrizes do Renascimento, nomeadamente: a cartografia, a matemática, a astronomia, a literatura, o teatro, a música, a pintura, a arquitectura (nasce aqui o "estilo manuelino"), a filosofia, a iluminura, a ourivesaria, etc. 
De facto, no seu tempo, pontificaram notáveis nomes da cultura portuguesa, a saber: Pedro Nunes, Abraão Zacuto, Simão Álvares do Renascimento, Damião de Góis, Sá de Miranda, Garcia da Orta, Bernardim Ribeiro, Garcia de Resende, Gil Vicente, Nuno Gonçalves, Grão Vasco, Duarte Barbosa, Gaspar Correia, Duarte Pacheco Pereira, António Galvão, João de Barros, Tomé Pires, entre outros.
Portugal congregava assim os seus feitos e as novidades provenientes dos Descobrimentos com as tendências artísticas renascentistas em voga. Culturalmente, Portugal entrava assim numa nova era. 
No entanto, os planos de acção de D. Manuel I incluiriam uma visão bem mais alargada, alcançando rapidamente outros sectores. Dentro deste contexto, o Venturoso seria um verdadeiro reformador no panorama administrativo. A primeira reforma (e talvez mesmo a mais importante) a arrancar foi a dos forais. Tal não é de estranhar, visto que, antes de Maio de 1496, já tinha sido criada uma comissão para esse efeito. A 22 de Novembro de 1497, o monarca promulgaria uma carta régia a respeito desta reforma. A mencionada comissão seria então composta por Rui Boto (chanceler-mor), João Fogaça (Desembargador), Fernão de Pina (filho de Rui de Pina, cronista-mor do reino). 
Este empreendimento de grande fôlego prolongar-se-ia por todo o reinado de D. Manuel I. Aliás, Fernão de Pina só abandonaria este trabalho em 1522 para substituir o seu pai no cargo de cronista-mor do reino. 
Esta comissão reunia-se regularmente e tinha por objectivo a modernização e a uniformização dos propósitos inerentes à  administração local. Neste cômputo, encontramos, por exemplo, antigos textos que deveriam sofrer reformulações por três razões que passamos a enunciar: 


1- Em vários documentos medievais encontrávamos referências a diversos sistemas monetários já abandonados e,  por isso, era imperioso proceder às consequentes actualizações. O rei desejava ainda criar um sistema único de pesos e medidas. 

2- Muitos eram os textos elaborados em latim (o que poderia originar más leituras e interpretações), pelo que se exigia a implementação do português vigente naquela época.

3- Vigoravam ainda outros diplomas cujas disposições eram já tão antigas que já não correspondiam à realidade política, económica e social dos finais do século XV. 


Fernão de Pina, figura que assumiria um papel relevante neste processo, iria então colocar mãos à obra. Ele consultaria os documentos que regulavam a vida dos municípios e visitaria a maioria das localidades visadas com a finalidade de ouvir os povos e realizar inquirições. A morosidade do processo levou D. Manuel a dar ordens para que Fernão de Pina não visitasse todos os lugares. O monarca português estaria já algo impaciente até porque estava ansioso por completar esta reforma tão vasta e complexa. Aliás, esta mesma reforma reforçaria o seu poder, visto que os forais novos se transformaram exclusivamente em pautas alfandegárias, perdendo assim o carácter político e diferenciador, base do poder local. 
Até 1520, foram reformados 589 forais e ainda se retiraram diversas informações para muitas terras que não seriam incluídas na reforma dos forais novos. 
Em jeito de análise final, o historiador João Paulo Oliveira Costa, autor de um monografia sobre D. Manuel I, enalteceu a política do Venturoso em relação a este prisma, afirmando que a reforma se pautaria pela adequação dos textos antigos (relativos aos municípios e à legislação em geral) aos tempos modernos. Defende ainda que esta iniciativa se traduziu num claro progresso administrativo, fazendo cessar inúmeras disposições retrógradas que ainda regiam a realidade de variados concelhos desde há alguns séculos para "cá"!
No entanto, a reforma manuelina não gerou opiniões unânimes no seio dos profissionais da história, isto é, encontramos igualmente historiadores que duvidaram da sua eficácia prática. Um desses historiadores é Luís Miguel Duarte, que num artigo intitulado Os "Forais Novos": uma reforma falhada?, detecta muitas deficiências em todo este processo reformador. A partir da análise efectuada aos forais, ele argumenta que os textos diplomáticos, jurídicos e administrativos são muito imperfeitos. Lamenta ainda que se tenham incorporado direitos patrimoniais e obrigações contratuais nos próprios forais,  algo que terá gerado confusão entre direito público e privado. Mas pior ainda no meio disto tudo é que as relações que deviam ser do foro do direito privado, tornaram-se públicas. No seu entender, a reforma dos pesos e medidas foi um total fracasso. Assim, o investigador vianense alega que a tão desejada uniformização não se verificou na prática. Por outro lado, são ainda criticados os forais (sobretudo aqueles que foram atribuídos pela primeira vez a uma localidade) que se resumem apenas a contratos de exploração (temos aqui supostamente os exemplos de Maia e Penafiel) ou a respostas a capítulos especiais dos povos em cortes (caso de Vila do Conde). A visão que Luís Miguel Duarte então nos fornece sobre os forais novos não é a mais positiva, ressalvando que estes deixaram imensos problemas e lacunas  por resolver. Aliás, aquele historiador chega ainda a afirmar que esta reforma em vez de acabar com numerosos e longos litígios, acabou por ter o efeito contrário, isto é, reacenderam-se novas disputas e dúvidas que ficariam à espera das decisões dos tribunais ou das novas inquirições que se viessem a realizar. Na óptica deste erudito vianense, estes documentos seriam também juridicamente toscos, inacabados e contraditórios, embora razoáveis no levantamento dos principais direitos a pagar pelas povoações. 
Por isso, ao apresentarmos duas versões algo contraditórias entre historiadores reputados, chegamos à conclusão de que muito ainda existe para estudar e descobrir em relação à reforma manuelina dos forais novos e ao seu impacto na sociedade daquele tempo.





Imagem nº 1 - Foral Manuelino de Monsaraz, datado de 1512.



Referências Consultadas:


  • COSTA, João Paulo Oliveira – D. Manuel I. Mem Martins: Círculo de Leitores, 2005, pág.133,ISBN:972-42-3440-1 3
  • DUARTE, Luís Miguel – Os “Forais novos”: uma reforma falhada? in Revista Portuguesa de História, tomo 36, vol.I, Coimbra: Universidade de Coimbra, 2002/2003, p. 391-400.